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quinta-feira, 2 de abril de 2015

As novas famílias

Família Motta Machado – Fábio Seixo

Conheça as histórias, repletas de alegrias e conflitos, que representam algumas das configurações familiares cada vez mais comuns no Brasil

Por Roberta Salomone, em O Globo,
Marcos amava Fabio que sonhava em ter um filho. Sem planejar, o casal acabou adotando dois. Carol queria ser mãe, e Kika também. Lilian não tinha namorado ou marido, mas resolveu engravidar. A mãe foi a companhia em todas as consultas médicas. Com Adriano, não conhecer pessoalmente os sogros e ter tido uma educação bem diferente da mulher, a canadense Eve, não foram motivos para impedir o casamento deles. Fabiana tinha dois filhos; Gian, outros dois. Foram morar juntos com os quatro, a mãe dela, e ainda tiveram mais dois meninos. Estas histórias, que você conhece aqui embaixo, talvez até sejam difíceis de serem entendidas logo de primeira, mas representam algumas das configurações familiares cada vez mais comuns no Brasil, que já ultrapassam, segundo o último Censo do IBGE, o tradicional núcleo mãe, pai e filho.

— São arranjos que, de uma forma ou de outra, já existiam, mas não eram expostos ou as pessoas preferiam não comentar — analisa a psicanalista Mônica Donetto Guedes, autora do livro “Em nome do pai, da mãe e do filho’’, que destaca a importância do debate dentro e fora do contexto familiar. — Acho que só assim é possível amenizar os problemas, que serão inevitáveis em formações tão diversas e complexas.

Se antes eram assunto tabu, as novas famílias servem de inspiração para novelas como “Babilônia”. Em contrapartida aos fatos reais e da ficção, um polêmico projeto de lei, denominado Estatuto da Família e “ressuscitado” na Câmara dos Deputados, determina que somente a união entre um homem e uma mulher pode constituir uma família, proibindo a adoção por casais homoafetivos. O resultado de uma enquete do portal da Câmara, no ar desde o mês passado, mostra que 53% dos que responderam concordam com a definição de família proposta pelo projeto.

— Os desafios tendem a ser minimizados ao longo do tempo, mas o preconceito existe e é preciso um cuidado especial com as crianças que têm famílias fora do convencional — diz Junia Vilhena, professora de Psicologia Clínica da PUC-Rio.

Enquanto isso, internautas se mobilizam contra o estatuto usando hashtags como #emdefesadetodasasfamílias e #nossafamiliaexiste.

— O casamento não deve ser encarado como uma questão de gênero. O elo do afeto é que caracteriza uma família — opina Carlos Tufvesson, coordenador especial da Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio, casado há 20 anos com o arquiteto André Piva.

— Não dá para fechar os olhos para a realidade. Estas famílias existem, estão solidificadas e merecem respeito — afirma a advogada Patrícia Gorisch, presidente da Comissão Nacional de Direito Homoafetivo do Instituto Brasileiro de Direito de Família.
Família Motta Machado

A chegada de Tereza foi exatamente como o planejado: em casa, no bairro de Laranjeiras, numa tarde de agosto. Sob a supervisão da enfermeira obstétrica Heloísa Lessa e ao som de Frédéric Chopin, Carol sentiu as primeiras contrações durante a manhã. Ao longo de três horas, andou de um lado para o outro, se acalmou sentada na cadeira de balanço e achou conforto em cima de uma bola de pilates. Ao lado dela durante todo o trabalho de parto, sem anestesia, estava Kika, também mãe de Tereza.

— Era tanta expectativa e emoção que não dá nem pra descrever o que sentimos — conta a atriz e artista visual Kika Motta, de 33 anos, mãe de primeira viagem, como a mulher, a atriz e bailarina Carol Machado.

Carol é facilmente reconhecida. Fez sucesso em novelas como “Top Model” e “Vamp”, exibidas pela TV Globo entre o fim dos anos 80 e início dos 90, quando ainda era uma adolescente. Na novela que tinha Malu Mader como protagonista, ela era Jane Fonda, uma das filhas do surfista Gaspar, divertido personagem do ator Nuno Leal Maia.

Carol e Kika se conheceram tempos depois, quando eram vizinhas, mas só começaram a namorar após um reencontro, entre uma e outra postura nova aprendida numa aula de ioga. Há oito anos, dividem o mesmo teto.

