Sabrinah Giampá- Como surgiu o seu trabalho com as bonecas?
Ingrith Shabazz - O trabalho com as bonecas é algo mágico e realizador para mim. Sempre gostei de trabalhos manuais. Essa paixão surgiu quando eu era criança e acompanhava minha mãe em cursos de bordados oferecidos por armarinhos da cidade onde moro, Gama-DF. Desde cedo, bordava coisas simples e costurava roupas para as minhas bonecas e bonecos do meu primo. Isso rendeu grande prejuízo, pois cortava meias e acabava com o kit de costura da minha mãe. Por outro lado, fazia a minha imaginação ir longe e aguçou muito minha criatividade. Tempos depois, revendo a história familiar, descobri que o artesanato era um artifício para a minha mãe aliviar suas crises depressivas, e ajudava a distrair minha mente de alguns traumas.
Sabrinah Giampá – Se você me permite, que traumas foram esses?
Ingrith Shabazz- Não posso falar com detalhes, mas você pode citar ‘agressões domésticas’. É porque a última vez que resolvi falar sobre isso, tive que sair de casa…
O trabalho com as bonecas é algo mágico e realizador para mim. Essa paixão surgiu quando eu era criança e acompanhava minha mãe em cursos de bordados. Desde cedo, costurava roupas para as minhas bonecas e acabava com o kit de costura dela. Por outro lado, fazia a minha imaginação ir longe e aguçou muito minha criatividade. Tempos depois, revendo a história familiar, descobri que o artesanato era um artifício para a minha mãe aliviar suas crises depressivas, e ajudava a distrair minha mente de alguns traumas.
Sabrinah Giampá – E quando iniciou esse lindo trabalho, o Customizações Dandara?
Ingrith Shabazz - Por incrível que pareça, iniciei esse projeto em outubro do ano passado. Mesmo com o pouco tempo de existência, a visibilidade das bonecas atingiu um patamar nunca esperado por mim, pois já no primeiro mês, tive que suspender as encomendas, pois não estava dando conta dos pedidos. Tudo começou com a escolha de um presente para minha cunhada, Júlia, que está com 9 anos de idade. Andei em todas as lojas de brinquedos que conhecia, na esperança de encontrar uma boneca que a representasse, uma boneca negra de cabelo crespo. Como era de se esperar, não encontrei nenhuma, e isso me deixou bem inquieta. Como podem existir milhares de prateleiras repletas de bonecas e bonecos simbolizando apenas a imagem de pessoas brancas quando vivemos em um país completamente miscigenado e de pele negra? Estava quase desistindo da ideia da boneca negra, mas, ao passar em frente a uma lojinha, reparei em uma com os traços negros e a pele morena. Era a Monster, mas era a similar, porque a original custa R$150,00 ou mais. Não hesitei em comprá-la, e quando a Júlia a viu, ficou apaixonada e fez um escândalo para que todos vissem a nova boneca. Em outra ocasião, sua mãe teve a brilhante ideia de fazer uma festa de aniversário com o tema ‘Barbie’, mas não considerou o fato de que a criança é negra, e isso gerou alguns incômodos. Não esqueço da cena em que todas as crianças se reuniram ao redor da mesa apontando para a boneca que mais se parecia com elas, porém a Júlia ficou perdida, sem encontrar uma Barbie para se identificar. Sua saída foi falar: “O castelo é meu, o carro é meu! E quem quiser entrar neles tem que pedir para a rainha Júlia!”.(Kkkkkkkkkkk). No mês seguinte, fui visitar a minha prima, Maria Eduarda, que tem apenas 6 anos. Ela sempre se incomodou com o fato de ser ‘chocolata’(negra), como diz. Observei uma boneca muito engraçada entre seus brinquedos. Era uma Barbie de ‘mega hair’, pois estava careca com um tufo de cabelo azul colado no topo da cabeça. Pedi a boneca emprestada para colocar um cabelão lindo e grande. Dudinha concordou e apliquei o primeiro cabelo com lã, porque é mais barato. Costurei fio por fio e depois soltei a trancinha que forma a lã. O resultado foi mágico! Todo o processo de customização ocorreu de forma bem intuitiva e experimental.
Andei em todas as lojas de brinquedos que conhecia, na esperança de encontrar uma boneca que a representasse, uma boneca negra de cabelo crespo. Como era de se esperar, não encontrei nenhuma, e isso me deixou bem inquieta. Como podem existir milhares de prateleiras repletas de bonecas e bonecos simbolizando apenas a imagem de pessoas brancas quando vivemos em um país completamente miscigenado e de pele negra?
