Como as
arpilleras, movimento iniciado nos anos 1970 por um grupo de bordadeiras chilenas, vieram até o Brasil para se transformar no grito de resistência das mulheres contra a violência.
“Lucía, Lucía, a panela está vazia.” Essas palavras, transformadas em estribilho, podiam ser ouvidas em quase todos os protestos contra o governo de Pinochet, no Chile dos anos 1970-1980. Lucía, a mulher do ditador, era invocada por minorias sociais afetadas pela pobreza, fome e violência decorrentes do regime ditatorial. Este é apenas um dos fragmentos de história retratados nas chamadas “arpilleras”, uma técnica de bordado sobre sacos de farinha ou batata que por muitos anos foi as mãos e os braços das mulheres na luta contra a realidade política do Chile. Narrando a história de suas famílias e comunidades com agulhas e retalhos de tecido, as arpilleristas recriaram a tarefa de repensar a sociedade.
Centenas de mulheres chilenas, submetidas a um modelo social que as excluía da linha de frente de qualquer batalha, encontraram no artesanato o único meio possível de clamar por seus direitos. A cantora e compositora chilena Violeta Parra (1917-1967) foi uma das arpilleristas precursoras do movimento. Doente e impossibilitada de cantar, Violeta viu no bordado uma forma de expressar os temas sociais que se tornaram a marca inconfundível de suas composições. Para ela, “as arpilleras são como canções pintadas”. Mais do que meio de expressão ou manifestação popular, esses pequenos pedaços de pano eram a um só tempo escape e possibilidade. Ao se apropriarem da costura, as mulheres chilenas não apenas se desvencilhavam do papel historicamente atribuído a elas, mas também teciam silenciosamente testemunhos contra o regime que oprimia a vida de sua família. Por trás do colorido das linhas e das bonecas que davam um sentido tridimensional às telas, estavam manifestos de dor. “Onde estão nossos familiares?”, “Não à injustiça, não à impunidade” são alguns dos dizeres bordados.
No entanto, saber que mães, esposas e irmãs bordavam a morte dia e noite muitas vezes nas roupas de seus familiares guerrilheiros é saber pouco. O que as motivava a sacar agulhas enquanto seus parentes viravam índice de desaparecidos políticos? A dor da violência, da desigualdade, da pobreza. Dor que existia lá em Isla Negra e existe hoje por toda parte. Por isso é que não demorou para que essa ferramenta de expressão chegasse também ao Brasil.
Sobre Direitos Humanos
Edizângela Alves de Barros tem 30 anos e mora com a família em Altamira – pequena cidade da região amazônica no centro do Pará – em um reassentamento onde vivem outras 280 famílias, cada qual com, em média, quatro pessoas. O lugar onde ela vivia antes será demolido e alagado para a construção de barragens da usina hidrelétrica de Belo Monte, apenas uma entre as duas mil barragens já construídas no Brasil. Somando as 14 microrregiões em que elas se instalaram, um milhão de pessoas já foi expulsa de suas casas. Nas arpilleras de Edizângela, é esse cenário que aparece estampado em fios e tecidos coloridos: o não pertencimento à terra imposta, a perda dos vínculos com a comunidade, o sentimento de abandono dos órgãos públicos.
Edizângela tem cinco filhos, cuja educação depende quase integralmente dela. Até 2012, quando bordou a sua primeira arpillera, educação para ela não tinha nada a ver com consciência social, muito menos com costura. Quando a pedem para definir o que é uma arpillera, ela faz questão de afirmar, certeira, que não é artesanato, não é um produto. “É um ato político. Um estudo aprofundado sobre direitos humanos”, diz, de boca cheia.
Como qualquer manifestação popular, essas arpilleras podem até contribuir para o sustento econômico de quem faz, mas não nascem com o objetivo de obter lucro e nem de compor uma nova forma de arte. Ao contrário, vão sempre na contramão do sistema que denunciam. Surgem de poucos recursos e são pautadas pela coletividade e pelo desejo de preservação da memória. “Construímos arpilleras não para ter sustento econômico, mas sim para ter na mão uma ferramenta, um jeito de se libertar de um sistema que é muito opressor contra as mulheres.”
Edizângela é conselheira tutelar de Altamira; desde que conheceu as arpilleras, expandiu a sua noção de coletivo e ajuda outras mulheres na luta contra um cotidiano de opressão. Como toda cidade que recebe obras de barragem, Altamira sofreu um grande inchaço populacional com a chegada dos mais de 25 mil operários de Belo Monte. Ela conta que, aos finais de semana, quando os trabalhadores das usinas estão ociosos e espalhados pelos bares do município, as mulheres têm mais medo de sair na rua. “Vem homem de todos os lugares para trabalhar na obra, é muito comum uma mulher conhecer alguém assim, começar um relacionamento, e trazer pra dentro de casa sem conhecer direito, e aí acabam acontecendo esses episódios de violência. Sei de vários casos de assassinatos aqui na região que começaram dessa forma”, conta. Situações como essa são costumeiras em locais de construção de barragens. Uma pesquisa da Plataforma Dhesca, Porto Velho, por exemplo, que abriga a hidrelétrica de Santo Antônio, registrou um aumento geral nos índices de violência após o início das obras. Entre 2008 e 2010, o número de homicídios dolosos cresceu 44%, e o índice de estupros chegou a crescer 208% em três anos.
