Por Jarid Arraes,
Cada Um Na Sua Casa (Home, 2015) é a mais nova animação da DreamWorks e se destaca por sua protagonista: Tip, uma garota negra com cabelo crespo. Enquanto protagonistas mulheres ainda aparecem de vez em quando em certas animações – em especial aquelas sobre princesas e fadas dirigidas ao público feminino – protagonistas negros, independente do sexo, são raríssimos. Cada Um Na Sua Casa, então, quebra várias regras, já que não apenas coloca uma menina negra como protagonista, mas o faz em um filme de aventura e comédia que visa ser assistido por toda a família.
Imagem: Divulgação
A trama segue a história de Oh, um alienígena Boov. Devido à ameaça de uma outra raça alienígena chamada Gorg, os Boovs resolvem se refugiar na Terra. Com sua tecnologia avançada, eles movem todos os seres humanos para a Austrália, de forma que possam habitar o restante do planeta. Acontece que Oh não se encaixa muito bem entre os outros da sua espécie; os Boovs são antissociais, estritos e rígidos, enquanto Oh gosta de brincar e se socializar em seu tempo vago. É por isso que ele resolve dar uma festa de chegada à sua nova casa; ao enviar o convite, no entanto, Oh acidentalmente manda sua localização para toda a galáxia, incluindo os Gorgs. É assim que ele se torna um fugitivo de sua própria sociedade e acaba encontrando Tip, uma garota humana que, curiosamente, foi deixada para trás e foi separada de sua mãe. Juntos, eles partem em uma jornada para fugir dos Boovs, encontrar a mãe de Tip e, quem sabe, até resolver o conflito alienígena com os Gorgs.
Entre o choque cultural entre os costumes humanos e os dos alienígenas, o filme se desenvolve em uma trama de pluralidade, com ensinamentos sobre companheirismo, esperança, convivência com as diferenças e sobre a imperfeição humana. As piadas com esse embate cultural são plenas, sempre enfatizadas por Oh, que muda de cor de acordo com suas emoções – azul quando está triste, amarelo quando sente medo, verde quando está mentindo, ou até mesmo de várias cores quando não tem certeza de suas emoções. Assim como Oh, Tip é uma garota que também se sente excluída, reclamando sobre como é difícil fazer amizades com outras garotas na escola. Embora Tip nunca se aprofunde em sua história, a animação deixa claro que ela se sente sozinha e que sente muita falta de sua mãe.
De fato, Tip é uma personagem muito especial. Uma adolescente negra que se muda com sua mãe de Barbados para os Estados Unidos e que tem diversas qualidades positivas a serem assimiladas pelas crianças. Na sua personalidade, Tip é inteligente, determinada, independente, corajosa e, pelo menos em um momento do filme, se diz nerd – ou seja, é uma garota que não gasta nenhum momento do enredo com clichês machistas, já que não se encaixa nos estereótipos que estamos acostumados a ver sobre meninas. Além disso, ela se veste com roupas confortáveis, não passa por nenhuma tentativa de hipersexualização e ainda exibe um belíssimo cabelo crespo natural, que ela faz questão de usar solto e arrumar com penteados diferentes.
Quando Valente, Frozen e Malévola estouraram nas bilheterias, falamos sobre a importância de haver mais protagonistas femininas independentes e que se relacionam com outras mulheres de forma positiva, seja pela relação entre mães e filhas ou entre irmãs. Apesar dos três filmes serem ótimos exemplos de uma forma mais realista e não-sexista de retratar mulheres na ficção, a questão racial continua sendo extremamente problemática, já que todas as protagonistas citadas são brancas.
No enredo da animação, Lucy, a mãe de Tip, é uma mulher independente que garante uma boa vida para si e sua filha nos Estados Unidos. A relação de ambas é muito bonita. E é excelente encontrar relações positivas entre mães e filhas, já que há tantas animações em que as figuras maternas são inexistentes ou substituídas por madrastas perversas. Tip e Lucy se amam e se bastam e essa certamente é uma lição valiosa tanto para as crianças quanto para os adultos, pois existem muitas mulheres independentes e mães que criam seus filhos sozinhas e elas certamente merecem reconhecimento e representatividade.
Porque representatividade importa!
(Imagem: Reprodução / Facebook).
Por falar em representatividade, ela é, no fim das contas, o ponto mais alto da animação. Tip é uma das pouquíssimas garotas negras do cinema e até mesmo das animações de grandes estúdios. Em se tratando da DreamWorks, aliás, Tip é a primeira protagonista não-branca desde Moisés em Príncipe do Egito, lançado em 1998, além de ser a terceira protagonista feminina depois de Susan, de Monstros vs. Alienígenas, e Eep de Os Croods. Ou seja, muitas garotas negras poderão, pela primeira vez, se espelhar em uma personagem parecida com elas – e essa representatividade na mídia é importantíssima para a autoafirmação e o autorreconhecimento das crianças. Além disso, essas meninas serão expostas a mais um exemplo positivo de que seus cabelos naturais são lindos e podem ser usados em total liberdade.
Apesar de tudo, a partir de uma ótica feminista e mais politizada no tocante à questão racial, Cada Um Na Sua Casa tem alguns pontos negativos. Em vários momentos, as piadas e trocadilhos recaem em clichês reciclados e machistas, ainda que sejam relativamente sutis. O que mais chama atenção é o fato de que, na dublagem brasileira, Tip é chamada de “morena” por sua mãe, sendo que Tip é obviamente negra, originária de um país onde mais de 90% da população é negra. Vale lembrar que Tip foi inspirada na cantoraRihanna – que é, inclusive, a própria dubladora da personagem -, uma mega estrela pop que, assim como Tip, tem Barbados como país de origem.
Essa troca de palavras pode parecer bobagem, mas no Brasil isso faz muita diferença, já que nosso país ainda carrega muitos estigmas contra pessoas negras e nosso clichês culturais fazem com que as pessoas queiram se identificar com qualquer termo, de “pardas” a “marrom bombom”, que as livre de serem chamadas de “negras”. Também seria melhor se a mãe de Tip tivesse os cabelos crespos como a filha e se outras personagens femininas tivessem mais espaço na trama, incluindo entre os próprios alienígenas – o capitão, o guarda, o vilão e até o próprio Oh são todos “homens”, não havendo nenhuma figura feminina de destaque entre eles.
Ao final de tudo, com suas qualidades e defeitos, vale a pena assistir ao filme, especialmente para quem tem crianças na família. Para os meninos, Cada Um Na Sua Casa é um excelente exemplo de que as garotas podem ser fortes, independentes e corajosas. Mas para as garotas, principalmente as negras, é onde o filme mais brilha, trazendo para o foco uma personagem negra única, que jamais dosa sua negritude e que certamente será uma excelente representante da qual poderão se fantasiar, brincar e se espelhar.
Fonte: Revista Forum.
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