Sabrinah Giampá – Como foi sua transição de carreira de estudante de Direito para a customização das bonecas?
Ingrith Shabazz - Bem, eu cursei até o 5º semestre de Direito, mas os contatos com os estágios da área me decepcionaram, então larguei o curso sem remorso algum. Fiquei 1 ano estudando para concursos e estou esperando ser chamada em dois, mas confesso que a ideia de estar engessada em uma sala fechada me deprime. Li o livro do Malcolm ‘X’ e tomei uma injeção de militância negra. Tem uma parte do livro que ele trata especificamente dos cabelos e da autoestima do povo negro. Fiquei remontando minha história e refletindo sobre a falta de afetividade negra que a minha mãe sofreu, e consequentemente, eu e meus irmãos também. Se tudo isso tivesse sido diferente… Meu namorado é blogueiro e cuida de um blog que trata sobre essas questões. Uma vez, ele publicou o trabalho de uma norte americana, ela faz o mesmo trabalho que eu (a única que conheço além de mim). Vi uma boneca que se parecia muito comigo e fiquei louca! Tempos depois, fiz a primeira boneca para a Duda….
Não esqueço da cena em que todas as crianças se reuniram ao redor da mesa apontando para a boneca que mais se parecia com elas, porém a Júlia ficou perdida, sem encontrar uma Barbie para se identificar. No mês seguinte, fui visitar a minha prima, Maria Eduarda, que tem apenas 6 anos. Ela sempre se incomodou com o fato de ser ‘chocolata’, como diz. Observei uma boneca muito engraçada entre seus brinquedos. Era uma Barbie de ‘mega hair’, pois estava careca com um tufo de cabelo azul colado no topo da cabeça. Pedi a boneca emprestada para colocar um cabelão lindo e grande. Dudinha concordou e apliquei o primeiro cabelo com lã, porque é mais barato. Costurei fio por fio e depois soltei a trancinha que forma a lã. O resultado foi mágico! Todo o processo de customização ocorreu de forma bem intuitiva e experimental.
Sabrinah Giampá – Eu também publiquei o trabalho dessa americana no Cachos & Fatos, quando ele ainda se chamava Preciosas Bobagens, faz bastante tempo já. Ela serviu de inspiração pra você então?
Ingrith Shabazz - Essa americana me fez enxergar que é possível trazer representatividade para as crianças negras sem depender da consciência das grandes indústrias de brinquedos.
Sabrinah Giampá – Qual o objetivo principal do Customizações Dandara?
Ingrith Shabazz- O objetivo desse trabalho é proporcionar às crianças negras oportunidades de conviver com ícones representativos, longe dos padrões de beleza impostos pelos canais midiáticos (apesar de ainda não ter conseguido encontrar bonecas gordas). É ensinar que cabelo crespo não é feio ou ruim, ele é lindo e deve ser preservado de processos que levam ao embranquecimento de nossas identidades. Agora as crianças podem ser quem são nas brincadeiras. Entretanto, esse meu objetivo não é do alcance de todos, pois não é toda mãe que pode pagar pela boneca, e doações são difíceis e custosas, não é algo que posso fazer com frequência, pois passei a viver disso, e tenho aluguel e contas para pagar no fim do mês. Mesmo assim, sempre que posso, dou alguma boneca para crianças negras e de baixa renda, ou faço muito mais barato para as mães. Sei o quanto é desumana essa ótica capitalista…
O objetivo desse trabalho é proporcionar às crianças negras oportunidades de conviver com ícones representativos, longe dos padrões de beleza impostos pelos canais midiáticos (apesar de ainda não ter conseguido encontrar bonecas gordas). É ensinar que cabelo crespo não é feio ou ruim, ele é lindo e deve ser preservado de processos que levam ao embranquecimento de nossas identidades. Agora as crianças podem ser quem são nas brincadeiras.
Sabrinah Giampá- Quanto custam as bonecas, como fazer para adquiri-las?
