“Imagine que seu bisavô teve todos os bens confiscados. Ele perdeu o lugar onde nasceu, terra, família, cultura e outras coisas que não podemos imaginar. Tudo isso foi realizado por meio do governo. Mas quais seriam os motivos para que seu avô fosse levado, junto com outras pessoas, para trabalhar em um lugar que ele nunca havia visto? A resposta é simples: a economia, o capitalismo, e usaram a diferença que ele tinha com as outras pessoas, como uma forma de legitimar a escravidão, um estigma a ser carregado, como uma mancha vermelha na testa.
por Naomi Faustino no The Black CupCake,
Depois que seu bisavô foi levado, ele acabou constituindo uma outra família, mesmo vivendo com diversas pressões e não sendo mais visto como ser humano. Seu bisavô teve um filho, a mesma marca e o mesmo destino foram passados para seu avô. Até que um dia, seu avô foi liberto, e mesmo sendo visto como um não-humano, inferior a qualquer bicho, ele conseguiu arrumar um lugar para morar e uma família também. Ele teve um filho, e esse você pode chamar de pai.
Seu pai, também portador da marca, acabou se casando com uma mulher sem marca alguma. Ela não via a marca (ou talvez via), pois mesmo sendo criada para marginalizar todos os portadores do símbolo, ela acabou se apaixonando por ele e, seu pai, com algumas pressões para ascender socialmente, acabou se apaixonando por ela. Mas o romance deles não é importante, o importante é que você nasceu e assim sua irmã.
Sua irmã não portava marca alguma, e você portava a maior mancha do mundo. Ou você era invisível em algumas situações, ou você era mais visível do que nunca. Vocês duas cresceram com a mesma situação econômica, entretanto, a falta da marca em sua irmã lhe oferecia mais benefícios, fazendo com que os mais altos níveis da sociedade sempre a vissem como uma deles.
Certo dia, ambas entram em uma universidade. Você olhou para todos ao seu redor e acabou não encontrando ninguém como você. Você não via ninguém com a marca grande, nem com a marca pequena. Todos eram como sua irmã, e com o tempo, acabou descobrindo que os erros do passado acabaram marginalizando pessoas como você, devido a falta de oportunidades que a marca trazia consigo. Seus antepassados foram proibidos de estudar, proibidos de ascender. Você, com todas as dificuldades do mundo, conseguiu, mas muitas pessoas do seu convívio, que também tinham a marca, não conseguiram.
Você, além da solidão, teve dificuldades em conseguir empregos depois de se formar. Todos viam sua marca antes do seu currículo. Sua marca chegava antes de você, porém nada disso acontecia com sua irmã, pois ela não carregava a marca. Sua irmã era lida como diferente, mesmo tendo o mesmo sangue que você. Você começou a entender que ela era socialmente lida como melhor e que assim era a vida.
Até que um certo dia, você abriu os jornais e se deparou com uma mudança. O governo, que criou o racismo estrutural, agora queria concertar e equilibrar a situação. Ele estipulou cotas, para que pessoas como você, que sempre tiveram menos oportunidades, conseguissem ascender.”
Por mais infantil que seja, essa história tenta resumir e explicar, em poucas linhas, todos os problemas causados pela coroa portuguesa, espanhola, britânica, holandesa (e outras tantas), para os povos não-brancos.
Terminei a história nos atos de reparação. Terminei assim, pois resolvi explicar agora, o que essa pequena história tem a ver com você. E esse texto, pela primeira vez, não é direcionado às minhas leitoras negras. Ele foi feito para você, homem e mulher branca, e até aqueles que são negros, mas nunca se viram como tal.
Hoje, dia 19 de janeiro, é o primeiro dia para se inscrever no SISU (Sistema de Seleção Unificada) e é nele em que residem um dos maiores atos de reparação com o povo não-branco: a lei de cotas. Deste modo, temos um grande dilema passando pela cabeça das pessoas, seriam as cotas raciais justas? Bom, essa questão é simples de responder: elas são. E por isso, não entrarei mais nesse debate, e se você tem maiores dúvidas, aconselho a ler o texto escrito por William Douglas (clique aqui). Mas primeiro, antes de entrar em algo mais profundo, explico como a lei de cotas funciona no SISU:
“A Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, garante a reserva de 50% das vagas, por curso e turno nas 63 universidades federais, nos 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia e nos 2 centros federais de educação tecnológica, a estudantes que tenham cursado o ensino médio em escolas públicas.
