Melhora social, Manifestações e Democracia
“Bem agora que o Brasil começa a melhorar um pouco, vem estes grupos com idéias estranhas criar confusão na rua. A gente não quer que as coisas vão por água abaixo”. Esta linha de pensamento, compreensível e legítima, está na boca de muitas mães, pais e jovens trabalhadores deste país. As imagens de protestos, editadas pelas grandes emissoras de televisão para confundir e assustar, cumprem bem sua tarefa e deixam a população confusa e assustada. A apreensão neste momento não é apenas sobre ser contra ou a favor da Copa, gritar que vai ou não vai ter, mas é sobre a estabilidade política do Brasil. Neste momento em que o Brasil parece se aproximar do sonho da classe média própria, estes protestos não colocariam tudo a perder?
Talvez seja possível responder a esta questão com uma pequena mudança de palavra. Não: “existem manifestaçõesapesar da melhora social”, e sim: “existem manifestações porque há melhora social”. O protesto é efeito da melhora social. O miserável, aquele que se preocupa cotidianamente com alimentação e moradia, raramente tem tempo para compreender as agentes responsáveis por sua situação e disposição para se colocar contra eles. Quando há, no entanto, um pequeno respiro nesta situação dramática – como a recente microascenção social das classes miseráveis no Brasil, devido aos programas sociais do governo petista na última década -, surge a possibilidade de tomada de consciência e insurreição. O trabalhador que lutava pela subsistência passou a ter tempo para pensar.
A história do Brasil não traz muitos exemplos de vida democrática. Depois de quase quatro séculos de escravidão, passamos por ditaduras militares e regimes democráticos com pouca ou nenhuma representatividade popular. Não tivemos muitas oportunidades de aprender que manifestações, passeatas, protestos e gritos de ordem não são sinais de crise democrática, mas sintomas de maturidade democrática. O que é típico de regimes totalitários é a falta de manifestações, não o “excesso”. As manifestações revolucionárias são a exceção que busca justamente restabelecer a regra: a normalidade das manifestações em regimes legítimos. A manifestação é o diálogo da população com seus representantes. A manifestação é diálogo e disputa entre diferentes grupos e posições políticas dentro de uma sociedade. Estanho à vida democrática é não protestar, não demonstrar, não disputar publicamente opiniões em relação à vida coletiva da sociedade.
Do “Vai, Corinthians!” ao “Não vai ter Copa!”
Em uma das repetidas falhas na linha vermelha do Metro de São Paulo, usuários espontaneamente tomaram os trilhos e gritaram, entre outras palavras de protesto, “Não vai ter Copa!”. Em entrevista, uma das moradoras violentamente removidas da Favela da Telerj pela PM-RJ disse: “Eles preferem investir em estádios do que em moradia. Mas não vai ter Copa”. No Segundo Ato Contra a Copa do Mundo em São Paulo, após prisão coletiva, violenta e ilegal, da PM-SP, um jovem preso por braçadeira de plástico olhou firme para o policial que o prendeu e disse: “A partir de hoje, pode ter certeza, vou fazer de tudo para essa Copa não acontecer”. Como explicar que os gritos e mantras sociais afirmativos, usados a esmo em quase qualquer situação como “Vai, Corinthians!” ou “Salve a seleção!”, sejam trocados pelo grito negativo, usado nas mais diversas situações, de “Não vai ter Copa”? Como explicar que o grito radical, vindo das manifestações que se iniciaram em Junho do ano passado, ecoe agora na voz heterogênea daqueles que se sentem oprimidos pela ação do estado? E o que significa este grito, além da oposição óbvia ao financiamento público do megaevento privado? Além da Copa, ao que dizem “Não!” aqueles que gritam?
Para tentar entender estas questões, é importante considerar as manifestações contra a Copa como herdeiras diretas das manifestações de Junho. Apesar do caráter plural daqueles protestos, além de uma pequena direita golpista que via equivocadamente nas ruas a única oportunidade de derrotar a hegemonia partidária do PT, a quase totalidade das exigências se baseava na péssima qualidade ou simplesmente ausência de serviços públicos. O estopim paulisto-fluminense incendiou todos os lugares do país que reconheciam a discrepância entre preço pago e serviço público recebido. Dentro de alguns meses, a revolta indiscriminada geral se depurou em crítica ao que se julgou causa do problema: privatizações, concessões e parcerias público-privadas, em conjunto com a corrupção. Após governo e empresas cederem provisoriamente (ou apenas aparentemente), após a presidenta da República prometer soluções através de pactos, após a presidenta prometer em rede nacional que nenhum dinheiro público seria utilizado na construção de estádios e que o dinheiro emprestado seria completamente devolvido, as manifestações se acalmaram na maior parte do país, com inspiradora exceção do Rio de Janeiro.
