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quarta-feira, 8 de julho de 2015

O linchamento como sintoma


O verdadeiro crime cometido por Cleydison Pereira Silva, espancado até a morte por justiceiros nesta segunda-feira no Maranhão, não está previsto no Código Penal. Seu assassinato desnuda a crise de representatividade que vive o país e a seletividade de uma indignação tão justa quanto pontual

Por Murilo Cleto,
Aconteceu de novo. Cleydison Pereira Silva foi amarrado a um poste e espancado até a morte por um grupo de pessoas em São Luís, capital do Maranhão. Ao contrário do que se anuncia, seu crime não foi o assalto. Aliás, pode até ter sido um deles, mas não o mais importante. Pro crime de assalto, a legislação brasileira prevê de 4 a 30 anos de reclusão, conforme o caso, de acordo com o Código Penal.

Mas não é deste crime que se trata a sentença de Cleydison. 4 ou 30 anos não seriam o suficiente pra saciar o desejo de justiça daqueles que rasgaram suas roupas, arremessaram-lhe pedras e garrafas e o golpearam até que uma hemorragia o matasse de vez.

No ano passado, três episódios semelhantes ganharam destaque nacional. Em janeiro, 14 homens amarraram um adolescente também a um poste no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. No Piauí, um homem foi arremessado sobre um formigueiro com mãos e pés amarrados. Em maio, uma mulher foi linchada até a morte no Guarujá por um grupo de pessoas que a confundiu com uma praticamente de “magia negra” depois da multiplicação de um boato pelo Facebook. Só na primeira metade de 2014, foram 50 casos registrados.

Em Linchamentos: a justiça popular no Brasil (Contexto, 2015), o sociólogo José de Souza Martins sepulta de vez o mito do brasileiro cordial: o país é o que mais pratica justiçamentos no mundo. De acordo com o seu levantamento, um milhão de compatriotas participaram de linchamentos em 60 anos. E muito embora o início da década de 2000 tenha apresentado uma queda significativa dos casos, de 2013 pra cá eles têm aumentado em velocidade progressiva e não é por acaso.

Para a pesquisadora Ariadne Lima Natal, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, há uma correlação entre a presença do Estado e os índices de justiçamento. Onde a ausência dos seus serviços é mais sentida, as chances de violência pretensamente reativa aumentam exponencialmente. E é neste sentido que o papel da mídia precisa ser problematizado.

Antes de zerar as mortes pelo tráfico no país, o Uruguai restringiu os horários dos programas policiais. No Brasil, além de reforçarem a ideia de impunidade e de alimentarem o imaginário de uma delinquência juvenil aliciada pelo crime, eles transmitem e incentivam ao vivo e sem restrições a chacina de suspeitos, alvejados a sangue frio sob os urros dos apresentadores extasiados. Rachel Sheherazade virou referência moral ao defender as ações dos justiceiros do Flamengo em rede nacional no SBT.

Doutora em estudos da segurança e professora do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Jaqueline de Oliveira Muniz sustenta que o linchamento é um “fenômeno que sempre ressurge diante de ondas de temor. Diante do medo, queremos uma solução imediata, e tendemos a abrir mão das nossas regras [leis].”

Quanto maior o destaque a histórias de violência vividas pelo país, maior a sensação de que o Estado já não é digno de confiança o suficiente pra que a justiça aja por si, daí a recorrência a medidas que rompam com o contrato social vigente.

E se tem algo que 2013 deixou de legado para o país é o escancaramento da dissonância completa entre as instituições que têm por função a garantia dos direitos sociais, dentre eles a segurança, e a população, que foi às ruas com vozes distintas, mas que guardavam um importante coro anunciado: o Estado não lhe representa.

30% dos manifestantes votariam em Joaquim Barbosa para presidência da república. Logo ele, sem sequer apresentar vinculação partidária. Logo ele, juridicamente contestado por agir à margem da lei durante o processo do mensalão petista para forçar condenações, e popularmente ovacionado por satisfazer o anseio de justiça entalado na garganta dos brasileiros. Não por acaso, foi relacionado ao super-herói Batman, personagem que tem reaparecido com frequência nos protestos contra o governo Dilma.

O que eram três ou quatro tentativas de linchamento tornaram-se mais de uma por dia desde 2013. E engana-se muito ou quer fazer enganar quem diz que isso pode se tratar de um reflexo inconteste da impopularidade da presidenta: ao final do ano que marcou as Jornadas de Junho, 95,1% alegavam não confiar em legendas políticas. Passada a hecatombe, cerca de 70% permanecem céticos quanto a políticos e partidos.

Em períodos de crise de representatividade, cresce a sensação de que é preciso que se descumpra a lei pra que a lei seja restabelecida. É o que indica Christian Dunker em Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015). De acordo com o psicanalista, a vida em condomínios, modalidade tipicamente brasileira de se viver a partir dos anos 70, contribuiu significativamente para o agravamento desse panorama. O Brasil que não deu certo, da pobreza que insiste em atravancar o caminho, foi suspenso em nome de outro que é protegido por muros altos e uma guarita com câmeras. E é esse Brasil que passou a pautar o outro a partir da imagem que dele fez: perigoso demais para as regras comuns que o regem.

Batman é isso. É a sensação de que o contrato social que orienta o país é insuficiente pra dar conta da demanda. É o “necessário” descumprimento da lei em nome dos valores que a sustentam.

Mas Ariadne Lima Natal, que é autora da dissertação 30 anos de Linchamento na Região Metropolitana de São Paulo 1980-2009, destaca um elemento importante pra intrigar aqueles que acreditam serem os linchamentos justificáveis diante da saturação da violência no país: “Os dados mostram que as vítimas de linchamento não são aleatórias. Os alvos preferenciais são os mesmos já acometidos pela violência policial e pelos homicídios. Os linchamentos dialogam com seu tempo, eles fazem parte de uma realidade e acionam um repertório que aponta quem são os extermináveis”.

No senso de justiça que move o país contra o crime, quase não são condenados brancos de classe média. O seu lugar está previsto no Código Penal. E é por isso que o último crime de Cleydison foi assaltar. Antes disso, nasceu no lugar errado e com a cor da pele errada. Morreu com 29 anos, 44 antes do que a sua expectativa de vida ao nascer, e dentro da previsão de que teria 3,7 vezes mais chances de ser assassinado ainda enquanto jovem. De um lado, virou troféu. Do outro, estatística.

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