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quinta-feira, 30 de julho de 2015

Eu, mulher negra na universidade… academicista?


Nós, mulheres negras, correspondemos 25% da população brasileira. Fazendo uma análise do lugar social que ocupamos, chegamos a números alarmantes[1]:

O salário de uma mulher negra corresponde a aproximadamente 30% do total do salário de um homem branco pela mesma função, até mesmo quando essa função já é de um salário extremamente baixo, como entre os funcionários terceirizados.

A jornada semanal total das trabalhadoras negras é exatamente a mesma das brancas (57,9 horas). Entretanto, as mulheres negras dedicam, em média, 2,1 horas semanais a mais do que as brancas nas atividades relacionadas aos afazeres domésticos – 23,0 e 20,9 horas, respectivamente. Ou seja, além da tarefa laboral, as mulheres negras acumulam mais tempo com o serviço doméstico. Provavelmente por que recebem menos a contribuição de seus companheiros ou por que são sozinhas na administração da casa (mães solteiras, divorciadas)

Diante destes números, podemos imaginar que quando falamos de mulheres negras que conseguem ser aprovadas para um curso superior, e/ou concluir os números deve ser ainda mais assustadores. As mulheres são maioria cursando ensino superior, mas mulheres e homens negros ocupam ainda um espaço muito pequeno entre os universitários.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2011, 9% dos jovens negros entre 18 a 24 anos cursam ensino superior, já entre o grupo de brancos da mesma idade, esse número é mais que o dobro: 25,6% matriculados em cursos de graduação.

E por que é tão preocupante que negros, especialmente nós, negras, não tenhamos acesso ao ensino superior no Brasil? Podemos listar diversos motivos que colocam o quão importante é a presença de negros e negras nos espaços acadêmicos. Diversos estudos já comprovam que quanto maior o nível de escolaridade atingido, maiores as chances de empregabilidade. Mesmo sabendo que negras e negros recebem um menor salário pela mesma mão de obra, as chances de colocação no mercado de trabalho aumentam. O aumento de negros e negras na universidade também proporciona que a produção de conhecimentos gerada nos espaços acadêmicos seja através de outra ótica: a ótica do oprimido e não do opressor. Prova disso é quantidade de novos grupos de pesquisas e de investigações que abordam a temática racial, fato praticamente inexistente há alguns anos atrás. Mas, também destacamos que o ingresso ao curso superior nos promove o acesso a conhecimentos que foram negados a gerações. Se lembrarmos que a menos de 200 anos atrás no Brasil havia leis no Brasil que dificultavam o acesso ao ensino primário por negros libertos e proibia escravos de frequentarem a escola[2], vemos que a maioria dos negros e negras que estão na universidade hoje é a primeira geração de suas famílias a ocupar os bancos de uma universidade. Com a aprovação das cotas, mesmo como uma medida ainda limitada, se consideramos toda a dívida que o Estado brasileiro tem como o povo negro, o número de negros e negras nas universidades quase dobrou nos últimos 10 anos.

Mas, não nos enganemos. Apesar da importância de acessar o ensino superior, permanecer nele é uma difícil missão. Em pesquisa feita pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), em que foi observada a porcentagem de estudantes negros que concluíram seus cursos, apenas 6,13% se autodeclaram pretos ou pardos. E esses números são ainda menores em carreiras como medicina, no qual o percentual é de 2,66. Muitos fatores influenciam para o abandono do curso superior. Além da jornada dupla, trabalhar e estudar é a realidade para a maioria de jovens negras, o ambiente da universidade é opressor aos estudantes negros e negras. Nossa música não é bem vinda, nossa cultura é dita como não-cultura, nosso corpo fetichizado (casos de assédios morais não são raros), nossa linguagem é inadequada, além dos casos racismo explícitos. Sim, ser negro e negra na universidade não é fácil. Nem o percurso para chegar até lá, nem sua permanência.

Diante de todos estes fatos, da necessidade de nos apropriamos de um espaço que foi historicamente branco e ao mesmo tempo da dificuldade de ser e estar neste lugar, eu me pergunto: a que serve a “acusação” ACADEMICISTA entre negros e negras?

É cada vez mais comum que quando negros, e especialmente, uma mulher negra lançam mão de algum conhecimento acadêmico somos prontamente “acusadas” de academicista. A palavra tomou um peso de um palavrão, é como um pecado. Você ter acessado determinados graus de conhecimento e usá-los no seu cotidiano é como uma afronta.

