O reconhecimento gradual e a incorporação de termos como racismo, sexismo e homofobia se deram através do desenvolvimento de uma linguagem que permitiu que as pessoas passassem a falar sobre tais assuntos. Antes, havia a prática, mas não o conceito que a diferenciasse e especificasse. A palavra “racismo” teve origem em 1936, no contexto das teorias nazistas da superioridade ariana, tomando o lugar da mais antiga “racialismo”.
O termo “sexismo” foi criado por analogia ao termo “racismo” na segunda metade dos anos 1960. Na mesma época, no campo da psiquiatria, era cunhado o termo “homofobia”. Um desdobramento jurídico dessas categorias é o desenvolvimento da noção de “crime de ódio”, referido tanto à motivação pelo racismo como pela homofobia e, mais recentemente, pelo feminicídio.
Do Clam,
Conforme apontado por Pierre Bordieu, a força da lei no ato de nomear tem, através dele, o efeito de criar o fenômeno que essa linguagem designa. Assim, a mobilização social, além de outros aspectos, consiste em uma conceitualização cujo ápice é representado pela criação de leis e direitos. Assim, na Mesoamérica foi necessário criar o termo feminicídio para trazer à atenção pública o problema da violência letal que vitima milhares de mulheres pela condição de serem mulheres. O termo enquadra tais crimes como sendo especificamente de gênero. Na América Latina, México, Chile e Argentina já incorporaram o crime de feminicídio às respectivas legislações penais. Na Colômbia, a Suprema Corte de Justiça condenou um homem por feminicídio recentemente, mesmo o crime não estando previsto no Código Penal daquele país. Como o Congresso colombiano tem se negado a modificar a legislação para penalizar este tipo de crime, a mudança aconteceu pela via jurisprudencial.
E agora, no Brasil, o assassinato de mulheres motivado pelo gênero também deixou de ser um crime sem nome ou sem especificidade: a presidente Dilma Rousseff acaba de sancionar lei que o tipifica penalmente. A lei 13.104 modifica o Código Penal de modo a categorizar o feminicídio como um tipo de homicídio qualificado, caracterizando-o ainda como um crime hediondo. Isso significa que a pena para o homicídio de mulheres passa a variar de 12 a 30 anos e que o crime é inafiançável e não poderá ter redução da pena. A lei também estabelece que a pena poderá ser aumentada em caso de assassinato contra gestante ou nos três meses posteriores ao parto; contra menores de 14 anos, maior de 60 ou pessoa portadora de deficiência; e ainda em caso de homicídio na presença de descendente ou ascendente da vítima.
A lei foi comemorada por diversos movimentos de mulheres e dá continuidade à atuação do Estado brasileiro frente ao fenômeno da violência de gênero. Em 2006, a Lei Maria da Penha, aclamada por diversos movimentos como um marco fundamental, trouxera o endurecimento da punição contra agressores de mulheres, bem como mecanismos de proteção e garantia ao bem-estar e segurança das mulheres. Por isso, de acordo com Marisa Sanematsu, pesquisadora e editora-chefe da Agência Patrícia Galvão, a nova lei constitui uma conquista das mulheres.
“O assassinato de mulheres é um crime específico, com um contexto próprio e, por isso, deve ser qualificado de forma específica. O feminicídio é um crime peculiar, pois a relação entre a vítima e o assassino geralmente é íntima. Essa intimidade aumenta a vulnerabilidade. A mulher dorme ao lado do potencial homicida, que sabe a rotina, os horários, o local de trabalho dela. Por isso, há uma maior exposição”, afirma Marisa, destacando os ganhos que a tipificação penal pode trazer. “A lei produz o efeito de mostrar aos órgãos públicos, à Justiça e a outros atores estatais que o crime é grave e deve ser tratado de forma diferenciada. Por isso, o registro oficial do feminicídio, por meio da categorização trazida pela lei, permitirá a produção de estatísticas, possibilitando que tenhamos uma visão mais ampla do fenômeno e ajudando, portanto, a pensarmos e adequarmos as respostas”, completa Marisa Sanematsu.
A real dimensão do assassinato de mulheres é desconhecida. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), entre 2009 e 2011 uma mulher foi morta a cada 90 minutos. No total, quase 17 vítimas fatais por dia. Até 2006, quando da promulgação da Lei Maria da Penha, primava a concepção da “violência doméstica”, restando peso à violência contra mulheres e dividindo a responsabilidade entre vítima e agressor. Os casos podiam ser resolvidos em juizados de pequenas causas, tendo geralmente como forma de reparação o pagamento de cestas básicas ou a prestação de serviços comunitários. A partir de então, o Estado brasileiro passou a ter formas de quantificar o fenômeno, conforme mostra a pesquisa do Ipea. As estatísticas, entretanto, podem indicar limites da ferramenta penal como forma de enfrentamento ao problema da violência contra a mulher. De acordo com o estudo, de 2007 a 2011 no Brasil, a taxa de mortalidade das mulheres não diminuiu. Em 2007, para cada 100 mil mulheres, 4,74 foram mortas; em 2008, a taxa ficou em 5,07; em 2009, 5,38; e em 2011 o índice ficou em 5,43. Dados que, para a Juíza de Direito Aposentada Maria Lúcia Karam, demonstram a ausência de qualquer impacto da Lei Maria da Penha na prevenção de mortes de mulheres resultantes de agressões dolosas.
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“Claramente, os dados revelam também que tal lei não pode ser considerada um marco importante no enfrentamento ao problema. A referida pesquisa nada mais é que uma eloquente demonstração de que a edição de leis penais não evita a ocorrência das condutas por elas criminalizadas. Insiste-se na mesma falsa ‘solução penal’ com a Lei 13104/2015, que acresce às circunstâncias qualificadoras do homicídio o dito ‘feminicídio’”, argumenta Maria Lúcia Karam.