— Sempre pensamos em ser mães e ficar grávidas. Por uma questão de idade, a escolhida para engravidar primeiro fui eu — explica Carol, de 39 anos, que se submeteu a três inseminações com esperma de doador anônimo.

O tratamento teve início três anos atrás numa clínica em São Paulo. Na primeira tentativa, Carol engravidou, mas perdeu o bebê aos quatro meses de gestação. A segunda não deu certo e, na terceira, veio Tereza, uma linda e sorridente menina de olhos azuis, que nasceu com três quilos e 49 centímetros.

— Como não conhecíamos outro casal que tivesse passado pelo mesmo processo, o caminho foi bem mais difícil— lembra Kika.

As duas revelam que têm forte ligação com seus respectivos pais e que pensavam muito em como seria criar uma criança sem a figura paterna. Estudaram muito, consultaram especialistas e fizeram novas amigas e amigos com histórias semelhantes.


Antes do nascimento da filha, prepararam um verdadeiro dossiê, organizado com a ajuda do pai de Kika, que é advogado. Na mesma pasta, reuniram a união estável das duas e relatórios dos profissionais que acompanharam o tratamento e o parto, além de menções aos casos de famílias formadas por casais gays que, em outros estados do Brasil, conseguiram, sem qualquer dificuldade, a certidão de nascimento dos filhos no nome deles.

— Fomos o primeiro casal homoafetivo do Rio a conseguir o registro de nascimento direto no cartório, sem precisar recorrer à Justiça. Foi uma conquista e tanto — comemora Carol, que deu à Tereza os sobrenomes menos conhecidos das mães: Rezende Eichler.

Aos 7 meses, Tereza Rezende Eichler começa a engatinhar e descobrir novos cantos da casa onde a família mora com os gatos Café, Cuca e Gaia. Tereza dorme num futtonno chão do quarto, que foi decorado pelas mães com diferentes peças de artesanato, como os planetas comprados em Londres que estão pendurados no teto e personagens do Circo Nacional da China, presente de um amigo, que enfeitam a parede. Em cima de uma cômoda ficam várias fotos das três.

Enquanto Carol amamenta e curte a licença-maternidade bem pertinho da filha, Kika, que adora cozinhar, faz o último ano do curso de Escultura na UFRJ. As duas têm uma companhia de teatro e dança, a Finis Cinis, e planejam trabalhos juntas.

Com Tereza, elas vibram com cada novidade, como a chegada do primeiro dentinho e a estreia na aula de natação, na semana passada. Mas também não escondem que ainda ficam desconfortáveis ao falar da vida pessoal.

— A gente não tem obrigação de ficar o tempo todo dando satisfação pra todo mundo. Dependendo da abordagem, pode incomodar, sim — conta Carol, lembrando do dia em que pensaram que Kika era babá de Tereza ou quando ela mesma foi questionada sobre “quem era o que da menina’’.

— As pessoas precisam entender que a família tem um significado muito mais amplo e que envolve um sentimento lindo: o amor — resume Kika, que já se prepara para engravidar no ano que vem. — Agora vai ser a minha vez.

A canadense Eve, Adriano e a filha Yanis – Fábio Seixo

Família Chagas Bélanger

A quadra da Mangueira já estava lotada para sua tradicional feijoada. O taxista Adriano Chagas saiu cedo de casa, em Jacarepaguá, e lá encontrou um grupo de amigos que, como ele, é fã de samba. Logo que chegou, avistou uma loura com longas madeixas e cara de gringa. Matriculado há dois meses num cursinho de inglês, resolveu colocar à prova o que tinha aprendido.

— Mandei um “what’s your name?” pra ver no que dava. Estava muito barulho e foi aí que comecei a falar mais alto. Ela olhou pra mim rindo e perguntou: “Você não prefere falar em português?” Fiquei com a cara no chão — lembra Adriano, de 37 anos.

Em bom e claro português, o papo foi longe, e logo ele ficaria com Eve Bélanger. Um mês depois, os dois começaram a namorar e, em pouquíssimo tempo, já alugavam juntos um apartamento no Bairro de Fátima. Se Eve entendia tudo o que Adriano dizia, o mesmo não podia se afirmar de Adriano, que achava que a namorada falava muito enrolado.

