A primeira faixa, “Coração do Mar” (José Miguel Wisnik/Oswald de Andrade), é à capela. A voz de Elza Soares parece que vai falhar, mas nas sombras ela ilumina o início de tudo: “O navio humano, quente, negreiro do mangue”.
É o prólogo de um passeio pelos círculos do inferno de hoje. O já histórico CD “A Mulher do Fim do Mundo” tem shows de lançamento neste fim de semana no Auditório Ibirapuera, em São Paulo.
Os sons e os versos das 11 inéditas são do núcleo de compositores e músicos paulistas formado por, entre outros, Rodrigo Campos, Kiko Dinucci, Romulo Fróes, Clima, Marcelo Cabral, Guilherme Kastrup e Celso Sim.
A primeira etapa da saga é “Mulher do Fim do Mundo” (Romulo Fróes/Alice Coutinho), Elza como a narradora que viu e viveu tudo, perdeu dois filhos e agora vai registrar o apocalipse sem meias palavras.
Na canção, a desintegração se dá no Carnaval, a “pele preta”, a voz e o resto espatifados na avenida. Elza agoniza mas não morre, pede que a deixem “cantar até o fim”, e as notas longas da segunda parte traduzem o cansaço e a persistência.
“Maria da Vila Matilde” (Douglas Germano) trata da violência doméstica. A mulher reage: “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”. Distorções sonoras se misturam à melodia. Samba ao rock e ao rap. Não é o fim da canção, mas a canção do fim.
Em “Luz Vermelha” (Kiko Dinucci/Clima), com rap e punk rock sobrepostos, o apocalipse é recortado em cenas de periferia, tiroteio, ruas esvaziadas. “O mundo vai terminar num poço cheio de merda”, diz a letra.
PALAVRÕES
No CD, a favela (ou as “quebradas”) é o cenário do fim do mundo (ou do Brasil) e o lugar de onde ele pode ser reconstruído, pois ali se dão as maiores violências contra o ser humano. A reação ante a destruição sistemática é a chance de um renascer das cinzas, como Elza fez por toda a vida.
Se o disco é sobre um tempo sem delicadeza, palavrões são naturais. Um virou título, “Pra Fuder” (Kiko Dinucci), samba rápido em que o tesão é cantado sem frescura e alardeado pelo naipe de metais. Elza é quente, não é “Frozen”.
Lirismo também não tem vez em “Benedita” (Celso Sim/Pepê Mata Machado), sobre a transexual que traz no corpo todas as violências sociais, mas nunca se rende. Vive à beira do fim do caminho, em meio a paus e pedras. Guitarras distorcidas e metais dão o clima.
Em “Firmeza?!”, Rodrigo Campos tornou mantras as frases e gírias que deve ouvir no bairro de São Mateus, seu berço. Angústia e fraternidade saem da música, gravada por Elza em duo com o autor.
O tango “Dança” (Cacá Machado/Romulo Fróes) se situa depois do fim. A narradora está morta. Porém, já quase pó, insiste em dançar. Elza não desiste.
O Oriente chega na sonoridade e na letra de “O Canal” (Rodrigo Campos). O arranjo segue no ritmo da caminhada feita em busca de algo, talvez renascer.
Em “Solto” (Marcelo Cabral/Clima), como o título e as notas soltas indicam, a travessia é solitária, sem nada mais. “O meu corpo/ Caminha/ Na minha sombra.” É a única faixa sem guitarras ou distorções.
Elas voltam no início de “Comigo” (Romulo Fróes/Alberto Tassinari). O crescendo ruidoso estanca de repente, e Elzaressurge à capela, em tom de oração, de lamento sertanejo. “Levo/ Minha mãe/ Comigo/ Pois deu-me/ Seu próprio ser.”
E vem o longo silêncio do fim de tudo. Mas, no fundo, ainda se ouve a voz de Elza. Ela insiste. Um recado para nós.
Assista também Elza Soares no Metrópolis (27/09/2015)
Fonte: Imprensa
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