Veja o que dizem os dados do IBGE e os especialistas da ONU sobre as desigualdades raciais e de gênero e as ações afirmativas no Brasil.
Por Pedro Jaime*,
Em novembro de 2013, publiquei neste site o artigo “A persistência das desigualdades raciais no mundo empresarial”, no qual analisei os resultados do Boletim Especial “Os Negros no Trabalho”, produzido em 2013 pelo Dieese, pela Fundação Seade e pelo Ministério do Trabalho). O estudo mostra a existência de desequilíbrios entre negros (pretos e pardos, segundo a classificação do IBGE) e brancos no que se refere à força de trabalho ocupada no biênio 2011-2012 no Distrito Federal e nas regiões metropolitanas de seis capitais brasileiras. No final de janeiro último, uma nova pesquisa, esta empreendida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), veio corroborar os resultados da investigação capitaneada pelo Dieese.
Trata-se da Retrospectiva da Pesquisa Mensal de Emprego 2003 a 2013, balanço realizado a partir dos dados das regiões metropolitanas de Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre.
Desigualdades raciais e de gênero no mercado de trabalho: os dados do IBGE
O documento traz análises feitas pelo IBGE a partir da sua Pesquisa Mensal de Emprego, que em março de 2013 completou 11 anos de levantamentos sob uma mesma metodologia, revisada em 2002. O objetivo da Retrospectiva foi revelar, por meio da comparação do ano de 2013 com os anos de 2003 e de 2012, as transformações que aconteceram no mercado de trabalho. Transformações identificadas por meio de diversos indicadores, tais como: população em idade ativa; população ocupada; desocupação; trabalho com carteira assinada; diferenças entre as populações segundo o sexo, a cor ou raça e a faixa etária.
No que se refere às desigualdades raciais e de gênero no mercado de trabalho, a primeira constatação que chama a atenção no documento é que, recortando-se a população desocupada por raça/cor, cerifica-se que de 2003 para 2013 caiu em 55,1% o número de brancos em situação de desocupação, enquanto entre os negros (pretos e pardos) a redução foi de 44,2%. Consequentemente, em 2013, o segmento branco, que representa 51,8% da população em idade ativa, corresponde a 43,6% dos desocupados.
Tomando-se o mesmo intervalo de tempo e desagregando-se os dados sobre a população desocupada por meio do cruzamento entre raça/cor e sexo, o levantamento traz os seguintes resultados: a diminuição do contingente de desocupados foi maior entre os homens brancos (56,1% de redução), seguido das mulheres brancas (54,3% de decréscimo), dos homens pretos ou pardos (47,4% de queda) e por fim das mulheres pretas ou pardas (41,5% de recuo).
Entre os anos de 2012 e 2013 os dados foram diferentes, mas continuam evidenciando a situação de desvantagem dos homens e mulheres negros. Nesse período foi o segmento de mulheres brancas desocupadas que apresentou a maior redução (6,1%), enquanto o de mulheres pretas ou pardas apresentou a menor queda (0,2%). Ademais, no grupo dos homens de cor preta ou parda desocupados houve um acréscimo de 2,3%.
A síntese dos dados é clara quanto à persistência das desigualdades raciais e de gênero no mercado de trabalho brasileiro. “A distribuição da população desocupada, segundo o sexo e a cor ou raça mostrou uma predominância dos homens pretos ou pardos (55,2%) em relação aos homens brancos (43,9%), assim como das mulheres pretas ou pardas (56,0%) em relação às mulheres brancas (43,3%)”, afirma o documento.
E as desigualdades raciais e de gênero não se expressam apenas nos indicadores sobre população desocupada. Elas ficam evidentes também quando se analisa o rendimento médio da população ocupada. De acordo com o documento divulgado pelo IBGE, a média anual do rendimento dos trabalhadores de cor preta ou parda (R$ 1.374,79) continua sendo inferior à dos trabalhadores de cor branca (R$ 2.396,74). Tomando-se como referência o ano de 2013, constatou-se que os negros ganham 57,4% do salário recebido pelos brancos. O estudo mostra, todavia, que em 2003 esta relação era de 48,4%. Ou seja, houve uma alteração desde o início da série da pesquisa, explicada pelo fato de que, de 2003 para 2013, a média anual do rendimento médio mensal dos trabalhadores de cor branca cresceu 27,8%, enquanto, no mesmo período, o acréscimo entre os trabalhadores de cor preta ou parda foi de 51,4%.
