Vamos falar sobre cor? Não, não vamos falar sobre cor. Meus amigos, provavelmente/normalmente, estão cansados de me ouvir falar sobre isso. É claro que estão, é porque a maioria deles é branca (ou sem cor, como já ouvi alguns falarem sobre si mesmo).
por Ana Vitória Prudente via Guest Post para o Portal Geledés,
A maioria dos meus amigos é branca porque eu moro em Higienópolis/Vila Buarque/Consolação/Santa Cecília – o que o carteiro quiser chamar. A maioria dos meus amigos é branca, porque eu estudei em uma escola particular (que não era cara, não mesmo!), e por não ser cara e ter muitos bolsistas e internas (meninas que por sua condição de carência moravam na escola e não pagavam a mensalidade), tinha muitos negros – mas, muitos deles não sabiam que eram negros; uma amiga minha dizia: “eu não sou negra, sou moreninha”, “é o sol, se eu não pegar sol fico branquinha, que nem todo mundo”…
Na época isso me deixava brava, hoje tento não julgar ela e por isso nossa amizade (de certa forma) continua, eu sei que ser negra não é fácil. A maioria dos meus amigos é branca porque eu fiz um ano de cursinho, no Anglo Sergipe; lá tinha negros, mas eram poucos – principalmente no meu horário de manhã (o mais caro, se não me engano – minha mãe abriu mão de muitas coisas por mim e só por isso estou aqui, fora das estatísticas assim como o meu irmão).
Ah, e lá – inclusive – tinha professores negros, eles foram os primeiros poucos professores negros da minha vida – infelizmente, meu pai (um estudioso sobre o negro na arte e na sociedade) nunca me deu aula oficialmente, era só extra-curricular e, não a toa, o mais importante pra minha formação, apesar de extremas e determinantes discordâncias sou bastante parecida com ele!!!
E o principal, a maioria dos meus amigos é branca porque eu estudo em uma universidade publica no Brasil; uma das melhores e mais importantes do meu país, a UNICAMP. E não o bastante eu faço um curso de artes, não o suficiente eu faço Artes Cênicas. Com quantos negros se faz uma novela? 5 no máximo, se você der “sorte”. Com quanto negros se faz uma peça? Essa é uma resposta que eu ainda quero descobrir na minha vida profissional, por enquanto o que eu escuto é “você é morena de mais pra esse papel”, ou “você ficaria linda de cabelos lisos!”
É eu sei que ficaria, aliás, eu já alisei meu cabelo pra me sentir bonita e me senti. Isso não me tornou menos negra, nunca tornará, nem pra mim e nem para os brancos ao meu redor – os “insultos” continuaram, mas, o meu amor por mim mesma também. E não o bastante, eu estou fazendo intercambio na Europa, em Portugal. Meus amigos estão cansados de me ouvir falar sobre cor, e por isso eu tenho chorado sozinha ultimamente.
É claro que eles estão cansados de me ouvir falar de cor, a maioria deles não entende racismo como eu. Porque quando eu digo que sofri um ato racista, eles acham que eu estou enganada; e assim, perante aos olhos de quase todos eu nunca sofri racismo. É que pra maioria deles, nunca é suficientemente racista algumas ações e afirmações; mas, surpreendentemente a maioria delas (pra não dizer todas) nunca foram dirigidas a eles (ao meus amigos brancos).
E é uma pena que poucas vezes eles tenham visto, ou “aceitado” que eu sofri um ato de racismo, é uma pena que poucas vezes eu tenha sido apoiada ou consolada em relação a isso; e mais pena ainda é saber que não foram tão poucas vezes assim que eu sofri essa dor, sozinha.
Aqui em Portugal, durante um ensaio/aula, eu ouvi de uma colega de classe: “Você não pode ser filha de fulana (fulana é branca), a menos que ela tenha sido abusada” (risos). Minha mãe é branca, e ela não foi abusada! Mas, obviamente, era só uma “brincadeira”,uma “piada” que eu não entendi e não soube aceitar – como tantas outras. No mesmo dia ouvi: “você só pode fazer a escrava, né?!”.
Vi muitos amigos negros serem abusados aqui, como afirmações parecidas a essa; conversei com muitos africanos aqui, que sofreram/sofrem cotidianamente coisas parecidas. E a quem nós recorremos, geralmente? A poucas pessoas, ou a ninguém. Porque, geralmente, as pessoas ao nosso redor (nas altas e nas baixas esferas econômicas sociais) estão cansadas de ouvir sobre racismos. Ao contar isso e outras coisas aos meus amigos no Brasil, todos entenderam que eu sofri racismo.
Mas, engraçado, um ou outro não entende que é racismo me dizer que eu não posso fazer determinado papel porque sou negra. Quantos dos meus amigos acham que eu posso fazer “Um bonde chamado desejo”? ” A Gaivota”? “Romeu e Julieta”? “A Bela Adormecida”? “Senhora dos Afogados”? Vão falar que é uma questão de gênero – sim, eu entendo isso; vão falar que é uma questão de estética – sim, eu entendo isso; vão falar que é uma questão de linguagem – sim, eu entendo isso! Mas, sabe o que eu não entendo? Nosso país é um país majoritariamente negro, porque a maior parte da estética/linguagem/gênero que escolhemos é branca?
