Páginas

terça-feira, 8 de abril de 2014

A Essência da inocência: Consequências da Desumanização de crianças negras

por Marcelino Conti,
"A questão mais importante no mundo é :" Por que as crianças estão chorando? "

Essa semana uma nova pesquisa foi publicada pela American Psychological Association, visando descobrir até que ponto as crianças afroamericanas eram susceptíveis de ser tratados de forma diferente do que seus pares brancos unicamente com base na raça. O estudo realizado pelos pesquisadores de quatro grandes centros de pesquisa, liderados por Phillip Atiba Goff e Matthew Christian Jackson, ambos professores da The University of California-UCLA, tem ainda como pesquisadores Brooke Allison Lewis Di Leone do National Center for Post-Traumatic Stress Disorder, Boston, Massachusetts, Carmen Marie Culotta, pertencente a The Pennsylvania State University e Natalie Ann DiTomasso, vinculada a The University of Pennsylvania.

O estudo concluiu que a policia vê as crianças negras como mais velhas e menos inocentes do que as crianças brancas. Além de procurar examinar a extensão em que existe o preconceito racial e como sãos significativas as suas consequências, as pesquisas tinham objetivo de entender até que ponto as crianças negras são desumanizadas .

"As crianças na maioria das sociedades são consideradas um grupo distinto, com características como a inocência e a necessidade de protecção. A presente pesquisa analisou se aos meninos negros são dadas as proteções da infância no mesmo grau que a seus pares. Nós descobrimos que os meninos negros podem ser vistos como responsáveis ​​por suas ações em uma idade em que os meninos brancos ainda se beneficiam do pressuposto de que as crianças são essencialmente inocente", revela o autor Phillip Atiba Goff , da UCLA.

Foram testadas três hipóteses: a) que os meninos negros são vistos como menos "infantis" do que seus pares brancos; b) que as características associadas com a infância serão aplicadas menos quando se pensa específicamente sobre meninos negros em relação aos meninos brancos; e c ) que estas tendências seriam agravadas em contextos em que os homens negros são desumanizados, associando-os (implicitamente ) com macacos. Os pesquisadores esperavam, como derivação dessas três hipóteses principais, que as pessoas perceberiam meninos negros como sendo mais responsáveis ​​por suas ações e como sendo alvos mais adequados para a violência policial.

Os pesquisadores encontraram evidências convergentes que os meninos negros são vistos como mais velhos e menos inocentes e que solicitam uma concepção menos essencial da infância do que os seus pares brancos da mesma idade. Além disso, os resultados demonstraram que a associação preto/macaco prenunciava as disparidades raciais reais em violência policial em relação às crianças. Estes dados representam a primeira correspondência de atitude/comportamento de seu tipo em um contexto de policiamento.

Analisando os dados, a pesquisa mostra que os casos envolvendo as crianças negras apresentaram o dobro de uso de força pelos policias dos que as crianças brancas e latinas. Esses dados segundo os pesquisadores demonstram uma "desumanização implícita dos negros", além de, ser “um preditor significativo de disparidades raciais no uso da força contra as crianças".

A correlação entre a desumanização e uso da força, pela policia, se torna mais significativa quando se considera que os meninos negros são rotineiramente estimados como mais velhos do que realmente são. "A evidência mostra que as percepções sobre a natureza essencial das crianças podem ser afetadas por raça, e para as crianças negras isso pode significar que eles perdem a proteção conferida pela inocência da infância bem antes de se tornarem adultos", disse o prof. Matthew Jackson, PhD , também da UCLA.

Como a superestimativa média de idade para os meninos negros chegou a quatro anos e meio, em alguns casos, as crianças negras podem ser vistas como adultos e tratadas como tal quando eles têm apenas 13 anos de idade. Em contrapartida para o jovem branco, de classe média, o período de tempo em que não são considerados plenamente responsáveis ​​por seus atos pode se estender até os seus 20 anos.