A desigualdade também parece dar sinais de redução quando os dados sobre o rendimento médio da população ocupada são cruzados não apenas com a raça/cor dos trabalhadores, mas também com o seu sexo. Nesse caso, constata-se que, se em 2003 as trabalhadoras negras ganhavam, em média, 49,7% da remuneração recebida pelas brancas, em 2013 esse percentual era de 57,8%.
Que fatores explicam essa diminuição das desigualdades raciais e de gênero no mercado de trabalho brasileiro? Algumas pistas para responder a essa indagação podem ser buscadas num documento sobre o nosso país produzido recentemente pelas Nações Unidas.
Ações afirmativas e desigualdades raciais e de gênero no Brasil: a visão da ONU
No final do ano passado o Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Afrodescendentes divulgou um comunicado referente à sua visita oficial ao Brasil, que ocorreu entre os dias 3 e 13 de dezembro de 2013. Nesse comunicado, apresentado numa reunião com a imprensa e disponibilizado no site da ONU no Brasil, o Grupo afirma que as opiniões ali expressas são de natureza preliminar e informa que as conclusões e recomendações serão plenamente desenvolvidas por ocasião da entrega do relatório final ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Esclarece também que teve a oportunidade de se reunir com funcionários dos governos federal, estaduais e municipais e interagir com a sociedade civil, incluindo comunidades negras, em Brasília, Pernambuco, Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro. Aqui caberia lançar a seguinte indagação: acaso as lideranças empresariais tomaram parte desse importante diálogo? Deixemos em aberto essa interrogação e passemos aos resultados preliminares apresentados pelos especialistas da ONU.
O comunicado começa ressaltando que nos últimos dez anos (o mesmo período contemplado pela pesquisa do IBGE!), o Brasil mostrou vontade política para superar o racismo que subordina os afro-brasileiros. Aponta que o país desenvolveu um conjunto de iniciativas e políticas públicas de promoção da igualdade racial, cuja face mais visível refere-se às ações afirmativas.
Nessa direção cita a importância da entrada em vigor, em 2003, da Lei 10.639, que legisla sobre a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura da África e dos afro-brasileiros nas escolas; do Decreto nº. 4887, também de 2003, e decretos posteriores, que reconhecem e definem os títulos de propriedade das comunidades quilombolas; da aprovação, em 2010, do Estatuto da Igualdade Racial; e da decisão, em 2012, pelo Supremo Tribunal Federal quanto à constitucionalidade das cotas raciais para acesso ao ensino superior. Sinaliza ainda para as discussões em curso no Congresso sobre as cotas para negros nos cargos públicos. Todas elas, afirma o documento, são medidas para corrigir as desigualdades históricas que têm impedido os afro-brasileiros de ocupar determinados espaços na sociedade.
Os especialistas da ONU reconhecem a magnitude do desafio do Estado brasileiro para superar o legado do colonialismo e da escravidão. “As injustiças históricas continuam afetando profundamente a vida de milhões de afro-brasileiros e estão presentes em todos os níveis da sociedade brasileira”, aponta o documento. Isso porque, prossegue o texto, “apesar do compromisso do governo, do quadro jurídico abrangente e da ampla gama de políticas públicas, o avanço no desmantelamento da discriminação racial ainda é lento”, uma vez que “as leis e políticas ainda não são suficientemente eficazes para promover uma mudança substantiva na vida dos afro-brasileiros”. Estes, embora constituam mais da metade da população brasileira, “são sub-representados e invisíveis na maioria das estruturas de poder, nos meios de comunicação e no setor privado”. Tal situação, conforme assinalado no documento, “tem origem na discriminação estrutural, que se baseia em mecanismos históricos de exclusão e estereótipos negativos, reforçados pela pobreza, marginalização política, econômica, social e cultural”.