Talvez a história do Brasil dê exemplos de sobra nos quais a população se esqueceu das pautas e das promessas. Dois mil e quatorze, ao que tudo indica, apresenta uma mudança ou pelo menos uma exceção neste histórico. Quando ficou claro que as ações governamentais (federais, estaduais e municipais) seriam apenas paliativas e não transformações estruturais e positivas nos serviços públicos do país, quando os preços das passagens voltaram a subir, quando a repressão policial voltou a ser a principal causadora de violência nas manifestações, as condições de Junho, e seu chamado às ruas, ressurgiram.
Posições políticas acerca da Copa
A oposição de direita ao governo federal fica indecisa em relação à Copa. Todos querem enriquecer, aparecer sob os holofotes, quem sabe, arranjar um parceiro gringo e finalmente escapar do país. Alguns já fizeram investimentos grandes e acreditam que farão o lucro de suas vidas: trinta dias de comércio para trinta anos de bonança. Não tem como dar errado. Há menos, claro, que as manifestações tornem a situação insustentável a ponto de o evento ser cancelado ou de os turistas resolverem não vir. Diante desta possibilidade, o empresário direitista fica em dúvida: o lucro da Copa ou o efeito negativo sobre o governo do PT?
O governo, por sua vez, usa argumento semelhante àquele inicial: o país tem se desenvolvido e a desigualdade social diminuído. A Copa, agora, pode não ser a melhor das idéias (ou, pode ser uma “roubada, como disse o governador petista Tarso Genro), mas ela é apenas um mal necessário para a continuação do desenvolvimento nacional. Seu lucro não irá para a maior parte da população, em geral irá apenas para as grandes empreiteiras e empresas de turismo, mas é dinheiro que entra no país. Os protestos, neste sentido, sabotariam o momento positivo pelo qual o país passa, gerando instabilidade política e favorecendo setores conservadores da política.
A oposição de esquerda gostaria, portanto, de responder ao governo lembrando que este argumento já foi utilizado em campanhas eleitorais no Brasil especificamente contra o PT: no histórico debate entre Collor e Lula de 89, por exemplo, a tônica inteira de Collor era a de que Lula e o PT traziam idéias estranhas, comunistas, avessas ao povo brasileiro, que buscava ordem depois da redemocratização e da recém-conquistada Constituição de 88. Doze anos depois, José Serra utilizava a mesma retórica contra Lula: depois de superada a inflação, o Brasil entrava em uma fase de estabilidade e as estranhas idéias (que neste momento já se resumiam à resquício histórico, como deixou clara a Carta aos Brasileiros) de Lula e do Partido dos Trabalhadores poderiam colocar tudo a perder. O risco-Brasil que subia com medo da popularidade de Lula ganhou o nome de risco-Lula: o risco de que se o novo surgisse, tudo iria por água abaixo.
A parte progressista do petismo, hoje minoritária, deveria entender que eles também são responsáveis por esta tomada coletiva de consciência que parece se iniciar, que estas lutas são reflexo direto do que o petismo foi; e não satanizar as manifestações com a chantagem de que gritar “Não vai ter Copa” é o jogo da direita. O jogo da direita, não há dúvida, é o jogo da Copa, sua realização como lucros gigantescos e concentrados em alguns poucos, e a conta dividida para todos como sempre se fez no Brasil. Para parafrasear um ex-petista, o grito “Não vai ter Copa” é mais petista, no sentido histórico, do que o próprio governo do PT. Com isto não se diz que o petismo é solução, nem o velho, como ficou claro, e menos ainda o novo, apenas fica clara sua contradição em relação à Copa e às últimas manifestações.
Por que gritar “Não vai ter Copa”?
