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segunda-feira, 7 de abril de 2014

Enfrentamento ao racismo em espaços de acolhimento


Crianças e adolescentes cujos direitos foram ameaçados ou violados por ação, omissão da sociedade ou por abuso de seus pais, mães ou responsáveis, são alcançadas pelas medidas de proteção estabelecidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Elas variam de acordo com cada situação vivenciada e podem ser substituídas, dentre essas medidas nos debruçaremos sobre o acolhimento institucional.

De acordo com o parágrafo único do artigo 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o acolhimento institucional é uma medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para reintegração familiar ou, não sendo esta possível, para colocação em família substituta; não se constituindo como espaço de privação de liberdade. A aplicação dessa medida se faz a partir do afastamento da criança/adolescente do convívio cotidiano com a família. No entanto, de acordo com o artigo 100, deve observar as necessidades pedagógicas, privilegiando-se o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.

Os programas de acolhimento institucional lidam em seu cotidiano com um duplo desafio: proteger crianças e adolescentes durante o período de afastamento do convívio com sua família de origem e ao mesmo tempo desenvolver ações que possam dar conta do desafio de promover o fortalecimento de famílias fragilizadas e a reconstrução dos vínculos. Destaca-se aqui a importância desse aspecto: reconhece-se a família enquanto elo a ser fortalecido, alcançado pelas políticas públicas e devolvidas à sua condição de cuidadora.

Na busca pelo reconhecimento da condição de sujeito de direitos e rompendo com a revitimização de crianças e adolescentes, as entidades de acolhimento institucional devem buscar construir propostas sócio-pedagógicas centradas no interesse do bem estar das mesmas. A proibição da utilização da pobreza como motivo para afastamento de crianças e adolescentes do seio de sua família de origem é explícita no Estatuto da Criança e do Adolescente. No entanto, uma pesquisa realizada pelo IPEA/CONANDA [1] nos ajuda a pensar que no Brasil os programas de acolhimento são o ponto maior da visibilização da pobreza e discriminação social. Do total de crianças abrigadas, 24,2% tem como motivo de ingresso no abrigo a pobreza das famílias de origem e hoje é amplamente discutido pelos movimentos de proteçao a infância que sob o nome de negligência tem-se afastado crianças de suas famílias num explícito processo de criminalização da pobreza.

Comparando essa informação com os dados do PNAD de 2010, a população negra representa 70% de pobres e 71% de indigentes. Assim, nos Programas de Acolhimento é considerável o contingente de crianças afrodescendente acolhidas. Essa lógica é confirmada pelo relatório do IPEA/CONANDA que aponta como as crianças e adolescentes afrodescendentes como maioria (63%) entre aquelas que vivem nos abrigos pois não é possível dissociar que as condições de sub-vida, sub-emprego privações e alijameno causadas pelo desemprego e distanciamento das políticas públicas atingem prioritariamente este grupo.

O cotidiano das relações estabelecidas em Programas de Acolhimento Institucional aponta que embora institucionalmente invisibilizada, a violência que é relacionada a práticas discriminatórias resultantes das pré-concepções quanto a raça se mostram evidentes. Fato comprovado, a preponderância da população afrodescendente nos abrigos não institui uma relação de equidade dentro desse espaço, longe disso, reproduz a lógica de discriminações de uma cultura hegemônica, machista, sexista, branca, adultocêntrica, vivenciada nas relações sociais.

O racismo é realizado por formas complexas, na maior parte das vezes não sendo admitido conscientemente pelas figuras que o exercem, sendo comum a negação de qualquer forma de discriminação. Lançar um olhar para os programas de acolhimento institucionais, e especificamente para o acolhimento de crianças e adolescentes afrodescendentes é buscar identificar as múltiplas violências vivenciadas por esses grupos para enfrentá-las e erradicá-las.

É característica nos abrigos a presença de grupos grandes de irmãos biológicos. Muitas vezes há formação de grupos interraciais de irmãos, nos quais a condição de violência vivenciada por aqueles/as que apresentam fenótipos negros mais marcantes é visivelmente superior a dos/das demais, sendo inclusive discriminados/as pelos irmãos e irmãs. O uso de expressões como “essa macaquinha não é minha irmã”, “Deus me livre ser irmã dessa cabelo de bombril” “a culpa é desse nego safado”, “minha mãe não gostava desse neguinho” dentre outras.

Os grupos de irmãos mesmo quando todos/as negros/as são vítimas dessa mesma violência que afeta seus ideais. Há uma constância da discriminação desses meninos e meninas em espaços públicos e privados que termina por fazer aparecer um sentimento de medo e inferioridade que as/os prejudicam todos os aspectos de sua vida.

