Você já foi à Brasília, nêga? Não? Então vá. A cidade vive um novo momento de agitação cultural, com festas nas ruas, milhares coletivos produzindo freneticamente arte e repensando a cidade. Centro histórico da segunda metade do século XX, no meio do cerrado, Brasília certamente merece uma visita.
Talvez Brasília não seja uma cidade de paixão à primeira vista (ainda que João de Santo Cristo discorde). Primeiro, há um estranhamento. O astronauta Yuri Gagarin quando visitou a cidade na década de 60, disse que parecia outro planeta. Depois é preciso olhar com calma. “A beleza de Brasília são as suas estátuas invisíveis”, escreveu Clarice Lispector quando veio a cidade na década de 1970. Ela ficou impressionada e insone com a nova capital.
Apresentar Brasília para visitantes inclui a difícil tarefa quiromântica de ensinar a ler as linhas da capital. O eixo monumental corta a cidade de oeste a leste e sobre ele se espalham os prédios do poder, imensas esculturas de Niemeyer que merecem uma visita atenta. O Eixão que corta a cidade de norte a sul desenha as Asa Norte e Asa Sul com superquadras, pés de manga e de jaca. Das linhas do Plano Piloto irradiam as estradas EPIA, EPTG, EPNB, BR-010 que levam às regiões administrativas, algo entre bairro e município, informalmente chamadas de cidades satélites. Definindo o território do Distrito Federal estão as quatro linhas que o abarcam em um quadradinho no meio do país.
Quando foi morar fora do país, a arquiteta brasiliense Gabriela Bilá, se viu várias vezes desenhando para amigos estrangeiros os dois riscos de Lúcio Costa que formam o desenho base de Brasília. De tanto explicar a cidade, Bilá fez como trabalho de conclusão do curso de arquitetura o Novo Guia de Brasília. Através de um financiamento coletivo, o guia ganhou as ruas no ano passado e já está sua segunda edição.
Além dos monumentos históricos tradicionais, Bilá chama atenção para os detalhes que permeiam os edifícios residenciais de Brasília. Construídos na cidade com asas, os prédios da capital voam, suspenso pelos pilotis, criando o “embaixo do bloco”, uma das marcas da arquitetura modernista e uma das melhores sombras para se habitar no verão. Bilá explica que os pilotis mudam em cada quadra e são marcas dos vários arquitetos que também participaram da construção da cidade. Os cobogós, placas vazadas de cimento criada por arquitetos pernambucanos, também são assinaturas que dão charme aos prédios brasilienses.
Mas não só de concreto vive a gente de Brasília. No guia, Gabriela Bilá dedicou uma parte para mapear as figuras da noite brasiliense, as frutas ao longo do Eixão, e as comidas de rua. “Porque Brasília tem esse paradoxo, é a capital de um país gigantesco, mas ao mesmo tempo guarda características de cidade pequena, onde todo mundo conhece todo mundo, come fruta na rua”, diz a arquiteta.
Amor em branco
Quem visita Brasília agora, vai conhecer a cidade em um dos seus melhores momentos. Apesar das dificuldades financeiras de trapalhadas de administrações anteriores (a atual está apenas começando, então não dá para avaliar), Brasília e seus espaços amplos começam a ser revalorizados pela população local. Bilá, por exemplo, faz parte junto com Luiz Eduardo Sarmento e outros arquitetos do grupo Arquitetura Etc, um dos vários coletivos de produção artística que surgiram na cidade nos últimos cinco anos.
O coletivo formado de amigos que se conheceram na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Brasília surgiu da “urgência” em transformar as ideias em realidade, explica Sarmento. O grupo ocupa uma sala na SQN 713, em frente à W3, uma avenida comercial decadente de Brasília que começa a ganhar novos ares. Com aluguel barato (em uma capital muito cara) e fácil acesso (em uma cidade com transporte público deficiente), a W3 tem se tornado um dos lugares preferidos dos coletivos de arte de Brasília.
