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terça-feira, 22 de abril de 2014

PNE e a “ideologia de gênero”

Mais um motivo apareceu para atrasar a votação do Plano Nacional de Educação (PNE), o qual já deveria estar valendo para o decênio 2011-2020. Um dos projetos de lei mais polêmicos dos últimos anos, o PNE define as metas e as estratégias da educação brasileira para os próximos dez anos, orientando as políticas educacionais em todos os níveis. Primeiramente truncado por conta das disputas em torno dos 10% do PIB (leia aqui), agora é a vez de o gênero entrar nesse balaio de gato. Opositores querem, a todo custo, retirar a assim chamada “ideologia de gênero” dessa lei.

A rigor, o PNE fala pouco sobre gênero. Essa pequena palavra – que abriga um poderoso conceito – consta basicamente em uma frase do projeto de lei. No artigo 2º, voltado para a superação das desigualdades educacionais, há um destaque que acrescenta: “com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”. Pronto. Esta foi a deixa que o fanatismo religioso, personificado em figuras como Marco Feliciano (PSC-SP) e Marcos Rogério (PDT-RO), precisava para atrasar mais uma vez a votação do projeto.


Setores conservadores, mobilizados por políticos fundamentalistas, têm se oposto à votação do PNE em razão de sua menção à “igualdade de gênero”. Nos termos dos obscurantistas, tratar-se-ia de uma “ideologia de gênero”.

Críticas de setores conservadores e fundamentalistas têm denunciado a tal “ideologia de gênero”, defendida pelo PNE quando este assume um compromisso com a “igualdade”. Esses grupos temem pela “destruição da família”, os “valores e morais” alicerçados na “lei natural” e, evidentemente, o avanço das pautas LGBT, dentre as quais a diversidade sexual, a criminalização da homofobia e o progresso em torno da despatologização do segmento trans* – pontos, na verdade, que transcendem a escola.

Aqui, voltamos à velha discussão que já vem sendo encampada neste país há décadas. Como cidadãos e cidadãs, temos a infelicidade de ver no poder uma corja de políticos absolutamente descomprometidos com a igualdade, a tolerância, o respeito à diferença e, pasmem, à própria racionalidade. O obscurantismo tem sido defendido à luz do dia, e as imagens que vemos de jovens empunhando cartazes contra a “ideologia de gênero” e, pior ainda, reforçando a violência que é uma definição única e imposta de mulher, homem, família, moral etc, é de chocar.

Ignora-se que a igualdade de gênero é tão legítima, necessária e importante quanto à igualdade racial ou regional. Trata-se, pois, de discutir a sub-representação política das mulheres, as desigualdades no mercado de trabalho, a assustadora violência nas ruas e domicílios, a objetificação sexual na mídia, entre outras. Acima de tudo, a igualdade de gênero deve ser um valor democrático, tão legítimo quanto à liberdade religiosa que, diga-se passagem, nunca foi posta em xeque por nenhum setor progressista neste país. Até porque os mesmos grupos que defendem a igualdade de gênero são aqueles que apoiam o Estado laico – a instituição mais democrática no tocante à liberdade religiosa em uma nação multicultural.

O deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) tem sido um dos maiores defensores dos avanços sociais nas pautas relativas a gênero e sexualidade.

Nesse sentido, gênero é temido porque, de fato, é um instrumento valoroso. Longe de ser um conceito puramente acadêmico, gênero já se incorporou no jargão popular, nos movimentos sociais e nas políticas públicas. Essa rejeição à ideia de gênero reflete um sintoma de uma ordem social que está se sentindo ameaçada – a título de exemplo, casos similares aconteceram na França (leia aqui). Dessa forma, procuram criminalizar não só os indivíduos ditos “diferentes”, como também seus termos, expressões e conceitos que dão voz a essas “diferenças”. Gênero é um deles, mas não o único.

Como já reiteramos inúmeras vezes neste blog, gênero é um artifício teórico, criado na segunda metade do século passado, para designar as construções sociais sobre o masculino e o feminino. Em pouco tempo, o conceito de gênero foi apropriado pelo movimento feminista e se transformou em uma importante ferramenta analítica e política, com a finalidade de desnaturalizar as opressões de gênero, descontruir verdades absolutas e imutáveis sobre mulheres e homens, derrubar as falsas fronteiras que nos demarcam em estereótipos cruéis para os quais somos levados a acreditar desde pequenos, separando-nos em pequenas caixinhas que limitam nossas individualidades, potencialidades e perspectivas.

Portanto, gênero não é uma ideologia. É, ao contrário, a desconstrução de uma ideologia que imputa à natureza, à biologia e supostamente a características inatas dos indivíduos, a carga pesada e histórica de desigualdades entre homens e mulheres, cis ou trans. Os movimentos sociais continuarão a insistir nesse ponto, até que cada resquício de obscurantismo de cunho fundamentalista seja derrubado e possamos, por fim, aprovar um PNE que reflita não só os interesses de uma educação pública de qualidade, como também de uma sociedade que pretende se livrar de desigualdades, violências e opressões – de gênero ou de qualquer outra origem.

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