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quinta-feira, 23 de abril de 2015

Sobre imagens intoleráveis: o episódio Verônica Bolina


A veiculação exaustiva, nas redes sociais, do corpo trucidado da travesti Verônica Molina por meio de imagens que habitam o campo do abjeto levanta questionamento sobre esse mecanismo de denúncia e ativismo político. Ao divulgarmos imagens com sentidos regrados resvalamos em um território no qual não possuímos margem de manobra para operar a mudança pretendida pelos protestos no mundo digital no que diz respeito à outra gramática de produção de imagens de corpos estigmatizados.

O uso clássico da imagem intolerável traçava uma linha reta do espetáculo insuportável à consciência da realidade que ele expressava e desta ao desejo de agir para mudá-la.
Jacques Rancière

Somos todas Verônica

por Rosane Borges,
A exibição, ad nauseum, do corpo de Verônica Bolina com a hastag #SomostodasVerônica# nas plataformas digitais causou-me incômodo imediato. Da perturbação, assomou-se o sentimento de rechaço à medida em que as imagens não paravam de inundar as redes sociais. Num espaço como o facebook em que tudo se mostra, se exibe, onde prevalece a comunicação ubíqua e pervasiva, a hipervisibilidade tornou-se questão capital para a ação política. Sob o influxo da “sociedade transparente”, parte-se do princípio de que mostrar é um potente exercício de denúncia, de protesto que conclama a ação, como se observa no trecho acima referido, do filósofo e crítico de arte Jacques Rancière.

É certo que vem de longa data a exploração de imagens chocantes com propósitos políticos e educativos. Pincemos, do oceano de dados, formas visuais depositadas em nossa memória, construtoras de parte da história, em tempos próximos e distantes: imagens recentes de mulheres e homens agonizando, em estágio terminal, abatidos pelo vírus Ebola na Libéria; vídeo aterrador do linchamento de Fabiana Maria de Jesus, no Guarujá, em São Paulo; cenas trágicas do corpo de Claudia da Silva Ferreira sendo arrastado por carro da polícia no Rio de Janeiro; foto que correu o mundo da menina queimada, fugindo nua após seu vilarejo ser devastado pelos americanos na Guerra do Vietnã; registro da criança em estado de inanição, à beira do esgotamento, enquanto um abutre está à espreita, esperando pelo seu último suspiro… A propósito, esta imagem rendeu o prêmio Pulitzer ao fotógrafo sul-africano Kevin Carter. O feito de Carter levantou uma querela de ordem ética: Qual seria a ação política mais engajada, portanto mais humanista, para o caso em questão: Socorrer imediatamente a criança das garras do abutre ou esperar pelo momento mais “propício” para emprestar à foto um caráter ainda mais espetacular, fazer dela um instrumento de denúncia capaz de derrubar a cortina da indiferença do mundo ocidental? A campanha de indignação que transbordou os limites do circuito profissional exerceu pressão em escala insuportável levando Carter ao suicídio.

Inspirada no pequeno texto do professor e pesquisador Alex Ratts, publicado em seu blog e no facebook, reproduzo a sua oportuna pergunta: “o que fazer diante da imagem do corpo negro e travesti torturado e aviltado? de um corpo feminino ou indígena morto e com sinais de violência? divulgá-la no intuito de confrontar ou sensibilizar?”

A pergunta de Ratts, um guia, entre vários trajetos possíveis, para a reflexão do caso em tela, comporta respostas de vários matizes. Assim, de chofre, arriscaria a responder que não devemos fazer nada diante da imagem porque não precisamos veiculá-la nos termos em que foi produzida, porque em consórcio com o horror e o abjeto. A opção pela não veiculação encontra fundamento em duas perspectivas que se entrecruzam. A primeira dela advém do patrimônio reflexivo alusivo à espetacularização e à inflação de imagens. De acordo com essa perspectiva, a publicidade desenfreada de imagens chocantes acabam caindo na vala comum do banal, destituídas de sua singularidade, esvaziadas, pela lógica do espetáculo, de seus atributos específicos de onde devem emanar os sentidos que evoca. A superabundância desse tipo de imagem “invade, sem possibilidade de defesa, o olhar fascinado e o cérebro amolecido na multidão de consumidores democráticos de mercadorias e de imagens”.

A segunda resposta se apoiaria em um argumento mais denso e poderoso. Mais do que pela saturação de imagens, a banalização do horror se dá por uma via ainda mais insidiosa: à exacerbação de corpos mutilados, torturados, trucidados soma-se o fato de que são corpos incapazes de nos “devolver o olhar que lhes dirigimos, corpos que são objeto de palavra sem terem a palavra”, conforme avalia Rancière.

Discursos circulantes, imagens asfixiantes

Com a indignação de que o caso merece, divulgamos à larga o corpo destituído de Verônica Molina, tivemos acesso a ele, o transformamos em significante que fala. Sem controle sobre os efeitos de sentido já pré-dados, “tornamos” Verônica “visível” em uma situação limite, despossuída de sua condição de gente. Ainda segundo Rancière, o sistema de informação não funciona apenas pelo excesso de imagens, mas pela seleção das pessoas que falam e raciocinam, que são “capazes de descriptar a vaga de informações referentes às multidões anônimas. A política dessas imagens consiste em nos ensinar que não é qualquer um que é capaz de ver e falar

“Falada” pelo carcereiro, pelo delegado e por órgãos do Estado, Verônica Bolina não teve a chance nos devolver o olhar que lhes dirigimos. Fez uma declaração, ao que tudo indica forçada nos muros da carceragem, afirmando que assumia integralmente a culpa pelo ocorrido, pois estava ensandecida. Disse ainda que não tinha sido torturada, violentada ou coisa parecida. O ocorrido (a violabilidade do seu corpo) foi um corretivo merecido pela sua fúria desmedida que resultou na mutilação da orelha do carcereiro. Ponto final. Só faltou dizer que estava no paraíso.

Independente dos fatos (Verônica foi presa por acusação de agressão a uma idosa), sobre os quais não vou me ater aqui, o que importa para este debate é tentarmos pensar na circulação de determinadas imagens que, na trilha de Ratts, nos leva, em nome de um compromisso horror”.

Ainda segundo Rancière, as imagens mudam nosso olhar quando não são antecipadas por seus sentidos e não antecipam seus efeitos. Até onde consegui ver, a circulação dos corpos de Verônica Bolina, ainda que impulsionada pela indignação e pela tentativa de uma ação restauradora, antecipa um sentido e um efeito que vem se mostrando danoso para a constituição plena da humanidade de todas aquelas que são também Verônicas. O discurso da denúncia no campo imagético deve, obrigatoriamente, promover a mudança do olhar, muitas vezes acostumado a ver o mesmo (a desviante, a “travesti louca” que rouba, agride e não respeita a Lei) e a não se escandalizar com o comum e “normal” do mundo (as estratégias de coerção para conter as desviantes, as foras-da-lei, o espúrio da sociedade).

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Sobre a autora:
1 Jornalista, pós-doutoranda em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, professora do departamento de Comunicação da UEL, integrante da Cojira-SP. (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial).

Fonte: Geledés.

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