Ou seja, nós, além de passarmos pelo funil do vestibular, pelas pressões dentro do mundo acadêmico, ainda não podemos usar o que aprendemos publicamente ou corremos o rico de sermos “xingadas” de academicistas. Devemos simplesmente esquecer o que aprenderamos e ter uma vida dupla. Uma na academia e outra na rua, fingindo que não sabemos outro idioma ou que não viajamos, ou que não conhecemos textos teóricos.

Mas, a reflexão que tenho neste momento é: porque isso não é um problema entre os brancos? Porque eles não se atacam com o xingamento “academicista”? Porque eles não são deslegitimados quando usam o que aprenderam em seus anos de estudos? Por que, para eles, estar na universidade, saber línguas é comum. É o que se espera de um branco. Como é comum, eles podem inclusive dizer que a universidade é dispensável. Eles podem escolher… Nós não. Nunca pudemos escolher! Cada um que entrou, entrou por sacrifício pessoal ou da família.

Portanto, para mim, esta acusação é uma armadilha. Não cabe às mulheres negras o estigma de academicistas simplesmente por que elas dominam o conteúdo livresco de determinada área e o usam para dar explicações à realidade que as circundam. Considerando a posição social que historicamente ocupamos, não podemos cair na armadilha de convencer irmãs negras de que elas estão no lugar errado. Estas irmãs, além de passar as dores de serem mulheres negras no mundo acadêmico – ainda branco e racista – ainda têm que ouvir que o conhecimento pelo qual lutamos incansavelmente para acessar é inútil à nossa luta.

Nem que nós negras queiramos, não seremos a representação da burguesia apenas por ter acesso aos conhecimentos que historicamente foram reservados aos brancos. A sociedade nos lembra de nosso lugar em todo momento. Mesmo com um título de doutora, somos negros e negras e o ambiente acadêmico nos engole, mas não nos aceita. NÓS NUNCA SEREMOS REPRESENTANTES DA ACADEMIA NA SOCIEDADE CAPITALISTA! NUNCA SEREMOS ACADEMICISTAS APENAS POR QUE CITAMOS FILÓSOFOS!

A nós, que acessamos os conhecimentos sistematizados na universidade, cabe entender que temos um papel, temos uma responsabilidade e não é dar carteirada de quem é mais inteligente. Nós podemos dar o maior passo da história. Sabemos o que só nós negras e negros sabemos – por que aprendemos na luta, temos o conhecimento ancestral. Mas, acessando a universidade, sabemos também o que os brancos também sabem, por que tiveram acesso à universidade desde sempre. Não são conhecimentos antagônicos, são conhecimentos complementares, que só podem ter força se forem conciliados. A teoria que aprendemos só tem força se for usada para ajudar a transformar a realidade. Para ajudar quem ainda está fora da universidade a dar saltos na nossa luta.

Não temos tempo para nos colocar em lados opostos do front. Não temos tempo para hierarquizar a dor. Não temos tempo de hierarquizar conhecimento. Não temos tempo para abrir mão de qualquer instrumento de luta. Se os brancos podem abrir mão do conhecimento sistematizado, eles que abram mão. Não deixarei nenhum dos nossos abrir mão do que a humanidade produziu e tomar este conhecimento para transformar a sua e a nossa realidade. Eu afirmo que, em nossas mãos, o conhecimento sistematizado pode tomar uma dimensão revolucionária. É tudo nosso e nada deles!

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Referências:
[1] Dados da OIT (2009)

[2] Falamos da Reforma Couto Ferraz, como ficou conhecido o Decreto nº. 1331A, de 17 de fevereiro de 1854: o seu artigo 69 proibia explicitamente a admissão de escravos nas escolas públicas. Além dos escravos, o artigo 69 também incluía nessa interdição os que padecessem de moléstias contagiosas e os que não fossem vacinados. Escravos libertos poderiam frequentar, entretanto, a vinculação de negros a doenças e moléstias, afastava os negros e negras o ambiente escolar.

Imagem destacada: Dra. Eliza Ann Grier. Nasceu escrava e se tornou a primeira afro-americana médica na Georgia (EUA).

Negra, Mulher, Nordestina, Trabalhadora do ramo da educação por opção. Doutoranda no Programa de Educação da Unicamp

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