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quarta-feira, 9 de abril de 2014

O movimento negro chapa-branca, as reuniões com Dilma e a arte do “enrolation”

A reunião da Presidente Dilma Rousseff com o movimento negro realizada em Palácio no dia 16 de Março, sob o pretexto da Presidente de desagravar os atletas Tinga e Arouca, respectivamente do Cruzeiro e do Santos, e o árbitro gaúcho Márcio Chagas, vítimas do recrudescimento do racismo nos estádios pelo Brasil, foi mais do que uma peça de marketing orientada por João Santana, o marqueteiro oficial do Palácio, uma espécie de ministro sem pasta, consultado para tudo – da roupa ao tom da fala que Dilma deve usar nos seus pronunciamentos.

A reunião expôs, com toda nitidez, um tipo de movimento negro que não honra nem a memória de Zumbi e João Cândido, nem muito menos os milhares de heróis anônimos que continuam sendo alvos do racismo e da matança generalizada que se pratica contra negros ainda hoje em pleno Estado Democrático de Direito, exposta ano após ano pelas seguidas edições do Mapa da Violência. Trata-se de um movimento chapa-branca, que se pauta pela lógica partidária e se move silencioso nos “puxadinhos”, os espaços restritos que lhe são reservados nos Governos.

Pior ainda: além de abdicarem de qualquer autonomia - o que para qualquer movimento social digno desse nome equivale a um atestado de óbito - seus representantes não se constrangem em fazer o papel de pano de fundo, sem voz, nem expressão. E de qualquer evento, inclusive desta reunião que não teve outra finalidade senão o puro marketing do Governo para a Copa do Mundo, sob pressão explícita da FIFA, que desde as manifestações de junho tem adotado uma postura no mínimo cautelosa em relação ao sucesso da milionária empreitada.

Não se trata aqui de engrossar o “blackbloquismo” delirante com a sua não menos delirante palavra de ordem “não vai ter copa”, expressão do seu voluntarismo tresloucado que tem se encarregado de expulsar o povo das ruas, no que presta inestimáveis serviços aos Governos, não importa de que esfera, ou de que partidos.

Há no Brasil, sim, uma crise de representação das instituições, um descolamento óbvio entre representantes e representados e isso é uma ameaça evidente à democracia (pelo menos ao modelo de democracia representativa, que vem sendo questionada em escala mundial), na medida em que os ocupantes dos Governos se fazem surdos e quando falam não é para oferecer saídas ou espaços de diálogo: o fazem por meio dos seus marqueteiros bancados por milionários contratos, que definitivamente substituíram a ação política por gestos de simbolismo gasto e escolhem interlocutores apenas para o beija-mão e a reverência obsequiosa. Como aconteceu na reunião de Dilma na quinta-feira.

Chama a atenção, além do vazio de lideranças, a desfaçatez com que os ocupantes de cargos se apresentam como porta-vozes desse movimento negro chapa-branca, no que não foram até aqui desmentidos.

A arte de falar sem dizer

A ministra Luiza Bairros, da SEPPIR (Secretaria que virou uma espécie de "departamento oficial de negros", um "gueto" na Esplanada, sem expressão nem representatividade), pela segunda vez, se encarregou de assumir o papel de porta-voz. Disse, sua excelência, oriunda do ambiente acadêmico e das agências internacionais, e que se especializou na arte de falar por horas, sem nada dizer. “A grande contribuição que o movimento negro trouxe para essa discussão é que a questão principal não é o racismo na Copa do Mundo. Que a questão principal é o racismo que existe nas sociedades, e, portanto, se manifesta no futebol. E todas as propostas apresentadas hoje para a presidenta Dilma apontaram nessa direção. De todo modo, o governo está empenhado numa campanha que será feita da Copa contra o racismo”.


Alguém saberia traduzir o que Bairros quis dizer, em que língua falou? A que “sociedades” (assim mesmo no plural) se refere a ministra? Estamos ou não – com todo o respeito à sua excelência - diante mais um exercício de “enrolation”?

Por outro lado, as tais reuniões planaltinas acontecem à custa de passagens e estadias bancadas pelo erário (vale dizer, por nós todos) e são cercadas de um sigilo, de cuidados - nem mesmo nós, os “representados”, ficamos sabendo quem vai e por que vai, muito menos o que vai dizer e em nome de quem.

