A dentrar no cotidiano de um presídio feminino por seis meses, ouvindo diariamente as histórias das presidiárias, procurando entender a vida dessas mulheres antes, durante e depois da cadeia. Essa foi a experiência da antropóloga Débora Diniz*, que vai lançar no segundo semestre deste ano um livro com 50 histórias baseadas no que ouviu no presídio.
Débora, que é professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), relata a sua percepção em relação a essas mulheres, apresentando uma visão sem preconceitos e estereótipos concebidos normalmente pela população. A antropóloga, de 43 anos, ficou conhecida por ser uma das articuladoras da ação judicial no Supremo Tribunal Federal que resultou na autorização do aborto de fetos anencéfalos.
A garantia do cumprimento de pena em condições justas e humanas é preocupação constante do Conselho Nacional de Justiça, que, desde maio deste ano, trabalha em melhorias da situação carcerária no Brasil por meio do programa Cidadania nos Presídios. As ações que compõem o programa giram em torno de três eixos: mudança da metodologia de preparação e julgamento dos processos de progressão de regime, com intuito de acelerá-los; atenção do Poder Judiciário sobre as condições físicas dos presídios; e o acompanhamento do preso para que tenha acesso à saúde e à assistência social e, ao ganhar a liberdade, ao mercado de trabalho e à cidadania.
CNJ – A maioria das presas do Colméia – e quiçá do Brasil – está nesta condição pelo tráfico de drogas. Pelas histórias que ouviu no presídio, a senhora acredita que grande parte delas se envolveu com o tráfico por falta de oportunidades, pobreza e baixa escolaridade?
Há um perfil comum à população carcerária brasileira – ela é pobre, pouco escolarizada, jovem e negra. A inserção no mundo do trabalho é periférica, o que pode nos levar à pergunta das razões da migração do trabalho legal, porém periférico, à ilegalidade do tráfico de drogas. Dado o perfil da população, seria simples considerar que foi a precarização da vida, em particular a pobreza, um dos fatores decisivos para a entrada no tráfico, mas não há estudos que mostrem uma causalidade única para a entrada no tráfico de drogas. O mais correto seria lembrarmos que há um perfil da mulher presa e que esse perfil a torna vulnerável ao mercado da ilegalidade da droga, seja como usuária ou como traficante.
CNJ- Pela sua experiência no Presídio Feminino do Distrito Federal, faltam oportunidades de ressocialização para as presas durante o cumprimento da pena por meio do trabalho?
As dificuldades do sistema prisional não são particulares do presídio da capital do país, mas é uma característica comum a muitos que já visitei ou li estudos. O que é isso que chamamos de ressocialização? O presídio – qualquer um deles, e não apenas no Distrito Federal – faz é cercear a liberdade. Há tentativas de inserção no mundo do trabalho e de profissionalização, mas nenhuma dessas iniciativas são capazes de suprir uma gigantesca demanda, inclusive anterior à chegada da mulher ao presídio.
CNJ – As entrevistadas mostraram-se envolvidas no trabalho que realizam no presídio?
Há uma diversidade de condições de relação entre a mulher presa e o trabalho. Há muitas que realizam trabalho externo. Umas poucas em regime fechado fazem trabalho interno – oficinas de trabalhos manuais, em geral. Algumas, já em progressão de regime, realizam trabalhos gerais, de limpeza ou higiene, fora do presídio. O trabalho é valorizado por duas perspectivas: porque reduz tempo de prisão e porque preenche o marasmo dos dias, já que a vida em um presídio é repleta de espera e solidão. O trabalho permite a imposição de um ritmo para além daquele determinado pela administração por meio dos horários de alimentação ou de banho de sol.
CNJ – Como você avalia a perspectiva das presas da Colméia em relação ao futuro? As entrevistadas mostram-se arrependidas, pretendem trabalhar ao término da pena? Sentem vontade de voltar a estudar?
Falamos muito em arrependimento quando tentamos entender a população prisional e essa é a pergunta que mais escutei fazerem a elas, mas entendo pouco o que querem dizer ou o que elas respondem. O que posso assegurar é que a prisão é um lugar infernal, uma máquina produtora de mulheres abandonadas, e que há muita solidão e tristeza em viver por ali. Formalmente, todas querem estudar, querem um trabalho, uma casa ou uma família, mas esse é o plano perfeito para a sobrevivência em um mundo que ignora as razões de porque, em algum momento da vida, elas atravessaram aquela porta.
CNJ – Pela sua experiência no presídio, a maior angústia das mulheres é estar longe dos filhos? Elas recebem visitas das crianças ou de companheiros com frequência?