Há dramaturgos negros, que inserem negros em suas histórias, por que não usamos esses textos também? Ou então por que não podemos adaptar a estética/linguagem/gênero a nossa realidade, repleta de artistas negros querendo trabalhar e com competência para serem protagonistas? Eu digo: dane-se a Nina é branca na Rússia, estamos fazendo essa peça no Brasil, agora!
A maioria dos meus amigos não quer falar sobre racismo, porque eles não viram uma arma ser apontada para alguém com mais ou menos 15 anos, em um ônibus porque ele era negro e homem (um perigo ambulante, não é mesmo?). Mas eu vi, minha mãe também, meu irmão também. Poderia ter sido um de nós, alguém da minha família, um dos seus amigos, certo?
Mas, quem disse que não foi? Sorte que a arma não disparou, sorte que havia uma mãe lá (e o fato dela ser branca evitou alguns problemas, provavelmente), senão seria apenas mais uma estatística que você não quer contar. E que eu não quero viver, e que eu já estou cansada de temer. A maioria dos meus amigos não quer falar sobre racismo, porque as probabilidades de emprego não estão contra eles – e isso acontece em todos os setores, não só o de artistas.
A maioria dos meus amigos não quer falar sobre racismo, porque nunca “apostaram” que eles ficariam grávidos na adolescência, só porque eles são negros. Minha família sabe disso! A maioria dos meus amigos não quer falar sobre racismo, porque eles não são racistas. E esse é um sério problema, talvez o mais difícil de todos, pra mim. A maioria dos meus amigos realmente não é racista, e não atoa são meus amigos. Mas, ao não querer falar sobre o racismo, alguns de vocês estão ajudando aqueles que são racistas a se manterem no “trono” da ignorância. Alguns de vocês estão aumentando a distância entre as perspectivas de futuro de um negro (como eu, como o meu irmão, como tantos ouros amigos seus) e de um branco.
Alguns colegas depois de ler isso ( a maioria não vai ler, porque eles realmente estão cansados de ler/ouvir falar de racismo) vão pensar: Os negros são obcecados com essa história de racismo. Sim, muitos de nós somos (infelizmente, não todos) e sabe por quê? Nossa obsessão vem dá vontade de ter os mesmos direitos, que infelizmente a Lei Aurea não trouxe, mesmo 127 anos depois no Brasil.
Nossa obsessão vem dá vontade de ocupar os mesmos lugares, que infelizmente o fim do Apartheid nos Estados Unidos e na África do Sul não trouxe. Nós estamos obcecados em sermos livres, mas infelizmente a Policia Militar do Rio de Janeiro e de São Paulo ainda não entenderam isso; tal qual a hide society (só o termo em inglês descreve eles, eles estão altos – perdão, hide – demais para serem descritos no português) que insiste que bandido bom é bandido morto e assim incentivam o genocídio de negros no Brasil, permitindo que jovens sejam sentenciados antes mesmo de serem acusados de quaisquer crimes – que muitas vezes nunca cometeram, antes mesmo de serem legalmente julgados.
Aqui na Europa ouvi muitas vezes sobre o perigo do Rio de Janeiro e São Paulo, em todas às vezes concordei, mas só em uma delas tive a liberdade de dizer: RJ ou SP não é tão perigosa pra você, é mais perigosa pra mim, pro meu irmão, pros meus amigos negros. Alguns vão pensar, “que absurdo, eu sou branco e fui roubado várias vezes, uma delas quase levei um tiro”.
Graças a Deus, você foi salvo pelo quase! Eu também já fui roubada, algumas vezes, e em duas dessas algumas vezes, eu quase fui esfaqueada. O problema, é que eu não sei quem temer mais, jovens com perspectivas muito piores que as minhas, que vivem no “matar ou morrer” ou a justiça que vive no “matar pra manter” (manter Eikes, Thors…falando da Hide – que é quem importa, pra bem ou pra mal! Porque no cotidiano a gente já esqueceu quem matou Amarildo, Claudia, Alan…e tantos outros “sem nome”).
Eu conheço vários que foram salvos, pelo quase, da morte em um roubo ou sequestro, mas são poucos os que posso citar que sobreviveram à arma de um policial. E são menos ainda os que obtiveram, ainda que póstuma, a honra da justiça feita.
E por fim, eu tomei uma decisão, eu não vou mais me calar (porque acreditem se quiser, eu me mantive sim calada na maior parte das vezes, falando para poucos, ouvindo o contrário de muitos). E é claro que alguns de vocês, muitas vezes não me entenderam – eu definitivamente não culpo vocês – é que às vezes, como agora, doí tanto que é difícil tornar inteligível o que eu digo.
E aí, o que eu peço é paciência. Porque eu sei, que em alguns casos eu causei dor, gerando alguma injustiça; mas, tente imaginar a dor que eu senti ao sofrer, ou ao tentar me expressar sobre algo tão pungente e não conseguir, ou a me ver constantemente sozinha diante desses casos.
Eu não vou mais falar de forma genérica. Não sou eu quem tem que me envergonhar. Eu não vou mais esperar um apoio – que em geral eu não vou ter. Seria tão bom se alguns dos meus amigos, ou colegas, tivessem um ouvido tão bom pra detectar racismo, como têm pra detectar o que não é racismo. Muito do meu sofrimento teria sido evitado, muito da minha dor teria um ombro real para se apoiar…
Fonte: Geledés.
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