MC Soffia canta sobre empoderamento de meninas negras desde os seis anos. Foi sua mãe que a apresentou ao hip hop e hoje corre lado a lado da filha na carreira
Por Camila Eiroa,
Fotos: Andre Michiles
Soffia tem 11 anos e, como toda menina normal, vai à escola, gosta de estudar e mais ainda de brincar. Carrega no olhar toda a curiosidade sagaz de quem está descobrindo o mundo. Porém, desde os seis anos, é MC Soffia e tem mais tempo de carreira do que muito marmanjo do hip hop que está surgindo por aí. Ela canta sobre sua própria realidade de menina negra, que precisa se amar e se afirmar todo dia.
Junto com sua mãe, Kamilah Pimentel, recebeu a Tpm no apartamento em que moram, na Cohab Rap Tavares. Muito enérgica, Soffia nos mostrou seu quarto e suas bonecas, feitas à mão pela avó. Ela contou quando foi que começou a cantar. “Eu participava do Futuro do Hip Hop [organização infantil] e tinham várias oficinas; de DJ, MC, grafite e break. Eu gostei muito da de MC e comecei a fazer as minhas músicas, que falam sobre racismo.”
Kamilah foi a responsável por apresentar Soffia a essa cultura. Ela engravidou aos 18 anos e, mãe solteira em tempo integral, sua dedicação à filha é prioridade desde que ela nasceu. “Sempre pensei no que fazer pra que ela não sofresse tudo o que eu sofri. Até cheguei a ser radical em alguns pontos pra fortalecer a questão da identidade, para que ela se aceitasse e fosse forte quando tivesse que lidar de frente com o racismo”, diz a produtora cultural.
Hoje aos 29 anos, ela relembra sua trajetória na militância e no hip hop. “Quando conheci o movimento, me apaixonei mais ainda e nunca mais saí. É um ambiente muito masculino e já foi muito machista. Mas, hoje em dia, a mulher está muito empoderada. Se o cara é machista, a mulher vai pra cima com uma rima. Também criei a Soffia pensando na questão de gênero, então todas as canções fortalecem as meninas.”
Os primeiros shows de Soffia foram em eventos regionais de rap, mas ela já fez apresentações de peso ao lado dos Racionais MC’s e de Flora Matos. Também se apresentou no Vale do Anhangabaú, no aniversário da cidade de São Paulo. “Eu tinha uns 7 anos. Tinha muita gente! Fiquei nervosa, mas como eu era criança, não liguei. Cantei e dancei demais. Foi muito legal”, conta, e garante que aguenta a responsa, mas não canta à noite porque é hora de dormir.
“Fiquei muito triste e, de tanto me zuarem, falei pra minha mãe que queria ser branca”
A MC mirim tem seu discurso na ponta da língua: “Eu canto sobre a menina negra aceitar seu cabelo porque já passei por isso. Sei que ela é xingada na escola e vai alisar o cabelo. Eu já alisei, mas tem que aceitar natural, é bem mais bonito.” Ela se lembra de todos os episódios de racismo que enfrentou na escola, inclusive, que contou à sua mãe que queria ser branca.
Foi quando Kamilah a levou para conhecer o mundo do hip hop. Juntas, foram para diversos eventos, marchas e feiras com mulheres negras que tinham “aqueles cabelos lindos e grandões”. Não demorou para que a rapper mergulhasse de vez em seu próprio universo. Hoje, ela garante que não sofre como antes. “Agora que eu tô famosa… não tô famosa, né? Mas canto… Então não me zoam mais.”
O que ela quer, é que todas as meninas possam se aceitar através de sua música. “Quero ser uma dessas rainhas que ajudou os negros. Quero um show com todo mundo balançando o black comigo. Às vezes as crianças xingam as outras e a professora só diz pra pedir desculpas. Devia parar a aula e começar a explicar tudo, toda a história dos negros”, acredita.
Kamilah defende que o primeiro contato com o racismo vem da escola. Para deixar a filha o mais forte possível, ela começou parando de alisar os próprios cabelos. Depois, dando apenas bonecas negras. “Busquei ser uma referência pra ela. Se ela brinca que as bonecas são da família, elas têm que ser parecidas com a gente. A criança precisa se reconhecer enquanto brinca. Conforme ela foi crescendo, comecei a forçar nela a questão da leitura”, conta.
Hoje ela oferece oficinas de hip hop na escola de Soffia, que fala orgulhosa sobre os grupos de discussão de racismo que participa. A pequena acredita que deveria ser regra em todo colégio: “Existe uma lei que diz que é obrigatório falar da cultura negra nas aulas. Onde eu estudo tem esses grupos, mas deveria ter nas outras escolas também. Tinha que falar da cultura africana da creche até a faculdade, pra criança já sair sabendo a valorizar sua cor e sua origem”.
Sua matéria preferida é história e, incentivada pela mãe e pela avó, gosta muito de pesquisar. Em sua música “África”, são citadas várias mulheres, descobertas por essas pesquisas. Entre elas, Carolina de Jesus, Chica da Silva e Dandara. A mãe conta que “o problema das periferias é que falta acesso à cultura. Então, procuro fazer isso por ela. Fomos em uma exposição da Frida Kahlo e ela achou a Frida estranha. Ela foi, pesquisou sobre ela e desconstruiu aquele pensamento”.
“Ela sofre, porque assiste uma TV, vê uma chacina e sabe exatamente o que aconteceu”
Quando perguntada se ela acha que a filha sofre mais por entender a maldade do mundo, Kamilah balbucia e não tem resposta certa. “Ela sofre, porque assiste uma TV, vê uma chacina e sabe exatamente o que aconteceu. Mas uma pessoa que não tem essa consciência, que se espelha em um outro padrão de beleza e que não se apropriou da sua própria história, também sofre.”
Por outro lado, ela garante que Soffia só tem tempo de ser criança. “A vida pra ela é uma brincadeira. Na concentração do show ela fica dando cambalhota, correndo, andando de skate… Quebra a cara. Ela é terrível! Uma vez me questionou: mãe, você garante que eu sempre vou brincar? É claro, garanto que vai brincar e estudar também. Esse é o nosso acordo desde que ela decidiu cantar”, conta.
“Eu tô cantando pra passar a mensagem e não só pra receber dinheiro”
A MC não desmente: “tem que ser uma brincadeira, mas também um trabalho. Eu tô cantando pra passar a mensagem e não só pra receber dinheiro. Meu sonho é ser famosa, dar várias entrevistas. Quando crescer quero ser médica, cantora, atriz, um pouco de modelo e jogadora de futebol. Não sei se vai dar, mas eu falo assim porque quando a gente é criança fala um monte de coisa!”
Com a agenda cada vez mais cheia de shows e a carreira andando a mil por hora, as duas estão descobrindo que é, sim, possível transformar a realidade de muita gente com esse trabalho. “Criar um filho sozinha não é fácil, eu tive que mudar a minha vida inteira. Até hoje eu pergunto se é o que ela quer. O meu sonho é que o sonho dela se realize, por isso vou correr atrás do que for”, finaliza a mãe de Soffia.
Fonte: TPM
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