Para o arquiteto, a geração brasiliense de 80 e 90, adepta do pós-modernismo, “queria destruir Brasília”. “A nossa geração é mais tranquila, não tem o mesmo ranço com o modernismo e o enxerga como uma possibilidade”, explica o arquiteto. Brasília era a tela em branco onde os modernistas pintavam suas utopias na década de 1960, na opinião de Sarmento. Com o golpe militar de 1964, a efervescência cultural de Brasília foi arrefecendo e só voltou nos últimos anos, com uma geração que voltou a enxergar a cidade como uma tela em branco.
Andando nas nuvens
A revalorização de Brasília faz a cidade ganhar olhares mais apurados dos moradores. Entre eles, o da turistóloga Patrícia Herzog, que junto com a turistóloga e colega de faculdade, Tatiane Petra fundou o Experimente Brasília. As brasilienses criadas embaixo de blocos da Asa Sul começaram querendo mostrar aos próprios brasilienses os encantos da capital. A dupla, em parceria com o governo distrital, criou um projeto de passeio escolar que levava as crianças para conhecerem as obras de Athos Bulcão, famoso pelos painéis de azulejo, espalhadas pela cidade. “Athos foi um dos artistas que veio participar da construção de Brasília e adotou a cidade como sua. Conhecer seus azulejos é uma forma de criar intimidade com a cidade”, afirma Herzog.
A primeira inovação do Experimente Brasília é ressuscitar as nuvenzinhas. A bicicleta foi inventada pelo triatleta José de Oliveira Souza Junior, conhecido como Zé do Pedal, na década de 1970. Usando como base uma Monark Monareta, Zé do Pedal construiu em uma oficina em Sobradinho uma bicicleta levinha e adaptada às grandes retas brasilienses. A nuvenzinha é usada nas rotas do Experimente Brasília e também pode ser alugada para andar no Eixão no domingo, quando a avenida fica fechada para carros, na entrequadra 214/215 N.
Entre a lista de passeios que podem ser feitos com nuvenzinhas (ou a pé ou de carro), estão a rota pelos azulejos de Athos Bulcão, rota pelas árvores, rota modernista, rota superquadra, rota de arte urbana e rota pelas feiras, essas duas últimas também indo nas cidades satélites. “Por enquanto nossos maiores clientes são os próprios brasilienses, que querem redescobrir a cidade, mas também vemos um potencial turístico muito grande para Brasília”, diz Herzog.
A turistóloga, que também usa a nuvenzinha para se deslocar no dia-a-dia, acredita que Brasília aos poucos a cidade começa a quebrar o monopólio dos carros. “Brasília é uma cidade ótima para andar a pé, com muita sombra, passarelas. Aos poucos vemos um movimento para repensar a cidade construída sob o ícone moderno do carro para um lugar onde as pessoas andem mais na rua”, afirma Herzog.
Festa na rua
Outras consequências bonitas da nova onda de amor pro Brasília é a reocupação dos espaços públicos. Aos poucos, brasilienses começam a frequentar áreas até então abandonadas ou subutilizadas, como a Ermida Dom Bosco (talvez o pôr do sol mais bonito da cidade), o Parque da cidade, o Eixão e tantos outros vazios planejados da capital.
O economista e produtor cultural Miguel Galvão é um dos criadores da Picnik, festa gratuita que reúne música e lojinhas made in Brasília, em espaços abertos da cidade. A festa surgiu em 2012 quando o economista foi procurado pela administração da Asa Norte para pensar em uma alternativa para moradores frequentarem o calçadão da Asa Norte, um deck recém construído na beira do Lago Norte que vinha sendo ignorado pela população local. “A ideia foi criar, então uma festa pé no chão, pé na grama, gratuita, sem elitismo. Uma plataforma de encontro sem o álcool como centro das atenções, quebrando com o jeito formatado de se divertir da noite brasiliense”, explica Galvão.