As práticas de cuidado na sociedade brasielira pautam-se por uma perspectiva e ideais eurocêntricos pois desde a compreensão do qu é belo até a mobilização de esforços para alcançar essa beleza, sendo assim a desconsideração aos fenótipos negros, a invisibilização da cultura de matriz africana e a negação de outras experiências de religiosidade são aspectos comuns nos espaços que pautam a relação do cuidado. Quantas crianças negras que vivem em espaços de acolhimento ainda não têm seus cabelos cortados curtinhos e meninos de cabeça raspada, meninas de cabelos alisados para que estejam mais bonitos?

Insegurança, agressividade, angústia e autodesvalorização são algumas características de crianças/adolescentes acolhidas/os; quando prolongado, o acolhimento ainda acarreta perdas para o desenvolvimento psicossocial da criança, principalmente na sua capacidade de construir vínculos positivos com outras pessoas.

O estabelecimento dos vínculos, no entendimento de Winnicott (1993) é essencial para o desenvolvimento adequado da personalidade. Segundo o mesmo, por carência de estimulação, de vínculos afetivos e de atenção emocional, a crianças de abrigos podem ter deficiências cognitivas, deficiência de integração sensorial, dificuldade em processar a linguagem no ritmo que é falada e consequentemente, prejuízo no processo de aprendizado.

Uma relação baseada em práticas discriminatórias, na intolerância a diversidade étnica, na continuidade de divulgação de rótulos discriminatórios, expõe as crianças e adolescentes a um permanente conflito entre assumir e negar sua identidade, o que dificulta ainda mais a possibilidade de superação das violências de que foram vítimas.

As formas de relação geralmente se baseiam na depreciação moral e estética que naturaliza a violência e institui uma cultura de subserviência e não-reação que aponta mais uma vez a herança recebida: os símbolos de inferioridade e o lugar do não-direito…

Diante do ideal de beleza branca, as crianças e adolescentes são levadas a autonegação, a permanência das crianças negras nos abrigos, está relacionada a preferência explícita das famílias adotantes por crianças de cor branca, institui-se assim a negação de sua identidade racial, a fim de se aproximar desse ideal de beleza e aceitação, negar/disfarçar sua negritude é ter uma chance na busca por padrinhos e quem sabe novos pais.

Levando em consideração o exposto, percebe-se a complexidade do trabalho desenvolvido o que requer atenção especial ao grupo de trabalhadoras e trabalhadores ali atuantes, a qual deve se iniciar em seu processo seletivo, mas que não se esgote em sua contratação pois é de extrema importância que seja oferecido um trabalho de formação continuada que lhes permita a instrumentalização para o exercício da função e que favoreça o seu fortalecimento pessoal face a realidade de sua vivência.

Um dos principais aspectos a serem promovidos na na formação dessas equipes é o desenvolvimento de uma postura que as distancie da forma preconceituosa de enxergar o/a outro/a, classificando-o/a a partir de suas perdas, do que lhe foi negado. Na convivência com crianças e jovens que tiveram seus direitos violados em um dado momento, deve buscar respeitar os indivíduos por sua condição de detentor de direitos, de possuidor de saberes, num fazer que rompa com pensamento ou ação preconceituosa, que venha ratificar a condição de injustiça de que forma vítimas, compreendendo qualquer discriminação como sendo algo imoral e compreendendo que a luta conta essa visão não é uma opção é um dever (FREIRE, 1996).

Na prática dos programas de acolhimento é necessária a construção de um espaço de encontro que se constitua em espaço de escuta, fala e reflexão, que seja vivo e pulsante, que proporcione o encontro entre indivíduos, saberes, práticas. Um espaço que se constitua enquanto locus de (re)visita da prática, possibilitando uma maior compreensão de hábitos, valores, formas de ver, de sentir e fazer.

Um espaço de formação que busque romper com vivências, práticas, culturas discriminatórias é antes de tudo proporcionar um espaço-tempo para reconstruir , rever e re-significar os sentidos para sua atuação.

O processo de formação anti-racista tem como principal interesse o alcance de uma mudança no pensamento-ação das/os profissionais e a consequente desnaturalização das desigualdades entre negros/as e brancos/as partindo de uma reflexão/discussão sobre essa sociedade que permite a depreciação a coisificação da imagem e do papel das pessoas.