Em dois anos, a população de Altamira passou de 100 para 140 mil, um contexto que multiplica não só o número de homens, mas também a quantidade de casas de prostituição, os índices de precariedade social e a carestia, transformando a cidade em um ambiente hostil. “A gente se sente muito pequena nesse mundo de patriarcado. A arpillera tem ajudado muito nesse processo”, garante Edizângela.
Depoimentos como o dela tecem discretamente o fio que une o movimento das arpilleras à construção da identidade. Conhecendo seus direitos e ocupando o seu lugar na luta pelas injustiças sociais, arpilleristas do Brasil inteiro denunciam um submundo de violações que tem sido ignorado pela sociedade, uma narrativa que está prestes a ser contada em filme. O documentário Arpilleras bordando a resistência, idealizado pelo coletivo de comunicação do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), está em fase de captação de recursos no Catarse, e será produzido a partir de depoimentos de cinco personagens de todas as regiões do país.
A jornalista Adriane Canan, diretora do filme, explica que a ideia é criar uma grande e coletiva arpillera, que comece com a primeira entrevistada e percorra o Brasil de norte a sul, até formar um trabalho que dê conta de narrar o impacto da construção das barragens por meio da percepção direta das mulheres atingidas. “A proposta é mostrar como essas mulheres, apesar da invisibilidade imposta também pelas questões de gênero, sempre foram imprescindíveis e vêm fortalecendo seu papel na luta contra o atual modelo energético excludente”, explica Adriane, especializada em roteiro pela Escuela de Cine y Televisión de San Antonio de Los Baños, de Cuba.
Atualmente, as arpilleras brasileiras são produzidas por mulheres que vivem em locais como Belo Monte, onde se instala um cenário de intensa vulnerabilidade. O Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) confirma que há nessas regiões um padrão de violação de 16 direitos humanos – entre eles, direito à moradia adequada, à plena reparação das perdas e a um ambiente saudável –, todos decorrentes do planejamento, da construção e da operação das barragens. A diretora explica que o filme quer mostrar todo esse cenário de impacto social a partir do olhar feminino. Se o valor for arrecadado, a produção começa no segundo semestre deste ano.
No Brasil
As arpilleras chegaram ao Brasil em 2013, por meio da exposiçãoArpilleras da resistência política chilena, que ficou em cartaz no Memorial da Resistência, em São Paulo, de julho a outubro daquele ano. A pesquisadora chilena Roberta Bacic, curadora da mostra, percorreu vários países da Europa, Ásia, América e África divulgando o trabalho das arpilleristas, e conta que as mulheres reagiam com entusiasmo e surpresa por essa nova ferramenta de comunicação. “É especialmente significativo como as mulheres aprenderam a se olhar introspectivamente como mulheres, como parte de um grupo.” Para ela, quando uma mulher borda as violações pelas quais passa diariamente, ela assume a responsabilidade social de participação. “É muito forte sentir-se convidada a reagir”, conclui Roberta.
A partir da exposição, o trajeto das arpilleras no país continuou pelas mãos de Esther Vital, membro do coletivo de mulheres do MAB, com apoio e financiamento da União Europeia. Durante a “pesquisa-ação participante”, foram levadas às cinco regiões do país oficinas de capacitação e documentação têxtil para centenas de mulheres atingidas.
Em comum com suas antecessoras chilenas, a vontade de gritar para o resto do mundo o que se passa em seu dia a dia. “A linguagem das arpilleras permite mais facilmente às mulheres se abrirem e falarem sobre a problemática que enfrentam, e, ao mesmo tempo, é um veículo de comunicação para chegar à sociedade civil. Em parceria com as ONGs austríacas H3000, DKA e FeiSo Frei, apresentamos o projeto à União Europeia, e assim conseguimos as condições materiais para realizar oficinas de arpilleras e coletar o testemunho de quase 900 mulheres”, relembra Esther, idealizadora das oficinas, que diz ter em toda arpillera um “movimento rítmico”. “É como uma ciranda. No ato de costurar tem algo que se repete como um mantra, que de alguma forma liberta e acolhe. Por outro lado, a costura é algo familiar, cria um espaço de segurança.”
O colorido sugere que estamos diante de uma obra de arte, mas por trás da leveza estética, estão denúncias graves. Estupro, agressão doméstica, pedofilia, cárcere privado, indução à prostituição. Para uma arpillerista, tudo isso é uma espécie de alarme histórico, um indício de esgotamento. A partir daí, elas se apropriam das ferramentas que têm à mão para mostrar à sociedade que poder não é comando ou controle, mas sim protagonismo. Para Roberta, essa protagonista nada mais é do que a possibilidade de expressão. “Elas se empoderam para falar de sua realidade, dos problemas que as afligem, fazem isso por meio de um testemunho costurado, muitas vezes inspiradas pelo que outras mulheres em outras latitudes do mundo puderam também testemunhar. Vão deixar tudo isso como legado de memória”, resume.
Foi José Saramago quem disse que “fisicamente, habitamos um espaço, mas sentimentalmente, somos habitados por uma memória”. Quando se fala em arpilleras, esses dizeres ganham substância feminina. Historicamente, há um modelo de sociedade pensado para convencê-las de que o poder é este que aparece nos jornais e faz girar a engrenagem da economia e do lucro, mas há em toda arpillera um desejo pulsante de provar o contrário. Para as mulheres arpilleristas, o verdadeiro poder está em algum lugar entre memória e identidade, e é tecido em pontos pequenos, todos os dias com potencial renovado de se tornar conhecimento, democracia e voz.