Como agravante os especialistas afirmam ter constatado que alguns setores da sociedade acreditam que o Brasil é uma democracia racial. Sem meias palavras o documento assevera que embora o Brasil tenha avançado na redução da pobreza e das taxas de desigualdade, processo do qual os afro-brasileiros se beneficiaram, ainda há uma grande disparidade entre a precária situação do segmento negro e o crescimento econômico experimentado pelo país nos últimos anos.
O texto trata ainda das preocupações dos especialistas da ONU quanto às expressões do racismo, que passam pela repartição dos gastos públicos segundo a cor/raça; pelo acesso diferencial de negros e brancos à infraestrutura básica, habitação, educação e saúde; pelos indicadores socioeconômicos e pelo ingresso subordinado de pretos e pardos nos empregos dos setores público e privado; pela elevada proporção de mulheres afro-brasileiras que trabalham em condições precárias, principalmente no serviço doméstico; pelo baixo nível de participação dos negros na administração pública e de sua representação na vida política; pelos estereótipos e preconceitos raciais difundidos nos meios de comunicação de massa; pela intolerância com as religiões de matriz africana, especialmente o candomblé e a umbanda; e pela presença excessiva de negros na população carcerária e seu acesso desigual à justiça.
Enfim, os especialistas concluem o documento parabenizando o governo brasileiro pelos progressos feitos desde 2003 e alertando que o combate ao racismo deve engajar toda a sociedade brasileira. Argumentam que “a sensibilização, o diálogo intercultural e a educação são essenciais para desconstruir a ideia de hierarquia racial”, mas ressaltam que “ações concretas e implementações efetivas de leis e políticas públicas para a igualdade racial são essenciais para fazer uma mudança real e impactar positivamente os afro-brasileiros” E destacam: “o fim da desigualdade racial, do racismo, da discriminação, da xenofobia e das intolerâncias correlatas beneficiará não só os negros brasileiros, mas também o conjunto da população do Brasil”, uma vez que “reforçará a democracia, a primazia do direito e o desenvolvimento social e econômico”.
Penso que existe uma relação entre o comunicado feito em dezembro último pelo Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Afrodescendentesreferente à sua visita oficial ao Brasil e a divulgação pelo IBGE em janeiro da Retrospectiva da Pesquisa Mensal de Emprego 2003 a 2013. Talvez ainda seja cedo para afirmar que as políticas de ação afirmativa implementadas pelo governo nos últimos dez anos já tiveram consequências na redução das desigualdades raciais e de gênero no mercado de trabalho brasileiro, mas pode-se sugerir que o cenário é favorável para que essa redução ocorra.
Parece então haver uma ponta de esperança para aqueles que se engajam na luta antirracista no Brasil. Mas ela não autoriza um otimismo ingênuo, uma vez que tanto os resultados da pesquisa do IBGE quanto as considerações preliminares apresentadas no comunicado dos especialistas da ONU são inequívocos. Eles chamam a atenção para as gritantes desigualdades de gênero e de raça ainda persistentes na sociedade brasileira. Desigualdades que não serão superadas facilmente, sobretudo porque, como sinaliza o documento das Nações Unidas, embora o mito da democracia racial brasileira tenha sido superado no debate acadêmico (desde o clássico A Integração do Negro na Sociedade de Classes, de Florestan Fernandes) e no aparelho de Estado (desde que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso reconheceu publicamente a existência do racismo no Brasil e criou um grupo de trabalho interministerial para estudar as possibilidades de adoção de políticas de ação afirmativa no país), ainda existem setores da sociedade brasileira que nele acreditam, ou que a ele se agarram para defender seus privilégios.
Lamentavelmente, não é à toa que há pessoas no Brasil que consideram a política de ação afirmativa como coisa de preto preguiçoso que não quer se esforçar ou de governo populista em busca de votos, e não uma medida incontornável para a construção de uma sociedade mais justa.
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* Doutor em antropologia e em sociologia, Pedro Jaime de Coelho Jr. é professor da ESPM-SP e pesquisador de temas relacionados à questão racial, gênero e diversidade no mundo empresarial.
Fonte: Ethos
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