Nascida e criada no Canadá, Eve tinha pisado pela primeira vez no Brasil anos antes. Trabalhava numa ONG em Montreal, onde morava, e foi convidada para participar de um estágio de dois meses na cidade de Nova Friburgo, em 2000.

— Depois disso, voltei algumas vezes. Não demorou muito pra que eu descobrisse que o meu lugar era aqui — conta Eve, de 41 anos, que em 2005 desembarcou no Rio com todo o dinheiro que tinha guardado até então e uma mala com algumas roupas e um colchonete. — Eu pensava que se tudo desse errado, pelo menos eu teria onde dormir.

Com a ajuda dos amigos, ela deu aulas de inglês e francês e foi trabalhar no AfroReggae como coordenadora de relações internacionais do grupo. Em tempo recorde, virou a mais carioca das cariocas. Frequentava bailes funk nas comunidades e aprendeu a sambar, dançar gafieira e tocar percussão.

Em 2010, o casamento com Adriano aconteceu num cartório em Copacabana, com a presença de alguns familiares e dos amigos mais próximos. Eve usou um vestido comprido tomara que caia branco, mesma cor da camisa de Adriano. No pescoço, tinha um lenço azul indiano; nas mãos, um buquê com flores vermelhas. Dois anos depois, nascia Yanis, uma bebê carequinha, que logo ganharia cabelos pretos bem cacheados.

A escolha do nome da filha é um capítulo à parte. Ele gostava de Pietra e ela achava um absurdo alguém ser chamada de “Pedra”, a tradução do italiano. Eve sugeriu Amélie, e ele soltou uma sonora gargalhada, dizendo que Amélia não era do seu agrado. Yanis, que significa presente de Deus e tem origem hebraica, foi aceito com louvor, mesmo sendo uma opção mais usada para meninos.

— Quando perguntam o nome todo dela, eu nem soletro mais. Pego a carteirinha do plano de saúde e mostro. É mais fácil — confessa o pai.

Filho de uma dona de casa e de um taxista, Adriano vem de uma família simples e grande, com quatro irmãos e três irmãs, mas titubeia quando perguntado se vai ter outro filho. Ela quer, ele se preocupa com as contas. A família mora num conjugado na Lapa tomado por brinquedos de Yanis. Eve continua a dar aulas para brasileiros e estrangeiros e ele é sócio do Guia da Boa, site de programação cultural.

Os olhos azuis e a pele alva costumam chamar a atenção por onde Eve passa, ainda mais quando está ao lado do marido e da filha.

— Fico surpresa quando alguém faz algum comentário, mas não ligo. Quero que Yanis cresça aceitando as diferenças culturais e raciais e tenha a oportunidade de ter uma educação igual ou melhor do que a minha — diz Eve, formada em Artes e Ciências na Universidade de Montreal e também fluente em espanhol.

A bagagem da mulher, que já visitou 29 países, entre China, Marrocos e Índia, ampliou os horizontes do marido.

— Nunca tinha ido ao teatro antes. Ela me mostrou um outro mundo — elogia ele, que nunca saiu do país e que conhece os sogros apenas por Skype. — Hoje até acho que entendo o que eles falam, em francês, mas como não consigo pronunciar as palavras, a gente se comunica por gestos.

O choque cultural entre os dois existe, não há como negar. Enquanto ela reclama que os brasileiros são machistas, ele não aguenta a insistência da mulher para ir à praia, mesmo nos dias nublados.

— Fazer o quê, né? Tenho que entender. Ela passou 30 anos no Polo Norte. E eu nem quero imaginar o que seja isso.

Lilian e Rafael Gouvêa: gravidez depois de inseminação – Fabio Seixo

Família Gouvêa

Semanas antes de entrar na sala de parto, Lilian Gouvêa já tinha decidido que a companhia naquele momento tão especial seria a da sobrinha e afilhada Natália, na época com 23 anos. Com ela, Lilian tinha certeza de que ficaria tranquila e também que teria ótimas fotos para guardar para o resto da vida. Rafael chegou cheio de saúde, às 7h54m do dia 16 de junho, com 3,630 quilos e 49 centímetros.

— De repente me vi com 40 anos, sem marido ou namorado e qualquer perspectiva de ter um filho. Pensei em adotar, até fiz uma proposta para um amigo gay, mas acabei tomando coragem para bancar uma produção independente — conta a designer de 50 anos, que engravidou aos 46, depois de três fertilizações in vitro com espermas de doadores anônimos.