Aqui no Brasil, apresentar as conclusões desta pesquisa americana “é chover no molhado”, posto que não é uma novidade pra ninguém. Se formos contar pra alguém que uma pessoa negra é vista pela policia como estereótipo de bandido, ou que uma criança negra sofre violência ao ser abordada pela policia, ou que ao ser julgado, um negro receberá sentença mais dura do que um reú branco.


A desumanização de nossas crianças é sentida na pele, elas sabem o que é levar um tapa na cara, vivem preparadas para receber uma "dura” e serem “esculachadas” pela policia. Também em nossas universidades esse estudo não é uma novidade. Várias de nossas pesquisas apontam que o racismo institucional orienta as decisões das Policias, Defensorias Públicas, Ministério Público e da Justiça (ver http://www.afropress.com/post.asp?id=16150).

Citando alguns:

Estudos do IPEA apontaram que de cada três presidiários, dois são pretos e pardos; nove a cada 10 presos sem julgamento são negros; sete a cada dez prisões em flagrante, são relativas a prisões de negros e desses apenas dois conseguem o benefício de responder ao processo em liberdade. 

Num outro estudo, um major negro da PM de São Paulo ao estudar a sua corporação concluiu que “o Racismo nas abordagens é marca da PM de São Paulo“. Neste estudo, “A Relação da Polícia Militar Paulista com a Comunidade Negra e o Respeito à Dignidade Humana: a Questão da Abordagem Policial”, Airton Edno Ribeiro aponta que o racismo está entranhado na cultura organizacional da corporação, ele ouviu 50 praças que admitiram que o preconceito e o racismo orientavam as suas ações.

No início de 2013, as conclusões desta pesquisa foram confirmadas. Os jornais divulgaram um documento interno da Polícia Militar de Campinas que orientava expressamente os policiais a abordarem “indivíduos em atitude suspeita, em especial de cor negra e parda”. A “ordem de serviço” apenas confirmou algo que é conhecido de todo o mundo, em especial, da própria população negra: o racismo da Polícia

E agora, mais recetemente, outra pesquisa coordenada pela professora Jacqueline Sinhoretto, do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos (GEVAC), do Departamento de Sociologia da UFSCar. Analisando os dados obtidos em entrevistas com policiais, observação das abordagens e análise de dados estatísticos concluiu que os policiais matam e prendem mais pessoas negras do que brancas.

O estudo americano não dá conta de todas as nossas questões, temos as nossas singulares idiossincrasias, além do racismo mais sofisticado do mundo, manifestado no andamento do genocidio da juventude: 53 mil pessoas são assassinadas por ano no Brasil. Destes, a grande maioria é de jovens negros entre 15 e 29 anos, moradores de favelas. Incriminados por sua cor, estigmatizados por seus locais de origem.

Os estudos, americano e brasileiros, no entanto, são só estudo. Eles podem nos servir de guia, apontando algumas reflexões que deveremos fazer: o tratamento diferenciado racial das crianças é uma importante área ainda pouco explorado dentro das ciências humanas. Que, como afirmam os pesquisadores, os achados sugerem a urgência de campo e trabalho de laboratório necessários para preencher esta lacuna de pesquisa. Além disso, eles sugerem que esta grande questão foi proposta pela escritora de ‘A cor purpura’, Alice Walker, ao afirmar que "A questão mais importante no mundo é :" Por que as crianças estão chorando?". Então, para crianças negras, a resposta mais importante pode ser que eles choram, porque não lhes são permitidos a plenitude de ser criança.

Para saber mais leia o estudo: The Essence of Innocence: Consequences of Dehumanizing Black Children neste link http://www.apa.org/pubs/journals/releases/psp-a0035663.pdfvv

Crédito: a charge é do cartunista Latuff, que autorizou ao autor a postagem para ilustrar o artigo.

__________________________________________________________________
Marcelino Conti

É sociólogo, pesquisador do INCT/INEAC – UFF.


Fonte: Afropress

Nenhum comentário:

Postar um comentário