Até que se prove o contrário, o substantivo “calunga”, etnia de origem africana, remanescente de quilombos em Goiás, aparece pela primeira vez como verbete historiográfico do livro Sombra dos Quilombos, que publiquei em 1974, onde a temática “quilombo” foi também estudada pela primeira vez em livro no Centro-Oeste e as comunidades calungas aparecem como “Negros no Leste Goiano”, já na voz do povo chamado nordeste, objeto de “lembranças” no livro Intersecção Goiás-Bahia (1971), do escritor, membro da Academia Goiana de Letras, Emílio Vieira. Em finais do século passado, numa cansativa dissertação de mestrado na UFG, abordei o instigante tema “calunga”, com interesse e preocupação que ele desperta, ao lado de quase 100 outras comunidades negras, quilombos ou só remanescentes no Centro-Oeste do Brasil, resultando no livro Quilombos do Brasil Central: violência e resistência escrava, em 2ª edição (2008), onde o assunto é vasto e somente os ricos significados da palavra calunga, que pode ser escrita com “K” na origem africana, por certo justificam a obra.
Por Martiniano J. Silva,
Agora, mais de 15 anos depois, leio no jornal O Popular, Goiânia, de 4 de abril do ano em curso, atraente reportagem do jornalista Cleomar Almeida, a triste informação de que em Cavalcante, 510 km de Goiânia, crianças calungas são vítimas de abuso sexual e vivem sob o medo dentro e fora da comunidade, transformadas, portanto, em “escravas do medo”, submetidas a ameaças e à lei da mordaça, segundo manchete-texto da reportagem. Se não bastasse a escravidão clássica do escravismo de alguns séculos, até as crianças da comunidade Calunga viraram escravas dos mais esquisitos abusos, fato que não é novidade como se poderia imaginar, pondo Cavalcante inclusive na rota de um dos mais execráveis tipos de turismo, o de ordem sexual, ainda muito ativo e explorado pelo capitalismo neoliberal recente, mantenedor de diversas modalidades de escravidões, já estudadas e comprovadas por consistentes estudos.
O absurdo que estamos assistindo em Cavalcante é apenas o que se aflora do que ocorria e se escondia no velho isolamento da comunidade Calunga, onde injustiças e abusos contra crianças e até adultos, não são somente de âmbito sexual, podendo ser comprovados a partir da luta temerária desse povo para adquirir a titulação das terras onde tem posse secular, não só em Cavalcante, notando-se que o Estado de Goiás, a pretexto de resolver o caso, já reconheceu o território ocupado por esses remanescentes de escravos como sítio histórico, abrigando o Patrimônio Cultural Calunga, estendido por 230 hectares de Cerrado, de onde, sobretudo a mocidade, em razão do forte crescimento populacional e desenvolvimento político-econômico da região, vem saindo para centros urbanos adequados à busca de trabalho e estudo, como Cavalcante, por exemplo, onde crianças e adolescentes, se não bastasse o do medo, transformam-se em escravas principalmente de abusos sexuais, vendo-se, a guisa de ilustrar, que estes crimes deploráveis, além de serem voz do povo, objeto de várias ações propostas pelo Ministério Público e abalizadas informações do Conselho Tutelar da cidade, são visíveis nos indiscutíveis dados estatísticos exibidos pela reportagem, curiosamente verificados em tempo superior ao que se pensa.
O caso é tão grave que Joel Carvalho, ativista do Movimento Negro, consoante informa a reportagem, chega a implorar: “Estamos pedindo socorro, nos ajudem a defender as nossas crianças quilombolas, que, aqui, vivem a violência e opressão”; enquanto o descrédito público em que vive o país, alcança a advogada Wilisa Quiarato, dizendo: “O Ministério Público, que é o fiscal da lei. Para mim, neste ponto, é inoperante”; fato que, sem dúvida, incitou o Ministério Público Goiano a reagir e a representante dele em Cavalcante, Úrsula Catarina Fernandes Siqueira Pinto, a replicar: “De todos os casos que chegam ao conhecimento do MP, há ofícios pedindo a instauração de inquérito policial e cobrando a remessa”.
Aliás, de tão repugnante, a OAB-Goiás também entrou no caso, a deputada Adriana Accorsi, presidente da Comissão de Segurança Pública, vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, idem, não podendo esquecer que o jornal citado chegou a publicar um veemente editorial, pedindo proteção aos calungas, que ouso transcrever:
“Calunga é uma palavra de múltiplos significados. Ela dá nome a um tipo de boneca de pano utilizada na procissão do maracatu, mas pode também ser sinônimo de cemitério na umbanda. Significados tão distintos, mas que de alguma forma ilustram simbolicamente o atual momento do povo de mesmo nome que vive no Nordeste goiano.
Remanescente de quilombolas que fugiram da escravidão e conseguiram perpetuar suas famílias no isolamento da sociedade, as mulheres calungas vivem hoje aterrorizadas pelos estupros que vêm ocorrendo sistematicamente em Cavalcante. Muitas delas preferindo o silêncio para não serem sentenciadas à morte pelos seus algozes.
Com suas cachoeiras, a região de Cavalcante tem atraído cada dia mais turistas e já suspeita-se que o turismo sexual também tenha chegado por lá. Mas a maioria dos casos investigados é de abusos que teriam sido praticados por membros da própria comunidade, incluindo até lideranças políticas.
Esta situação requer uma atenção especial por parte das forças policiais, do Judiciário e dos organismos de proteção social. O isolamento geográfico e a miséria financeira dos calungas não podem ser obstáculo para que esses casos sejam devidamente esclarecidos. Um povo de origem tão sofrida, descendente de um período amargo do País, não pode ser abandonado à própria sorte”.
Espero que este firme Editorial e outras várias manifestações de apoio ao povo calunga, especialmente às suas crianças e adolescentes, não virem somente retórica de um momento de violência exacerbada. Notícia do dia da circulação do jornal. De todo modo, porém, deixo aqui o meu agradecimento à direção do O Popular e ao seu hábil repórter Cleomar Almeida, por motivarem a oportunidade de também fazer o meu protesto e manifestar o meu repúdio. O poeta Horácio, nos desmandos romanos, escreveu que há um limite para todas as coisas (Est modus in rebus).
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(Martiniano J. Silva, advogado, escritor, membro do Movimento Negro Unificado (MNU), da Academia Goiana de Letras, IHG-GO, UBE-GO, AGI, mestre em História Social pela UFG, professor universitário, articulista do DM (martinianojsilva@yahoo.com.br))
Fonte: DM.
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