Ir para as ruas contra a Copa é denunciar a ausência de um instrumento de fiscalização e expressão popular e, ao mesmo tempo, criá-lo. Somos acostumados a ver as decisões da vida política através das telas. A participação política da população tem se resumido ao ritual bianual de eleição. Todas as decisões, a partir daí, são tomadas em salas fechadas entre vendedores e compradores. Ao tomar minimamente consciência da situação a população se vê diante de uma crise de representatividade: Cairo, Madri, Nova York, Atenas, Kiev, São Paulo, Rio de Janeiro e diversas outras cidades do mundo vêem-se confrontadas, de diferentes maneiras e com diferentes soluções, pela mesma questão: a minoria para a qual emprestamos nosso poder (“O poder emana do povo”, diz o primeiro artigo de nossa Constituição) não representa os interesses do coletivo, mas os seus próprios. Isto tem sido dito com diversos slogans e em diversas línguas. No Brasil, neste momento, isto é dito sob a reivindicação: Não vai ter Copa. Reivindicação, e não apenas “ameaça”, como querem entender alguns. Não se trata de uma minoria alucinada, descolada da realidade do povo, que se utilizará de todos os meios para impedir o torneio. A tarefa não é esta. Trata-se da continuação de um processo histórico amplo que envolve todos aqueles que não se sentem representados por este sistema político-econômico. Os símbolos mais evidentes desta luta são, neste momento, os operários mortos pela pressa irresponsável na construção dos estádios, os duzentos mil que serão removidos por obras da Copa e Olimpíadas, o ataque à soberania jurídica do país, os violentados pela polícia e pelo exército que higienizam à bala a imagem das cidades-sede. O grito de “Se não tiver direitos, não vai ter Copa” é na verdade uma resposta ao que tem sido a prática do estado: só vai ter Copa Padrão FIFA se não tiver direitos. Estes símbolos despojados, todos nós, remetem à si mesmos e à exploração do povo pelas elites políticas e econômicas, aqui e no resto do mundo. Deste ponto de vista, considerando a amplitude internacional do evento, o grau de corrupção e poder da empresa privada envolvida, a FIFA, e a conjuntura mundial de levante: a luta contra a Copa do Mundo é uma das mais importantes disputas políticas de nosso momento histórico.
Os argumentos chantagistas de que os investimentos já foram feitos e que cancelar a Copa agora traria ainda mais prejuízo querem esconder com termos econômicos o que na verdade é questão política. Os lucros da Copa sempre foram planejados para todos: aqueles que tem uma empreiteira, uma rede de hotéis ou a própria FIFA. O estado brasileiro não lucra com a Copa. Os investimentos públicos que o governo diz voltar em empregos e através do já mítico turista da Copa poderiam ter sido investidos em diversas outra áreas, criando outros empregos que não desaparecerão depois de Junho ou trazendo turistas que não estão historicamente interessados em turismo sexual. O lucro eleitoral é o que interessa aos governos e o lucro econômico é o que interessa às empreiteiras, hotéis e FIFA. Ao povo brasileiro resta a conta para pagar. Mas mesmo se houvesse algum lucro para o estado, a questão neste momento não é de ganho econômico, mas político. Um jornal alemão, recentemente, escreveu um artigo agradecendo aos manifestantes brasileiros por serem pioneiros em se colocar contra a FIFA. O não acontecimento de uma Copa da FIFA por determinação da população organizada seria um ganho político (para evitar o termo “lucro”) incalculável, histórico e de impacto internacional, neste momento em que diversos povos questionam seus representantes. O único aspecto negativo deste acontecimento seria para as megacorporações como a FIFA, que chegam a países subdesenvolvidos e dobram as leis e interesses locais às suas normas de lucro. O “Não vai ter Copa” inclui, não apenas do ponto de vista dos patrocinadores, mas de um ponto de vista sistêmico, o “Não vai ter Coca”, “Não vai ter Itaú”, “Não vai ter Monsanto”, “Não vai ter Black Water”, “Não vai ter imperialismo”, “Não vai ter neocolonialismo”, no limite, “Não vai ter o que não for de interesse do povo”.
A festa legítima do povo brasileiro não é a Copa. Nossa paixão pelo futebol não é aquela dos estádios cada vez mais elitizados. Nossa paixão não é a da festa dos gringos, aquela para a qual somos aceitos apenas como garçons que circulam distribuindo taças de champanhe e que se retiram ao fim da festa para devorar os restos num canto da cozinha. A festa legítima do povo é aquela celebrada, por exemplo, com gritos de que a vontade popular foi mais forte e que não houve Copa (como com a Colômbia em 1986 ou a Suécia com os Jogos de Inverno de 2022), que a Democracia voltou (como em 1985), que a guerra terminou (antes e depois de John Lennon). Gritos que celebram o retorno do poder popular, principal palavra de ordem desde Junho, ao povo e a sujeição dos representantes a ele, e não aos interesses do 1% da Bovespa e de Wall Street. Diante da grandeza e importância desta tarefa, é quase irrelevante o fato de acontecer ou não uma Copa precária como essa que se desenha: o que importa neste raro momento de tomada coletiva de consciência é a tomada de posição e a construção, para aquelas lutas ainda maiores.
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* Tomaz Amorim Izabel é professor e mestre em Teoria Literária pela Unicamp. Doutorando em Literatura pela USP.
Fonte: Negrobelchior.
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