No processo de formação profissional traz-se a vista todas as discriminações e desigualdades que geralmente estão sob o manto da invisibilidade do racismo e nesse movimento de defrontar-se e confrontar-se, buscamos construir e apontar juntas os caminhos que ampliem a cidadania dessas crianças e jovens sob cuidados que se encontram permanentemente alijadas de seus direitos. Desenvolver e vivenciar uma formação anti-racista nesse contexto, exige antes de tudo a disponibilidade e sensibilidade de cada profissional, isto porque:

1- estamos tratando de temas que dizem respeito também as suas próprias histórias, vivências, entender a dor do/a outro/a é mexer em sua própria dor, “dificuldades pessoais, por exemplo a auto-identificação, identificar-se publicamente como negra, identificar situações de racismo e de discriminação em si e nas demais, para, a partir daí implementar mudanças comportamentais adquiridas”(BEZERRA, 2005:45.)

2- em muitos momentos o grupo pode ser levado a inconscientemente boicotar a formação e manter inalteradaa dinâmica das relações por considerar aumento da carga de trabalho a necessidade de considerar as dimensões trazidas pela discussão anti-racista,acreditam ser um trabalho a mais… e não enxergam que programa de acolhimento é o local para o desenvolvimento dessa discussão e abordagem.

Deve ser desenvolvido um processo que busque possibilite a percepção da “necessidade da observância do aspecto raça/cor, buscando reconhecer as especificidades de identidade , religiosidade, reconhecimento do lugar do negro no processo histórico de formação da sociedade” (LAGES, 2007:67) e principalmente levar o grupo profissional a percepção de que quando não se busca identificar atitudes preconceituosas e discriminatórias, contribui-se para a reprodução de práticas que possibilitam a perpetuação do racismo.

Na relação com as crianças e adolescentes sob seus cuidados no programa de acolhimento as profissionais devem ser conclamadas a se perceberem enquanto atuantes num processo de construção de sujeitos sociais, afetivo e de direitos, dessa maneira sua prática é constituída de dimensões política, pedagógica e ontológica. Busca-se leva-las a perceber que há uma relação muito próxima entre o período de escravidão e o processo de exclusão vivenciado pela população negra e afrodescendente, o que as leva a perceber que as conhecidas brincadeiras depreciativas constituem-se como parte de um coletivo de ações que reforçam a baixa auto-estima dessa população, enfraquece sua autonomia e violam os direitos constituídos, visto que agridem subjetivamente e humilha os/as atingidos/as, reeditando uma história de sofrimento e medo, e na presença de medo e sofrimento é impossível haver liberdade.

Nesse contínuo de ações e reflexões as/os profissionais sociais são convidadas a um trabalho de reelaboração “elaborar outras imagens de negros e negras, outras identidades que recoloquem a dimensão o que são e que confrontem e recusem os estigmas” (WERNECK 2006). Busca-se leva-las a abrir os olhos para ver as diferentes forças de estética, beleza, da cultura afrobrasileira, ancoradas na tradição e na vivência corporal, transmissão oral de preceitos que oferecem modelos para a produção de identidades da população negra que contrariam estereótipos (Werneck2006).

Acredito que as profissionais atuantes em acolhimento institucional, devam ser sensibilizadas para o fato de ser esse um processo de revisita que exige paciência e novas aprendizagens teóricas, pois além de olhar para si mesmas/os e para as outras/os de uma nova maneira, também têm de olhar a história de uma nova maneira e a apropriação desses novos olhares lhes possibilitará uma nova maneira de pensar e agir diante de questão até então invisíveis. O chamado é para se revisitar. De indignar-se, de provocar. Buscar rever linguagens, comportamentos, ter ousadia para intervir, assumir posição, mas sobretudo exercer a vigilância, compreendendo que racismo antes de tudo é uma prática criminosa, e portanto somos impelidas a buscar cada vez mais acesso a conhecimento sobre a sleis que protegem o direito da população negra a uma vida livre de racismo e em especial as crianças e adolescentes em medida de proteção que ainda permanecem invisibilizadas na dinâmica da sociedade.

Sendo assim, reitera-se a necessidade de oferecer cada vez mais subsídios para que as mesmas possam intervir nas situações que evidenciam o racismo nas relações, e contribuir para um atendimento que traga em seu bojo a compreensão de que o respeito a diversidade étnico-racial é estruturante não apenas para a cidadania mas condição sine qua non para a reconstrução da história dessas crianças e adolescentes.Acompanhe nossas atividades, participe de nossas discussões e escreva com a gente.

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Negra, mulher, nordestina, pedagoga, mãe de João Marcos.

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