Karam, uma conhecida teórica crítica do direto penal, defende que leis criminalizadoras são incompatíveis com o objetivo de superar preconceitos e discriminações, na medida em que o poder penal é por natureza excludente e discriminatório. Por isso, ela posiciona-se contrária à nova lei do feminicídio. “Trata-se de mais uma lei a constituir lamentável exemplo da cega adesão ao sistema penal como suposta forma de enfrentamento da violência originada de discriminações fundadas na ainda subsistente desigualdade de gêneros. Trata-se de mais uma lei que, aplaudida por muitos ativistas e movimentos feministas, reflete seu paradoxal entusiasmo pela punição de seus selecionados ‘inimigos’”, afirma.
Maria Lúcia Karam também interroga sobre a predileção que movimentos de Direitos Humanos demonstram em relação à linguagem penal. “Movidos pelo desejo de punir seus apontados ‘inimigos’, estes têm contribuído decisivamente para o maior rigor penal que se faz acompanhar exatamente pela crescente supressão de direitos humanos fundamentais; pela sistemática violação a princípios garantidores inscritos nas declarações internacionais de direitos e constituições democráticas; e pela intensificação da violência, dos danos e das dores inerentes ao exercício do poder punitivo”, destaca, refletindo sobre os perigos que se projetam para o campo dos direitos sexuais e reprodutivos. “Se ativistas e movimentos de direitos humanos paradoxalmente concordam em sacrificar seres humanos para comunicar mensagens relacionadas aos direitos humanos – ao querer sacrificar autores de agressões contra mulheres no altar do sistema penal para passar a mensagem de que a violência de gênero é algo negativo –, por que outros ativistas não poderiam fazer o mesmo? Por que, por exemplo, outros ativistas e movimentos não poderiam defender a criminalização do aborto, arguindo que esta seria necessária para passar a mensagem de que o embrião ou o feto têm direito à vida?”, questiona.
Levando-se em conta as diversas desigualdades que marcam o Brasil, Maria Lúcia Karam adverte para os riscos da solução penal para direitos humanos básicos. “Os adeptos e adeptas do sistema penal parecem esquecer – ou mesmo não se preocupar com – o fato de que leis ou quaisquer outras manifestações simbólicas não têm efeito concreto. Leis simbólicas não tocam nas origens, nas estruturas e nos mecanismos produtores de qualquer problema social. Não fosse isso, privar da liberdade; estigmatizar; causar dor e arruinar a vida de um indivíduo, para passar a mensagem de que determinada conduta é negativa ou ‘má’, não parece ser um comportamento harmônico com o conceito de direitos humanos fundamentais. Ao contrário, tal comportamento se ajusta perfeitamente à ideia de um ‘bode expiatório’ que naturalmente será preferencialmente selecionado dentre os mais vulneráveis, que são os pobres, os marginalizados, os não brancos e desprovidos de poder, eventuais autores daquela ‘má’ conduta”, afirma.
Entre os argumentos contrários à nova lei está a ideia de que, com ela, estaria sendo criado um tipo de hierarquia e distinção, como se algumas vítimas fossem mais importantes que outras. No caso da lei do feminicídio, uma crítica muito comum é a que aponta um tratamento desigual entre a vida dos homens e das mulheres, ao alegar que fixar pena maior para o assassinato de uma mulher significa considerá-lo mais grave que o assassinato de um homem. O sexo feminino, então, seria mais frágil? Ou a vida masculina teria um valor menor?.
Tal raciocínio é rechaçado por Maria Sanematsu, da Agência Patrícia Galvão. “A vida de um homem não vale menos que a de uma mulher. São vidas igualmente importantes. No caso do assassinato de mulheres, o que se singulariza é o crime. O delito é que difere. A morte de mulheres segue um roteiro específico, as circunstâncias são geralmente distintas às dos assassinatos que vitimam os homens. As mulheres morrem dentro de casa, no âmbito privado, atacadas por parceiros ou ex-parceiros. Os homens tendem a morrer nas ruas. Os contextos são diferentes. Por isso, a lei é importante, ao colocar em evidência que estamos lidando com um fenômeno específico, que precisa de respostas específicas”, argumenta Marisa Sanematsu, para quem não se trata de olhar apenas pelo lado punitivo. “Acredito na capacidade pedagógica da lei”.
Opositores à lei alegam que a denominação do crime é problemática, uma vez que o Artigo 121 do Código Penal brasileiro já prevê pena de seis a 20 anos de reclusão pelo crime de homicídio, e que as circunstâncias envolvendo o feminicídio já estariam previstas na legislação penal vigente e que, neste caso, não faltam agravantes (motivo fútil, dificuldade de defesa, crueldade) para punir o “feminicida”.
A respeito do feminicídio, não há consenso entre os diversos atores sociais e políticos que participam das lutas pelos direitos das mulheres. De concreto, há uma lei já em vigor e que merece atenção e acompanhamento através dos dados que serão produzidos sobre sua aplicação. O fenômeno da violência de gênero não é novo, e ninguém parece discordar de que seja um grave problema social. O Estado brasileiro tem reconhecido a questão e oferecido respostas, que entretanto não clausuram a discussão nem resolvem definitivamente a questão da violência contra as mulheres ou o homicídio motivado pelo gênero da vítima. Eficaz ou não, o tempo dirá. Contudo, acertada ou não, a medida punitiva não exime o Estado de uma abordagem integral desta manifestação extrema da desigualdade de gênero.
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Fonte: Clam.
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