Das vagas reservadas pelas instituições para estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas, metade é destinada para estudantes com renda familiar bruta mensal por pessoa de até um salário mínimo e meio. O preenchimento das vagas leva em conta ainda critérios de cor ou raça, ou seja, um percentual das vagas são reservadas para estudantes autodeclarados pretos, pardos ou indígenas em proporção igual a de pretos, pardos e indígenas na população da Unidade da Federação onde está localizada a instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).” – Fonte: Tire suas dúvida – Site do SISU.
Bom, em resumo, a cotas aplicadas no SISU tem o intuito de incluir povos marginalizados, sejam eles pobres e brancos, ou pobres e não-brancos, em um ambiente dominado pela elite e a classe média brasileira. Por outro lado, as cotas também funcionam para pintar a universidade de povo, fazendo com que as classes mais ricas, que são naturalmente brancas, acabem perdendo espaço para as pessoas que tem a cara do povo brasileiro: os pardos e pretos, comumente chamados de negros. Entretanto, uma grande dúvida surge quando vamos falar sobre o “povo brasileiro”, o que é ser negro?
Diferentemente dos Estados Unidos, ser negro no Brasil não é uma questão de sangue. Infelizmente, o Brasil adquiriu o hábito da autodeclaração, e por isso, você tem o poder de escolher se é, ou não é negro, entretanto, podemos dizer que isso não é bem assim. Para mim, não existe autodeclaração, as pessoas declaram o que você é. Se você é negro, ou se você é branco. A sociedade brasileira criou, intrinsecamente, o colorismo, fazendo com que ser negro se tornasse um bingo. Quanto mais características negroides você tem, mais negro você é. Mas, voltando à autodeclaração, ela também é o pressuposto para se candidatar às vagas selecionadas para os negros e índios. Entretanto, se sou eu que escolho o que eu sou, porque eu escolheria ser negro? Quem quer ser negro, no Brasil?
Ser negro no Brasil não tem muitos benefícios sociais. Por mais que eu encare a minha negritude com orgulho, ser negro não é fácil. Ser observada em lojas, ser preterida em relacionamentos, ser vista como menos capaz, ter que trabalhar duas vezes (para sempre conseguir a metade que um branco consegue), ser vista como dona de cabelo ruim, e ter que ouvir, de vez em quando, aquela frase horrenda, “até que para uma negra, você é bonitinha”. Ser negro também te faz mais provável de ser atravessado por uma bala – e ela não é doce. Ser negro te põe na lista dos indesejáveis, em qualquer lugar do mundo. E como eu havia dito, o nosso país criou um “bingo do negro”, e quanto mais acertos (ou seriam erros?) você faz… BINGO! Mas como eu havia dito antes, hoje, dia 19 de janeiro, muitos querem ser negros. Hoje, ser negro convém.
Mas será que convém? E de onde vem essa vontade de ser negro? Essa vontade vem, não só do fato de ser negro estar na moda (ok, não entrarei nesse assunto), mas também, devido as cotas raciais, que muitos acham injustas, mas poucos sabem o que é injustiça no Brasil, principalmente, quando você é negro. Contudo, deixo um ponto bem escuro aqui: entrar por cotas não é fácil. Vocês sabiam que existem diversas pessoas pleiteando essas vagas? E, por isso, apenas as pessoas com as melhores notas, conseguirão entrar? É! Pessoas que acertaram muito, que estudaram bastante, vão entrar na faculdade. “Então que entrem pela ampla concorrência.” É, eu também considero essa opção, e tenho amigos que tiveram notas enormes e resolveram “roubar” a vaga dos brancos de escola particular, mas entenda, as vagas para negros e indígenas são uma confirmação de que eles estão lá! Caso nenhum entre em ampla concorrência, alguns entrarão pelas cotas, e isso fará com que mais da metade da população, também possa frequentar as universidades públicas, que eles também ajudam a pagar.
Podemos aprofundar mais? Eu não sou cotista. Não tive nenhuma bonificação na pontuação, pois apresento privilégios de classe. Estudei em escola particular, tenho uma família estável, e na época, tinha condições de pagar um cursinho caso não passasse de cara. Mesmo sendo negra, eu tive privilégios e eu soube meu lugar. Deixo claro que essa não é uma crítica para pessoas brancas que apresentam renda mínima, ou estudaram em escola pública. Elas tem direito de usar as cotas, as cotas também foram feitas para elas, cotas não-étnicas, que estão lá para serem usadas por elas. E, por isso, reforço que esse texto é uma crítica a pessoas socialmente lidas como brancas, que utilizam cotas voltadas para negros e indígenas. Continuando, eu entendo meu privilégio e espero que vocês entendam o de vocês. Eu posso pagar por um ensino privado, eu tenho condições de pagar pelo meu bem estar, mas minha família é um ponto fora da curva, uma exceção em um país onde a pobreza é preta e parda.