Ingrith Shabazz - Os valores das bonecas variam. Se a cliente quiser revitalizar e customizar uma boneca usada de valor sentimental que guarda, cobro R$ 45,00 pelo implante. Se a Barbie for minha, cobro R$ 80,00 (Barbie original). A boneca mais negra que consigo é um modelo similar à Monster Hi, e custa R$ 65,00.Estou pesquisando ‘bebezões” negras (os) com preços acessíveis, mas também implanto cabelo se a cliente me passar a boneca. Essas bonecas são vendidas apenas por encomenda e o contato realizado por whatsapp, (61)93254630 ou facebook, Ingrith Shabazz. O processo ocorre assim:
a) A cliente escolhe o modelo da boneca e do cabelo que quer (pode enviar fotos para eu imitar a textura do cabelo),
b) A cliente escolhe a cor e estilo de roupa de sua preferência (vestido, short, blusa…)
c) Agendo a data da entrega,
d) O pagamento é feito por depósito ou pessoalmente no caso de quem mora em Brasília.
e) O valor da boneca é acrescido ao da taxa de entrega (estipulado pelos correios) para quem mora fora de Brasília.
a) A cliente escolhe o modelo da boneca e do cabelo que quer (pode enviar fotos para eu imitar a textura do cabelo),
b) A cliente escolhe a cor e estilo de roupa de sua preferência (vestido, short, blusa…)
c) Agendo a data da entrega,
d) O pagamento é feito por depósito ou pessoalmente no caso de quem mora em Brasília.
e) O valor da boneca é acrescido ao da taxa de entrega (estipulado pelos correios) para quem mora fora de Brasília.
Sabrinah Giampá – Você tem uma página com portfólio para as possíveis compradoras?
Ingrith Shabazz - Clique aqui!
Entretanto, esse meu objetivo não é do alcance de todos, pois não é toda mãe que pode pagar pela boneca, e doações são difíceis e custosas, não é algo que posso fazer com frequência, pois passei a viver disso, e tenho aluguel e contas para pagar no fim do mês. Mesmo assim, sempre que posso, dou alguma boneca para crianças negras e de baixa renda, ou faço muito mais barato para as mães. Sei o quanto é desumana essa ótica capitalista…
Sabrinah Giampá – Além das crianças, as bonecas conquistaram também adultos que não puderam vivenciar esta sensação de ‘pertencimento’ na infância?
Ingrith Shabazz - O meu foco é alcançar crianças negras, mas sinto que a carência de bonecas pretas atinge principalmente mulheres adultas que não tiveram a oportunidade de brincar. Elas são a maioria que adquirem as mini divas. Fico muito feliz quando recebo encomendas destinadas para crianças, mas amo ver as mulheres se identificando com elas. Esses dias recebi um depoimento de uma das clientes: “Depois que eu conheci a Ingrith Shabazz e adquiri a minha primeira boneca da Customizações Dandara, eu tive uma certeza: NÃO IRIA MAIS RELAXAR MEUS CABELOS. NÃO IRIA MAIS ME AGREDIR! E assim eu tenho vivido. Um dia após o outro… Sempre tendo orgulho da minha raça, orgulho da minha cor, orgulho dos meus cabelos e orgulho do meu nariz!! Feliz. 100% NEGRITUDE”
O meu foco é alcançar crianças negras, mas sinto que a carência de bonecas pretas atinge principalmente mulheres adultas que não tiveram a oportunidade de brincar. Elas são a maioria que adquirem as mini divas. Fico muito feliz quando recebo encomendas destinadas para crianças, mas amo ver as mulheres se identificando com elas.
Sabrinah Giampá- Acredita que a falta de referências de beleza negra interfere diretamente no desenvolvimento e autoestima dessas crianças? Comente.
Ingrith Shabazz - Isso não deveria ser uma pergunta, mas uma afirmativa: A falta de referências de beleza negra interfere diretamente no desenvolvimento e autoestima dessas crianças. A minha vida mudou depois que a ‘venda’ dos meus olhos caiu. Assisto TV e só vejo imagens de pessoas brancas. Ao observar crianças indo para a escola, só vejo mochilas estampadas com personagens brancos. Em brinquedotecas e em brincadeiras cotidianas, o que enfeita as brincadeiras são bonecas e bonecos brancos. O efeito disso é devastador! Crianças são submetidas a procedimentos cancerígenos e degradantes na tentativa do embranquecimento. Afinal, quem vai querer ser diferente do padrão de beleza? Nenhuma consciência do que é ser negra(o) é passada para nossas crianças. Quando passada, é de forma bem pejorativa, na forma de ensinar que somos ‘descendentes de escravos’ (nosso povo foi escravizado) e que a princesa Isabel foi nossa heroína, quando na verdade, minha heroína é DANDARA e meu herói é ZUMBI.