Foi o caso desta. Na madrugada da véspera ainda havia convidados que tinham o cuidado de implorar a interlocutores que não revelassem o que seria, nem o que fariam em Brasília, como se fosse possível a alguém fazer reunião com a Presidente da República, em plena luz do dia (e em plena quinta-feira) com caráter secreto! É como se tivéssemos retornado à clandestinidade para tais toscos representantes.

Desta vez, entre eles, estavam figuras como o professor Hélio Santos, amigo pessoal do ex-governador paulista José Serra, e do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e Douglas Belchior, candidato do PSOL em Poá nas últimas eleições municipais, e chefe da Uneafro Brasil, entidade dissidente da Rede Educafro do Frei David Raimundo dos Santos, além do próprio, claro, presença obrigatória em tais eventos palacianos, aos quais invariavelmente comparece de batina. De certo para dar um tom mais ecumênico e pluripartidário ao evento, supõe-se.

Ação marqueteira

Como a ideia não era ouvir movimento algum, mas usá-lo apenas como pano de fundo para a ação marqueteira, nada se discutiu e até as cenas e fotos desta vez foram escassas – até para a mídia oficial chapa-branca como a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC). 

Nem tampouco houve qualquer registro em sites de entidades ligadas aos personagens, nem mesmo na SEPPIR, onde pela manhã os participantes foram reunidos para receber instruções.

Pelo que se sabe, do que foi veiculado, o "grande debate" foi posto por Arildo Ventura, do Movimento Quilombola, que, diante da proposta do Planalto para tema da campanha “Pela Paz e contra o racismo”, objetou com a sua "contribuição": “Por que não contra o racismo e pela paz?”.

“A gente vem sofrendo racismo há mais de 300 anos, no Brasil, e às vezes as pessoas fingem que ele não existe. Essa é uma oportunidade para que as pessoas de todo o mundo vejam que o racismo realmente existe”, acrescenta o esforçado Ventura, como se quisesse provar para si mesmo a "verdade transcendental" que, por certo, acabou de descobrir respirando os ares de Brasília.


Com esse grau de “profundidade” nas discussões citadas pela ministra como "contribuição do movimento negro", não se poderia esperar outra coisa senão o que se viu: gestos vazios e fotos que poderão ter alguma utilidade na campanha eleitoral que se aproxima. E só.

Também chama a atenção que depois de dias da reunião com Dilma, os seus participantes se comportem como se tivessem feito um pacto de silêncio, porque ninguém se dispõe a falar. Belchior, por exemplo, consultado por estaAfropress não se dignou a responder a um pedido de entrevista. Julião Vieira, do PC do B, e outros de menor expressão fizeram pelo Blog do Planalto manifestações que, de tão toscas, chegam a ser patéticas porque nada explicam, nada justificam, nada esclarecem, a não ser repetir os chavões e frases feitas.

A quem representam?

Diante dessa postura recorrente desse movimento negro chapa-branca, é o caso de se perguntar: a quem representam tais "representantes", quem delegou a eles mandato, quem lhes passou procuração para falar em nome da maioria da população brasileira, que é preta e parda, vale dizer, negra?

Por que ainda teimam em ignorar e debochar da maioria que não tem assento nem convite nos Palácios? Ninguém tem nada a ver com o papel que alguns se prestam – e que, aliás, historicamente alguns dos nossos sempre se prestaram: o de capitães do mato sem patente. Mas, pelo menos, da próxima vez, não tentem se esconder, se apresentem, digam o que foram fazer e quem os chamou e qual a finalidade dessas reuniões de onde entram mudos e saem falando pela voz do blog oficial do Planalto.

Se apreciarem os ares dos Palácios, pelo menos digam que não falam em nosso nome – o movimento da maioria negra (50,7%, segundo o Censo do IBGE 2010) que existe desde que o primeiro negro chegou por aqui escravizado, mas que não se confunde com personagens criados para fazerem o papel de bonecos de ventríloquos.

Mesmo porque ninguém passou a tais personagens procuração, nem delegou aos mesmos mandatos. Ao menos tenham o pudor de dizer que não nos representam, mas sim, aos seus interesses próprios e aos partidos aos quais servem.

E não nos constranjam com o papel que aceitam representar a troco de meia dúzia de holofotes que nem chega a lhes garantir os 15 minutos de fama a que cada um tem direito – segundo Andy Warhol, a figura maior do movimento Pop Art – nessa sociedade espetáculo em que vivemos todos.

Confiram as manifestações dos "representantes" ao final da reunião e notem a preocupação de alinhamento com o discurso oficial sobre a Copa. Assista:


Fonte: Afropress

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