por Leonardo Ortegal*,
O laranja fluorescente de seu uniforme ganhava ainda mais cor quando vestia a sua pele escura. Preto como um legítimo africano, Ele parecia descender de um quilombo, mas vinha daquela linhagem de negros do alto do morro que se instalou ali desde a falsa abolição. Que morro? Não importa que morro. Misteriosa como a origem de Deus, ninguém quer saber se Ele habita aquela favela que contrasta desfocada no cartão postal com a praia do Leblon, ou se Ele pega duas ou três conduções para chegar na areia. O que importa, mas não muito, é que ele esta lá. Gritando “olha o Mate!”, para ser ignorado pelos banhistas de um dia qualquer em Copacabana. Em Copacabana, Ipanema e Leblon. Sim. Ele era onipresente naquelas manhãs e tardes de sol, naquela versão privativa de Jardim do Éden praiano. Olha, olha, era o verbo que não fazia matéria, dinheiro. Exceto por vez ou outra, em que fazia jorrar dos galões que carregava em seus ombros, mate e suco de limão, para a moçoila galega que sequer o olhava no rosto, assim como Deus, que esconde sua face, mas nesse caso era o contrário. Outras vezes, não. Sempre que servia àquele surfista bronzeado de barba por fazer, era até bem tratado como Deus. Um Deus que salva, e fornece ilegalmente o fruto proibido dos prazeres. Proibido no trajeto do morro até a praia. Na praia, é santificado pelas mãos dignas que tragam a sua fumaça impunemente a qualquer hora do dia. E o preço da salvação era dez reais.
Ao final das tardes, durante os dias de semana, assim como Deus, o menino andava pelas areias vazias, invisível, como o Espírito andava por sobre as águas antes da grande criação. Sem matéria dinheiro, mas muito poder criador.
Não se sabe dizer se o que criou o universo foi o verbo ou foi o som. Mas um festival internacional que reunia verbos e sons acontecia ali perto, e aquilo foi como a fagulha criadora. Como um Deus infinito, o menino, agora multiplicado por mil, percorreu veloz pelo Éden de Sua criação. Sim, Sua criação, pois aquelas praias só eram possíveis porque Ele era onipresente e alugava gurda-sóis, servia comida e bebida e, antes ainda, era ele que montava, consertava e abastecia os carros que levavam Adão e Eva até a areia da praia. Foi o menino infinito e atemporal que construiu aqueles edifícios da orla, pichou na terra o asfalto, e pregou no meio do nada o calçadão que hoje é arte no mundo, mas que não lhe rende tributo nenhum.
O menino percorreu pela praia e proferiu, dessa vez o verbo mágico, o verbo criador. Que chama do nada a existência. E do barro moderno, o plástico, Ele fez criar cartões de crédito, celulares e câmeras fotográficas. O menino gritou “haja luz!”, e o universo o obedeceu. Em questão de minutos, o menino-legião, que morreria anônimo de câncer de pele, no alto do morro, queimado de sol, chamou para si os holofotes de todas as mídias e redes sociais. Aquele era o sexto dia, e no sétimo ele contemplou, ou seria ostentou, sua criação.
A bíblia do planeta capitalismo não prega “Ame”. Prega “tenha”. E o menino foi fiel a esta máxima, e mesmo que o Ter parecesse impossível em sua vida de alto de morro, Ele fez o milagre impossível na areia. Mas o fazedor de milagres no novo evangelho não viveu os seus trinta e três anos como lhe era direito. Morreu aos vinte e um mesmo, ao transitar pelas ruas de Sua criação, e ser capturado por justiceiros por ser um homem negro, jovem, cabeça raspada, e estar portando um Iphone de última geração, vestindo como uma luva a descrição do vilão. Sem Judas para o trair, ali mesmo o menino foi indiciado, investigado, julgado, sentenciado e executado no tribunal das mãos do povo. Como Cristo, Deus-Filho, para os chamados defensores de bandido; ou então como Jesus, João, Cleidenilson de São Luís¹, ou o pedreiro sem nome em Natal².
Mas enquanto as multidões vociferavam em volta do poste com cabos de aço, dizendo “Crucifica-o! Crucifica-o!”, o surfista bronzeado da praia, que ali fazia coro, cruzou os olhos com o garoto. Aquele olhar profundo em meio à dor pareceu lhe dizer de maneira irrefutável “sou inocente!”, e fez o surfista gelar ao perceber que aquele era o garoto do mate, o trabalhador que lhe servia maconha na praia. Será que era mesmo inocente? Seria culpado? Em qual das três cruzes aquele jovem negrinho era crucificado? Era tarde demais pra saber. Bronzeado, permaneceu em silêncio, deu alguns passos para trás, e lavou suas mãos, como Pôncio Pilatos, para que seguisse em curso a bíblia dos tempos de hoje. O garoto que gritava mate não vertia mais chá gelado e limonada. Escorreu, sem derramar, por seu rosto e por entre suas vísceras, o sangue quente que não redime a ninguém. Mas eis que vos digo, antes mesmo do terceiro dia, o menino está vivo de novo. Ele ressuscitou.
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*Leonardo Ortegal é assistente social e doutorando em Política Social pela UnB.
Fonte: Geledés.
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