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quinta-feira, 12 de março de 2015

Ecos que não se findam


Teatro negro redesenha novo cenário com criações que ocupam lugar na produção artística

por JOYCE ATHIÊ,
Em conversas alongadas, com vozes calmas como que se explicassem algo que gostariam que fosse entendido, alternadas por momentos de entusiasmo, os entrevistados desta matéria pareciam tanto querer dizer como o próprio teatro negro.

Em um momento em que as artes cênicas refletem a organização do movimento negro, com crescentes iniciativas artísticas que abordam suas temáticas, muito caminho há pela frente para uma sólida inserção no mercado artístico de atores negros. É a partir dessa realidade que nasce a Mostra Benjamin de Oliveira, que está com inscrições abertas para espetáculo de elenco predominantemente negro.

Apesar da difícil definição, parece haver pontos comuns em torno do termo que se baseia na afirmação da identidade negra, que bebe na matriz africana valores, vivências e o combate à discriminação racial para o palco.

Para a pesquisadora e atriz Soraya Martins, a estética do teatro negro é política e se baseia em uma constante criação e recriação. “Relembrar é recriar uma cultura que vai dialogar com suas raízes e trazê-la de modo diferente”. O ator Alexandre de Sena acredita que a nomenclatura vem para marcar um território na produção artística que não abarca a criação do negro. “O próprio termo é uma resistência”, ressalta. O ator e pesquisador Marcos Alexandre pensa o teatro negro como lugar de enunciação, a partir dos pontos de vista desse sujeito negro que aborda seus saberes e experiências individuais e coletivas.

O consenso também se estabelece ao dizer da estética desse teatro, a qual preferem o plural, as estéticas, em função da diversidade que apresentam, muito embora a corporeidade é destacada. O corpo, entendido como instrumento de memória, é uma forma de acesso à história desses sujeitos. “A partir do momento em que os negros foram escravizados e tirados do seu lugar de fala, eles não tinham outro lugar, a não ser o corpo, para deixar e para entrar em contato com sua cultura”, diz Soraya.

A construção desse teatro tem bases em outros tempos. O clássico “O Imperador Jones”, texto do estadunidense Eugene O’Neill, provocou um dos primeiros impactos no Brasil. A tragédia de um líder negro foi vista em 1941 nos palcos do Teatro Municipal de Lima, capital do Peru, por Abdias do Nascimento, intelectual e militante da causa negra. O impacto veio associado a um choque: o herói negro era representado por um ator que tinha sua pele branca pintada de preto.

Nascia, três anos depois, no Rio de Janeiro, o Teatro Experimental Negro, TEN, com o desejo de combater os estereótipos e ocupar o espaço que fora negado aos afrodescendentes. De forte afiliação política, o TEN descreve em seu manifesto ser objetivo do grupo valorizar a contribuição negra à cultura brasileira e dotar os palcos de uma dramaturgia intrinsecamente negra.

Com elenco que contava com nomes como Lea Garcia, Ruth de Souza, o TEN produziu peças que explicitavam o drama negro como o já citado “O Imperador Jones” e “Anjo Negro”, de Nelson Rodrigues. “Eles colocaram esse sujeito no teatro como homem”, diz Marcos Alexandre, que relembra ainda a ocupação do TEN a outros territórios para além dos palcos, realizando seminários, fóruns e atuando na educação da comunidade negra.

Inspirando outras iniciativas, o TEN é base do Bando de Teatro Olodum que se destaca por experiências expressivas no teatro negro no Brasil contemporâneo. Surgido em 1990, na Bahia, é deles que vem o discurso que assume as críticas em relação ao que se chama de teatro panfletário. “A gente montou Shakespeare com reis e rainhas negros e nem por isso deixamos de abordar a genialidade do dramaturgo. Queremos assumir o protagonismo. Talvez seja panfletário sim, mas acho que ainda temos que ser”, comenta Cássia Valle, atriz do grupo desde 1991.

Os discursos panfletários que chegam aos palcos sem muitas vezes receber um tratamento artístico, levando quase que de forma direta o discurso acadêmico e militante direto para os palcos, é quase um vômito. “O risco do panfletário existe porque quando a gente encontra um lugar pra falar, a gente já está preenchido de gritos. E essa parte seguinte de uma construção artística fica talvez em segundo plano. A sensação de estar e de ocupar um lugar que não te aceita é de chegar ali e gritar mesmo”, diz Alexandre.

Dando seguimento a uma linhagem, a Cia dos Comuns surge em 2001, no Rio de Janeiro, inspirada pelo Bando de Teatro Olodum. Criada pelo ator e diretor Hilton Cobra, a companhia cria uma pesquisa poética que mostra o desafio de “dar voz ao indizível”.

“Silêncio”
“Silêncio para descobrir nossa própria fala, que a voz exala
Silêncio individual Gangrena histórica Quando escreve, não fala, e para quê?
Silêncio para descobrir nossa própria fala
Há represa na alma? Silêncio individual Silêncio histórico. E o veneno?
Quando escreve, não fala. Será que cala?
Não quero mais calar” Texto de “Silêncio”, da Cia. dos Comuns.

Fonte: Otempo.

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