A descoberta de uma endometriose (doença caracterizada pela presença do endométrio, tecido que reveste o interior do útero, em outros órgãos, como trompas e ovários) fez com que Lilian começasse a pesquisar sobre o assunto. Consultou psicólogo e ginecologista, fez uma avaliação criteriosa e recebeu sugestões de clínicas para iniciar o tratamento.

— Claro que conversei com a minha família antes, mas minhas duas irmãs achavam que eu era louca e que não tinha noção de como seria difícil cuidar de uma criança sozinha — lembra Lilian, que contou com a presença da mãe, Dalva, de 79 anos, em todas as consultas médicas.

Na primeira tentativa, três embriões foram implantados. Quando voltou para casa, um grupo de amigas a esperava com salgadinhos e refrigerantes. Todas tinham por baixo das roupas travesseiros que imitavam barrigas de grávidas. Doze dias depois da festa, ela descobriu que o método não tinha funcionado:

— Fiquei mal, arrasada, e pensei em desistir, mas três meses depois começaria tudo de novo. A diferença é que dessa vez não anunciei pra todo mundo como fiz antes. Pouquíssimas pessoas souberam.

Mais uma vez, os embriões não vingaram. A despesa alta — R$ 15 mil por procedimento, divididos em várias parcelas no cartão de crédito — quase fez com que ela abandonasse o sonho de ser mãe. Um ano depois da primeira fertilização, Lilian descobriu que seu plano de saúde poderia cobrir as despesas do tratamento em clínicas conveniadas. Foram outros três embriões, cinco dias de repouso total e, 15 dias depois, um exame confirmaria a gravidez, que seguiu tranquila e sem complicações.

Com o nascimento de Rafael, o apartamento em Ipanema, onde Lilian morava sozinha, ganhou mais um quarto depois de uma reforma. Ela escolheu não ter babá, amamentou até os nove meses e carrega o filho debaixo do braço para cima e para baixo. A rotina dos dois começa bem cedo, às 7h, quando, faça sol ou chuvisco, eles vão para a praia, onde Lilian pratica beach tennis e vôlei, e o menino, futebol. Voltam para almoçar em casa e vão a pé para a escola, de ensino católico tradicional, que aceita famílias com diferentes configurações e que, em 2014, não comemorou os dias dos pais e das mães.

— Não escondo de ninguém a história do meu filho, muito menos dele. Um dia, um amiguinho perguntou se era verdade que ele não tinha pai. Foi aí que ele respondeu: “Tenho sim. O meu paidinho’’, sobre o tio e padrinho.

No dia a dia, as decisões a serem tomadas sozinha costumam pesar.

— Quando ele fica com febre. Esta é a hora que eu realmente me desespero. Penso em como seria bom dividir as responsabilidades com outra pessoa ou ter uma segunda opinião. Mas, olha, isso não é nada que tire o meu sono — garante. — Se tem uma coisa que me incomoda é quando alguém me chama de vovó. Isso eu não gosto.

Entre as amigas, quase todas já com netos, Rafael, que acompanha a mãe nos almoços e em viagens, virou o xodó.

— Senti uma imensa felicidade com a chegada do Rafinha. Ele não só mudou a vida da Lili, como a nossa também — conta a parceira do vôlei Maria Darci Giosa.

— É por isso que digo: o que mais posso querer? — pergunta-se Lilian, com os olhos marejados, enquanto o filho de 3 anos e 9 meses mostra os brinquedos que espalhou pelo chão da sala. — Rafael me dá as maiores alegrias, mas o meu objetivo é prepará-lo para o mundo. Quero passar pra ele os valores em que acredito, com verdade e amor, para que ele possa voar bem longe e ter orgulho da família que tem.

Família Torres Prodan – Fábio Seixo / O Globo

Família Torres Prodan

Um reencontro por acaso num shopping em Botafogo virou do avesso a vida de Fabiana Torres e Gian Prodan. Os dois se conheceram quando ainda eram casados. Frequentavam a casa um do outro, eram amigos dos cônjuges um do outro e acabaram se separando na mesma época. Ela ficou sozinha, cuidando dos dois filhos pequenos. Ele também. Sem notícias há algum tempo, o quase esbarrão na escada rolante rendeu uma conversa animada, um convite para a ceia de Natal e, pouco tempo depois, um namoro.