E, aprofundando um pouco mais, gostaria agora de explicar um ponto importante, o ponto que me fez escrever esse texto. Uma cara amiga, me deixou a importante missão de explicar como ela e sua irmã são diferentes: uma socialmente lida como branca, e outra como negra. No bingo da negritude, minha amiga fez mais pontos, enquanto a irmã não levou a cesta da opressão para casa. Ambas são filhas de um relacionamento inter-racial e, por isso, ambas apresentam a mesma condição de classe econômica, mas não a mesma vida social. Minha amiga preta, tem uma marca gigante na testa e, por isso, sofreu (e ainda sofre) preconceitos, pelos quais sua irmã nunca passou. Sua irmã quer entrar por cotas étnicas, mesmo sabendo que não é socialmente lida como negra e, por isso, minha amiga anda chateada. A irmã dela tem capacidade de entrar pelas vagas de escola pública, quiçá até pela ampla concorrência. Mas ela insiste em entrar pelas cotas étnicas. E aí vem a dúvida: ela pode?
Poder pode. Quando uma pessoa branca e uma negra têm filhos, pelo que eu saiba, o cartório tem a obrigação de declarar a criança como parda. Ela tem a prova de que ela não é branca, mas ela não pode andar com isso grudado na cabeça o tempo todo, então para muitos, ela é branca. Se na hora da matrícula, a universidade olhar para a certidão, eles podem aceitá-la, mas também podem recusá-la, pelo fato dela parecer branca. Mas, caso ela seja aceita, se matricule e tudo mais… é ético? Bom, isso aí é algo que ela deve refletir após ler esse texto.
E você pode, então, começar a me criticar, bostejar nos comentários e dizer que somos um povo mestiço. E eu vos digo, em alto e bom som, que somos um povo mestiço. Somos fruto do senhor de engenho que estuprava a negra na senzala. Somos fruto do genocídio do povo indígena. Somos fruto do estupro. Somos fruto da escola do embranquecimento social. Somos fruto de uma sociedade que ama o branco, e repugna o preto. Somos fruto de uma sociedade que, mesmo sendo erguida pela escravidão, diz que trabalho mal feito, é trabalho de preto. Somos todos mestiços, sangue branco e preto. Somos indígenas, africanos, portugueses, japoneses, chineses, italianos, alemães e espanhóis. Somos sim um povo mestiço, mas poucos se identificam e vivem como tal. Somos um povo que faz o PM preto colocar o homem negro como suspeito principal. Somos um povo que precisa de uma página chamada Preta & Acadêmica para mostrar todo o racismo das instituições de ensino. Somos um povo mestiço que se odeia. Somos todos irmãos, não é mesmo? E que tal dizer que o racismo só afeta aqueles que querem ser afetados? Podemos também extrapolar e montar no nosso unicórnio alado rosa e sair voando pelo mundo encantado das fadas marinheiras. Somos tanta coisa, que acabamos nos tornando nada. E assim, finalizo dizendo que do mesmo jeito que somos filhos da negritude, também somos filhos da branquitude. E a branquitude ganhou o nosso bingo (ou perdeu? já me confundi) e, por enquanto, é ela que dita as regras.
Dedico esse texto a todos os meus amigos cotistas, todos meus amigos negros da universidade e ao coletivo EPPEN Preta. Dedico esse texto aos paspalhos brancos que irão usar cota com viés étnico para se promover. Dedico esse texto a todos que apresentam a marca na testa e não podem esconder. Dedico a vocês que sobrevivem ao racismo todos os dias. Decido a página Preta & Acadêmica que tem me ajudado a compreender o racismo nas instituições de ensino. Dedico esse texto a todos, principalmente à minha amiga, que está nesse dilema e me pediu uma mão. Te amo. Que a marca em sua testa não determine seu destino, mas que elas sirvam de recordação para saber o que você é – ou o que pode fazer – por aqueles que carregam uma marca diferente da que você carrega.
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Todos os desenhos foram feitos por Raíssa Campos.
*Naomi Faustino. Nascida e criada em São Paulo, atualmente sou estudante de ciências economicas na UNIFESP. Sou feminista negra, adoro falar de empoderamento, estética, negritude e tudo que envolve o meu cotidiano.
Fonte: Geledés.
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