A Picnik virou um sucesso instantâneo e passou a ser itinerante em 2013, ocupando outros lugares públicos (lindos e dignos de visita), como o jardim botânico, o Centro Cultural do Bando do Brasil (CCBB) e o parque da cidade. Galvão explica que a festa é sustentada com a taxa cobrada aos expositores. “O evento também quer ser uma plataforma para movimentar a economia criativa da cidade”, diz Galvão. Na primeira edição da Picnik, 20 expositores participaram da festa, hoje são 170 a 200. “Recebemos mais de 600 propostas por edição hoje em dia. Aí tem que rolar uma curadoria, valorizando o que é original e made in Brasília”, diz o economista.
Apesar do sucesso, a nova dinâmica de ocupação dos espaços públicos não agrada a todos. Em janeiro de 2014, Associação dos Proprietários e Moradores da Orla do Lago Norte pediu a proibição de festas no calçadão da Asa Norte e o cercamento do local. “Isso reflete que Brasília, com sua massa de funcionários públicos, ainda mantém um lado burocrático, protocolar. Além disso tem o elitismo, das pessoas acostumadas em ver a orla do lago, por exemplo, como um espaço privado às mansões”, avalia Galvão. “A cidade se desacostumou aos seus espaços públicos, mas a melhor forma de manter os espaços públicos é ocupá-los com vida”, afirma o produtor.
Iogurte com farinha
Uma visita a Brasília não precisa se restringir ao Plano Piloto. As cidades satélites, que na maioria tem uma vida independente do Plano, também tem seus encantos. Para o poeta matogrossense representante da geração do mimeógrafo, Nicolas Behr, há uma atividade cultural pulsante muito forte fora do Plano Piloto, com saraus, movimento de rap e hip-hop. Behr chegou em Brasília com 15 anos, em 1974, e nunca mais saiu. Ele acredita que a cidade vive um momento único de humanização da maquete. “Hoje há uma sede de encontro, de troca, de compartilhamento. Uma coisa reprimida”, afirma.
Assíduo frequentador da feira da Ceilândia, o poeta destaca que são nas feiras “onde Brasília se encontra mais com o Brasil” e recomenda conhecer além da feira da Torre, no Plano Piloto, as feiras do Núcleo Bandeirante, a mais antiga de Brasília, de Taguatinga e do Guará.
Brasília também samba
Conhecida como cidade do rock, Brasília começa a ganhar agora uma cena de samba. Khalil Santarém, brasiliense e músico, há cinco anos tocando samba, três no grupo Filhos de Dona Maria, destaca que não só existem muitas rodas de samba como também muito material autoral sendo produzido dentro e fora do Plano Piloto.
O interesse do músico pelo samba surgiu no Clube do Choro, “a melhor escola de música popular brasileira”, segundo Santarém. “Muitos dos sambistas de Brasília tem essa trajetória, acumulam conhecimento musical e do instrumento no Clube do Choro e depois passam a fazer rodas de samba”, explica.
Apesar de muito samba nascendo, o músico explica que ainda é preciso formar um público. “Nós temos feito um trabalho nesse sentido, tocando nas feiras, organizando feijoadas, fortalecendo as rodas de samba”.
Quadrinhos no quadrado
Outro lado pouco conhecido de Brasília são os quadrinhos. A cidade tem poucas lojas do gênero, mas muitos artistas criando histórias. A revista Samba é uma das pioneiras da cidade, lançada em 2008 por Lucas Gehre, Gabriel Góes e Gabriel Mesquita. “Quando a gente começou era um momento nebuloso, já tinham pessoas legais produzindo, mas a gente não sabia se ia dar certo”, afirma Gehre.
Hoje, Gehre considera que existe uma cena brasiliense de quadrinhos, com muitos mais gente produzindo. “Tem um pouco haver com o momento favorável para a produção independente, com a possibilidade do financiamento coletivo e a troca de ideias pelas redes sociais”, explica o quadrinista.