— A gente tinha a mesma configuração de família desfeita e passava por desafios semelhantes, com a responsabilidade de criar, cada um, duas crianças, sem a ajuda de mais ninguém — conta Fabiana, de 43 anos, mãe de Leon, hoje com 17 anos, e Gabriel, de 15.

Juntar quatro meninos não foi tarefa das mais fáceis para o casal. Era ciúme de um lado e implicância do outro. Com uma diferença de idade pequena (os filhos de Gian são Pedro, de 20 anos, e Gianluca, de 16), eles logo ficariam amigos. Mas antes disso os pais já juntavam as escovas de dentes.

— Tem gente que quase enlouquece com um único filho. Você pode imaginar o que é criar seis? — questiona o patriarca, de 58 anos, que teve com Fabiana Nicolas, de 6 anos, e Alessandro, de 3. — É difícil, claro. Ainda mais na minha idade. Não tenho mais a mesma energia de antes. Bastam apenas 15 minutos, e eles conseguem deixar tudo fora do lugar.

Para amenizar o trabalho dos pais, cada um tem as próprias tarefas domésticas, ainda que nem sempre cumpridas. Leon limpa o quintal, corta a grama e cuida dos animais. Pedro dá comida para os caçulas. Gianluca ajuda no lazer dos menores, organizando partidas de futebol. E Gabriel vai ao banco e ao mercado sempre que é preciso.

A (grande) família Torres Prodan mora com um gato e dois cachorros (já foram 12!) numa espaçosa casa de quatro quartos num condomínio no Itanhangá. Cinco anos atrás, a mãe de Fabiana, Maria Dolores Torres, de 84 anos, deixou a cidade natal de Recife para se juntar aos oito.

— Pelo menos, tenho companhia sempre. É uma bagunça, mas eu gosto — sussurra Maria Dolores, afundada numa poltrona vermelha, enquanto os netos correm de um lado para o outro.

— Está sempre tudo tão desorganizado que nem me estresso mais. E qualquer saidinha é um evento. Sei que as pessoas olham pra gente com dó, e pensam: “Coitados deles, quanta despesa devem ter…” — diz Fabiana, que mantém um grupo no WhatsApp com os meninos para (tentar) tomar as rédeas de tantas funções.

De fato, as contas são bem altas, e o casal sua a camisa para não ficar no vermelho. Fabiana é estilista e faz consultoria de moda, já Gian tem seu próprio negócio, uma empresa de tecnologia. As despesas mensais chegam, em média, a R$ 15 mil. Tirando o filho mais velho, que cursa Sistemas de Informação na Universidade Federal Fluminense (UFF), todos os outros estudam em escolas particulares. As compras são feitas, na maioria das vezes, em grande quantidade, e de acordo com as ofertas do dia.

— O meu sonho é que eles consigam pagar, pelo menos, as próprias despesas. Conto os dias para isso acontecer — afirma o pai, enquanto puxa o caçula da beira da piscina. — É uma loucura. Ele não para um segundo.

Gabriel, o mais novo do casamento anterior de Fabiana, acha divertido fazer parte de uma família, em suas próprias palavras, “confusa”, e admite ter preguiça de explicar “quem é irmão de quem ou quem é pai de quem”.

— Demora, e nem sempre os outros entendem de primeira — justifica.

Recentemente, Gianluca, filho do primeiro casamento de Gian — único que não participou da sessão de fotos —, foi morar com o padrasto em Teresópolis. Leon, o mais velho de Fabiana, costuma ficar de segunda a sexta-feira na casa do pai, na Barra.

— Eu amo os meus irmãos, mas preciso de sossego, sabe? O negócio é que acabo sentindo tanta falta deles que venho todo fim de semana pra cá — conta Leon, com os olhos vidrados no videogame que jogava.

— Costumo dizer que as tarefas mais fáceis são as mais complicadas para gente. Todos os casais que conheço reclamam da rotina, né? Vou te falar que era tudo o que eu queria na vida — desabafa Fabiana.