Esses dias recebi um depoimento de uma das clientes: “Depois que eu conheci a Ingrith Shabazz e adquiri a minha primeira boneca da Customizações Dandara, eu tive uma certeza: NÃO IRIA MAIS RELAXAR MEUS CABELOS. NÃO IRIA MAIS ME AGREDIR! E assim eu tenho vivido. Um dia após o outro… Sempre tendo orgulho da minha raça, orgulho da minha cor, orgulho dos meus cabelos e orgulho do meu nariz!! Feliz. 100% NEGRITUDE”
Sabrinah Giampá – Muitos leitores(as) não sabem que foram Dandara e Zumbi. Você pode explicar pra elas?
Ingrith Shabazz - O nome Dandara é em homenagem à heroína do Quilombo dos Palmares, ela me inspirou muito. Só conheci sua história aos 21 anos de idade (culpa da educação Eurocêntrica). Dandara e Zumbi é o casal que deu certo. Zumbi foi o chefe do Quilombo dos Palmares e Dandara, sua companheira, liderava as mulheres do quilombo. A história de Zumbi recebe mais atenção e detalhes pelo fato de ele ser homem e beneficiado por essa condição, mas Dandara me encanta muito mais!!! A biografia dela é um enigma e suas conquistas e lutas são descritas como lendas por falta de documentação. Provavelmente, ela morreu em fevereiro de 1694. Ela se matou em uma pedreira quando estava prestes a ser capturada por militares. Ela preferiu morrer de uma vez ao morrer aos poucos como escrava.
Assisto TV e só vejo imagens de pessoas brancas. Ao observar crianças indo para a escola, só vejo mochilas estampadas com personagens brancos. Em brinquedotecas e em brincadeiras cotidianas, o que enfeita as brincadeiras são bonecas e bonecos brancos. O efeito disso é devastador! Crianças são submetidas a procedimentos cancerígenos e degradantes na tentativa do embranquecimento. Afinal, quem vai querer ser diferente do padrão de beleza?
Sabrinah Giampá – É muito triste que a maioria das pessoas, principalmente crianças negras não tenham acesso a história de sua própria cultura, pois pelo que eu saiba, existe uma lei, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio.
Ingrith Shabazz - Sim, existe uma lei, a 10639/03. Fiz amizade com a professora Fabíola, de Vitória, que aplica essa lei usando bonecas e bonecos para contar histórias.Nos identificamos muito com essa luta, e inclusive, estou tentando entrar para pedagogia na UnB (Universidade de Brasília). Meu objetivo é levar esse projeto adiante por aqui também.
Nenhuma consciência do que é ser negra(o) é passada para nossas crianças. Quando passada, é de forma bem pejorativa, na forma de ensinar que somos ‘descendentes de escravos’ (nosso povo foi escravizado) e que a princesa Isabel foi nossa heroína, quando na verdade, minha heroína é DANDARA e meu herói é ZUMBI.
Sabrinah Giampá – As bonecas surgiram pra fugir deste padrão de beleza imposto e a falta de referências. Imagino que como mulher negra, você também deve ter passado por tudo isso. Comente.
Ingrith Shabazz - As bonecas são uma tentativa de fuga desse padrão embranquecedor, porém não consigo pigmentar a pele das bonecas, e isso dificulta o meu trabalho, pois sabemos que até o tom de nossa pele interfere no modo e nível de aceitação social. As referências negras que temos são poucas, ao menos as que nos são apresentadas largamente pela mídia. Se estudássemos mais a cultura e história negra, conheceríamos várias referências para nos dar apoio no sentido de acreditar que podemos ser quem desejamos, não apenas o que nos é imposto devido a precariedade do aparato estatal que nossos irmãos recebem.
Como diz a letra de “Mulheres Negras”, interpretada por Yzalú:
“Não fomos vencidas pela anulação social,
Sobrevivemos à ausência na novela, no comercial;
O sistema pode até me transformar em empregada,
Mas não pode me fazer raciocinar como criada;”
“Não fomos vencidas pela anulação social,
Sobrevivemos à ausência na novela, no comercial;
O sistema pode até me transformar em empregada,
Mas não pode me fazer raciocinar como criada;”
Eu sofri muito com esse sistema doente! Alisei e mutilei o meu corpo de diferentes formas na tentativa de me encaixar ao padrão estético. Esquecendo-me de que não importava o modo como eu me enxergava, continuaria sendo negra e alvo de opressões, continuaria a frequentar escola pública, a ser confundida com garçonetes. Em um de meus processos de alisamento, perdi grande parte de meus cabelos. Hoje em dia não entendo o porquê de ninguém ter falado o quão linda eu era na infância, como meus cabelos eram lindos e que não havia necessidade daquilo. Lamentável.
Fonte: Cachos e Fatos.
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