Para conhecer os quadrinhos de Brasília, em Brasília, Gehre recomenda a Kingdom Comics, loja no Conic, um misto de espaço comercial e underground de Brasília.
Tem carnaval, sim senhor
Se você ainda não tem planos para o carnaval, Brasília pode ser uma ótima escolha. A efervescência cultural recente também chegou ao carnaval de Brasília que vê novos bloquinhos surgirem a cada ano. O Babydoll de Nylon, inspirado na música homônima de Robertinho do Recife, que inclusive apoiou o bloco, é um dos pioneiros na leva dos novos blocos da capital.
Em 2011, o bloco surgiu como uma brincadeira de amigos que não tinham dinheiro para passar o carnaval fora. “Quando a gente começou, o carnaval de Brasília era aquela coisa, o último que sair, apaga a luz”, explica David Murad, um dos criadores do bloco. Na primeira edição, eram “umas cento e poucas pessoas, um estandarte e um carrinho de som, tudo no improviso e na clandestinidade”, na edição de 2014, o bloco reuniu 15 mil foliões.
Tocando Axé do anos 90, marchinhas e “músicas de outros carnavais”, o bloco reúne milhares de pessoas de babydoll de nylon ou de pijamas (para os tímidos). “Eu mesmo nunca repito o babydoll do carnaval anterior”, brinca Murad. O publicitário acredita que a nova geração de brasilienses sentia falta de um carnaval com a sua cara e o rápido crescimento do Babydoll de Nylon exemplifica isso. “Hoje já tem muita gente que fica no carnaval de Brasília por opção”, afirma. “Vai chegando perto do carnaval e você já vê grupos de caras na Marisa comprando babydoll”, brinca.
ANEXO: uma lista completa de rolês corretos em Brasília
Saraus de Brasília
Tribo das Artes – Taguatinga
Radicais Livres – São Sebastião
Supernova – São Sebastião
Sarau Complexo – Samambaia
Sarau da CM – Ceilândia
Festas de rua
Galerias, coletivo e lojinhas
Espaço Laje – 708S
Grupo Arquitetura etc – 713N
Elefante Centro Cultural - 706N
Alfinete Galeria – 116N
Galeria Ponto – 716N
Galeria Objeto Encontrado – 102N
BSB Memo – 303N
Cobogó – 704/705N
Sambas
Filhos de Dona Maria – toda quinta-feira no Balaio Café 201N
Samba na Rua – Vila Telebrasília
Samba do Banquinho – Parque da Cidade
Quadrinhos
Pontos turísticos tradicionais
Dá para entrar em quase todos os edifícios oficiais, até no Palácio do Planalto. Vale a pena ver por dentro e por fora as esculturas do Niemeyer.
Visitas recomendadas pelos entrevistados dessa matéria:
Superquadras (Gabriela Bilá), Universidade de Brasília (Luiz Sarmento), Feira da Ceilândia (Nicolas Behr), Calçadão da Asa Norte (Miguel Galvão), Ermida Dom Bosco e Museu da República (Patrícia Herzog), Parque da Cidade (Khalil Santarém), Espaço Laje (Lucas Gehre) e Eixão no domingo (David Murad)
Visitas sugeridas por essa que vos escreve:
Parque da Água Mineral (com piscinas de água mineral e um trilha linda), Chapada Imperial (cachoeiras lindas sem sair do Distrito Federal, com trilhas para todos os fôlegos), Pastel com caldo de cana da Rodoviária e Teatro Nacional (com direito a escalada na faixada externa criada por Athos Bulcão).
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Texto por: Ana Rita Cunha
Jornalista, modelo, atriz e cantora. Mentira, só jornalista mesmo. Feminista, botafoguense e tem Tumblr de poesia.
Foto por: Emília Silbertsein
Emília é fotógrafa e seu portfolio pode ser encontrado nesse link.
Fonte: Quipro.co
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