A maior angústia das mulheres é igual a dos homens – estar privada de liberdade. Viver entre grades, ter a vida regrada e controlada é uma experiência aterrorizante. Mas, diferente de muitos homens, as mulheres vivem um acréscimo de angústia: os filhos dependem delas ou as acompanham ao presídio. A história mais comum é uma mulher cair, ou seja, ser presa, após seu companheiro ter sido preso. Assim, a prisão de uma mulher, regra geral, marca um ciclo dramático para a sobrevivência familiar: os filhos dependem dela antes mesmo da entrada no crime e dependerão mais ainda com a prisão do companheiro e dela.
Visitadoras são sempre mulheres. São mulheres visitando os homens, são mulheres visitando as mulheres. A diferença é que, no presídio masculino, as visitadoras são mães, companheiras ou namoradas. No presídio feminino, são mães, filhas ou amigas. Há um círculo de mulheres em torno da prisão a que a literatura sociológica descreve como aprisionamento secundário.
CNJ – Você acompanhou mulheres com bebês no presídio? Como foi essa experiência?
No presídio da capital, há uma ala específica para mulheres e seus bebês até seis meses. Uma mulher quando engravida é transferida para esta ala e ali permanece durante os primeiros meses de amamentação. A vida nesta ala é um pouco melhor que na multidão do presídio – não há cigarro, tenta-se sobreviver com menos barulho e não há a mesma lotação. No entanto, essa condição de cuidado é rápida, estende-se durante a gravidez e os seis primeiros meses. No dia seguinte à entrega da criança para alguém de fora – em geral, a avó materna –, a mulher retorna para a multidão, secará o leite e terá que sobreviver sem o bebê que a encheu de sentido para a sobrevivência na cadeia.
CNJ – No presídio de Brasília, o ambiente é de agressividade entre as presas? Há conflitos entre grupos? Pela sua percepção, o clima era de violência?
Há uma frase típica de presídio: “aqui ninguém é amiga de ninguém”. É uma frase que descreve e antecipa comportamentos, alianças e conflitos. O presídio não é um monastério de oração e silêncio – é um espaço de confinamento compulsório, onde muitas mulheres sofrem com a abstinência da droga, outras estranham-se por histórias anteriores ao presídio, algumas poucas não suportam a solidão. Violência é só uma das formas de regular as diferenças e os conflitos, mas não é a única. O que mais me impressiona em espaços de exceção como é o presídio são as formas sutis de resistência da humanidade: amizades, namoros, leituras, compartilhamentos. Um desses exemplos é a distribuição da COBAL, a cesta de compras autorizada pelo presídio a ser trazida pela família às presas. Há casos de presas sem visitadoras e, para algumas delas, outras presas compartem o que recebem.
CNJ – Há uma hierarquia entre as presidiárias, ou seja, há presas que “ditam as regras” para as demais?
Em todos os espaços há hierarquias e o presídio não é uma exceção. A xerifa de uma ala é uma delas. As hierarquias são formadas pela antiguidade, pela força, pelas alianças. Ser uma xerifa pode ser uma posição de vantagem, mas é sempre um posto em disputa – não há autoridade externa que reconheça a autoridade de uma xerifa. A conquista é permanente.
CNJ – As presas relataram falta de assistência médica e falta de higiene nas celas? Você ouviu reclamações em relação à alimentação?
Minha pesquisa final foi realizada no serviço de saúde do presídio. Ali havia uma equipe formada para atendimento das necessidades de saúde. Eram poucos profissionais, é verdade, mas lotados no presídio, o que considero um avanço dada a realidade nacional. Alimentação é tema permanente de queixa e há razão para o sofrimento. Você já viu uma xepa de cadeia? Não recomendo.
CNJ – As entrevistadas expressaram medo em relação ao preconceito que terão que enfrentar ao sair da prisão?
Esse é um tema permanente na vida de uma presa: que história contarei de mim mesma após ter saído daqui? Algumas contam a verdade, outras inventam histórias de migração. A verdade é que a distância imposta pela prisão, o tempo sobrevivido fora do mundo, exige ainda narrativas sobre como se reencontar para o período que virá fora dali.
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Débora Diniz
Débora, que é professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), relata a sua percepção em relação a essas mulheres, apresentando uma visão sem preconceitos e estereótipos concebidos normalmente pela população. A antropóloga, de 43 anos, ficou conhecida por ser uma das articuladoras da ação judicial no Supremo Tribunal Federal que resultou na autorização do aborto de fetos anencéfalos.
Débora, que é professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), relata a sua percepção em relação a essas mulheres, apresentando uma visão sem preconceitos e estereótipos concebidos normalmente pela população. A antropóloga, de 43 anos, ficou conhecida por ser uma das articuladoras da ação judicial no Supremo Tribunal Federal que resultou na autorização do aborto de fetos anencéfalos.
Fonte: Geledés, Justi Ficando.
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