Fabio, com o buldogue Hugo, Marcos e os filhos Felipe (à esquerda) e Davidson – Fabio Seixo

Família Gladstone Canuto

Já era noite de uma quarta-feira quando Fabio Inácio Canuto saiu do trabalho, na Cinelândia, rumo à Lapa. Não demorou a encontrar o lugar que procurava, no terceiro andar de um antigo sobrado da Rua Mem de Sá. Um tanto desconfortável, sentou-se numa das últimas filas. A pregação já tinha começado e ele ouviu com atenção cada frase dita pelo pastor. Era a primeira vez que pisava numa igreja em que, segundo ele, era recebido sem qualquer questionamento ou recriminação.

— Foi uma sensação de alívio e acolhimento que nunca tinha sentido antes — lembra o administrador de 35 anos sobre a primeira vez na Igreja Cristã Contemporânea. — Tinha uma noiva e nasci numa família evangélica. Fiz tudo que você pode imaginar para achar uma “cura” e, durante muito tempo, fui obrigado a esconder a minha homossexualidade.

Na igreja da Lapa, gays eram muito bem-vindos, e as visitas de Fabio se tornaram cada vez mais frequentes nos meses seguintes. Ele fez novos amigos e acabou também arrumando um namorado: o pastor.

— Não foi exatamente amor à primeira vista, mas um encontro especial que virou um compromisso de um ano e meio, noivado e casamento — diz Marcos Gladstone, de 39 anos, que fundou a igreja em 2006 e hoje tem a ajuda do marido nos cultos e na administração dos nove templos, no Rio, em Belo Horizonte e em São Paulo.

O casório dos dois, o primeiro entre pastores homossexuais do país, aconteceu em novembro de 2009. Os dois reuniram 300 convidados numa casa de festas no Alto da Boa Vista, com direito a decoração com flores, bolo de dois andares e lua de mel na Costa do Sauípe, na Bahia. No ano seguinte, Fabio convenceu Marcos de que já era hora de dar continuação à família, e entraram juntos com um processo de adoção. Na primeira reunião, eram os únicos declaradamente homossexuais entre outros 30 casais. Eles dizem que “chegou a bater um desânimo”, mas, apenas duas reuniões depois, receberam uma ligação falando de Felipe.

Quando definiu o perfil da criança que estava disposto a adotar, o casal não fez restrição de sexo e cor, mas teria que ter até 7 anos — idade que o menino completaria em 15 dias. Correram para conseguir a autorização para visitá-lo num abrigo em Santa Teresa, que fecharia em breve, e onde também estavam quatro outros garotos. A aproximação foi lenta e cercada de desconfiança por parte de Felipe, que fora abandonado pela mãe anos antes.

— Ele falava pouco e era muito observador. No primeiro fim de semana que ficamos juntos, perguntei se ele tinha reparado que a nossa família seria diferente, sem uma mãe. Ele respondeu que sim e que não se importava. Foi o dia mais feliz da minha vida — conta Fabio.

Um mês depois, um telefonema de um funcionário da Vara da Infância, Juventude e Idoso avisava que outro garoto do abrigo estava entrando em processo de depressão desde a saída de Felipe. Não era plano de Marcos e Fabio, mas não é que Davidson também foi adotado?

Hoje, os quatro e o buldogue francês Hugo, de 8 meses, moram num apartamento alugado num condomínio na Barra, onde cada um dos meninos, de 11 e 12 anos, tem seu quarto. Felipe e Davidson estudam em escolas particulares, fazem aulas de futebol três vezes por semana, amam jogos eletrônicos e são cercados de mimos pelas duas avós, que se revezam nos fins de semana na ajuda com os netos. No dia a dia, nem tudo é só alegria. Pai Fabio e pai Marcos (como os dois são chamados) são alvo de crítica e preconceito.

— A gente sempre é a atração do aeroporto. É um tal de chamar supervisor e mostrar documento que você não acredita. É um parto para embarcar — diz Marcos, também advogado e integrante da Comissão de Direito Homoafetivo da OAB/RJ.

Para os patriarcas da família Gladstone Canuto, uma rotina com regras bem definidas é fundamental.

— Não dá para negar que nossos filhos têm histórias de muita dor e sofrimento. Por isso, fazemos terapia em família uma vez por semana. Falaram para a gente que a ordem tinha que ser instaurada já no início, porque senão os dois dominariam a casa. Viramos dois sargentos, mas no fim de semana a brincadeira é liberada — garante Fabio, que agora sonha em adotar uma menina. — Só falta uma bebê para a família ficar completa. Mas se vierem mais, tudo bem também.

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Destaque: Família Motta Machado

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