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segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Negros nas universidades: além de cotas, precisamos também de escolta?


Por Joice Berth,
Na última semana, um coletivo formado por alunos negros e que vem realizando diversas intervenções pró cotas raciais na maior universidade da América Latina, entrou em cena novamente. Dessa vez, para responder agressões racistas feitas por alunos em pichações nos banheiros da universidade, campus da USP de Ribeirão Preto. De cunho bastante agressivo e sempre em tom de ameaças, as pichações são recorrentes e generalizadas em todas as universidades onde há cotistas e se observa um expressivo aumento de alunos negros e/ou não brancos.

Imagine você, caro leitor, enfrentando uma situação de hostilidade e rejeição escancarada, cotidianamente, em um ambiente que deixa explícito de todas as maneiras que sua presença não é bem-vinda. O mundo racista sempre fez questão de deixar claro que deseja às pessoas negras o pior lugar que a sociedade pode ter. Assim também é quando sincretizamos a questão com as classes sociais. Mas ainda assim, pessoas negras continuam em desvantagem, pois representamos o maior contingente entre as classes C e D. Mas há quem afirme que o problema do Brasil é de classe, ignorando completamente que a raça informa classe social e vice-versa.


Imagine você tendo o fardo de protagonizar uma guinada histórica nas estatísticas, que sempre denunciaram a situação abismal de qualidade de vida entre pessoas brancas e não brancas. Imagine ter a pressão de reverter o passado histórico de exclusão e falta de oportunidades através desse ingresso na universidade. É conviver com as cobranças da própria população negra, porque afinal os poucos serão exemplos de que é possível reescrever a história dos negros através dessa possibilidade que as cotas abrem.

Se o Brasil não fosse um país racista, como tenta de todas as maneiras dizer para si mesmo, cotas não seriam motivo de discussão. Seria fato consumado. Mas a segunda nação mais negra do mundo deve mesmo sentir vergonha da maneira covarde com que trata os seus filhos.

Não é possível que as pessoas brancas acreditem que não tem nada a ver com todo o processo escravagista que se deu por aqui. Pois quando se fala em imigrantes, eles facilmente reconhecem a ancestralidade da origem de seus bens materiais e tratam de esquecer de toda a política de favorecimento pela qual esses estrangeiros formam submetidos.

Não é possível que pensam que com os escravizados foi da mesma maneira. Isso seria mais que alienação, seria debilidade intelectual. É apenas oportuno que não se lembrem, pois de outro modo não poderiam refutar o “vocês nos devem até a alma”, verdade citada no discurso das alunas e que teria chocado a todos os inocentes(?) que ali estavam. Todos reclamam, se sentem pessoalmente ofendidos por essa afirmação e instantaneamente chamam pessoas negras de “vitimista”. Inversão de valores? Não, cinismo mesmo. Pessoas negras não são vitimistas; pessoas brancas é que são, porque choram por medo de perder privilégios mais que consolidados. Tanto que não querem nem ao menos, repartir.


A questão é, esse mérito próprio que gostam de alardear com pompa, circunstância e cinismo, já que existe, não seria motivo o bastante para deixar nossos alunos uspianos sossegados e garantir uma atitude generosa por parte deles, pois afinal, eles supostamente têm o dom de manterem seus privilégios sozinhos. Nesse caso, fica no ar a dúvida: por que tanta oposição para garantir um direito básico às populações “naturalmente” inferiores (segundo informações forjadas pela população branca)? Ou será que esse conceito da naturalidade de nossa inferioridade é usado apenas quando convém a branquitude elitizada? No fundo, eles temeriam que descobríssemos uma capacidade sistematicamente negligenciada em benefício da supremacia branca?


Porque as medidas afirmativas despertam a fúria das pessoas brancas? Porque e elite teme a igualdade sócio racial? Mais que temerária, porque ela sempre é hábil em sonegar os caminhos que levam a ela, como trabalho e estudo?

Ou será que a presença de pessoas historicamente marginalizadas e segregadas representa uma ameaça que, devido aos prováveis resultados benéficos, poderia afirmar na prática a ineficiência do conceito de meritocracia, uma vez que prova que ensinar a pescar é fundamental, desde que se tenha a vara, a isca, o anzol e o pesqueiro (de preferência gratuito)?

A revolta das pessoas que já têm seu lugar ao sol garantido as custas da mobilização trabalhista de outros é tanta, que manifestações diretas e pessoais são proferidas via redes sociais, usando argumentos tóxicos, que tentam a qualquer custo desqualificar moralmente as pessoas negras que se levantam e pleiteiam os direitos que estes alunos que ali estão já possuem.

As alunas do Coletivo Negro da USP foram duramente atacadas e expostas em uma determinada página que se intitula “liberal” após um vídeo contendo uma encenação de repúdio contra as fotos das pichações que se espalharam na internet.


Segundo a lógica vazia dessa elite vergonhosa e nem um pouco envergonhada, o fato da estudante ter tido acesso a um colégio particular de alto padrão a exclui da incumbência de lutar por direitos iguais para outros negros que não tiveram a mesma sorte que ela e que, por isso, não conseguem ter acesso à universidade. Eles defendem essa ideia porque vivem de acordo com essa ideologia, que exclui deles a responsabilidade social de engrossar o coro e fazer pressão para que as oportunidades sejam igualitárias. Eles lutam de todas as formas para manter seus privilégios.

Ora, se cotas são, segundo eles, uma medida que agrava os atritos sociais e “aumentam” o racismo, porque essa elite branca e bem-nascida (maioria esmagadora nesses espaços) não se vale dos mesmos critérios altruístas quando se fala em cursinhos pré-vestibulares, que quase todos eles frequentam antes de garantirem suas vagas em UNIVERSIDADES PÚBLICAS? Essa modalidade de cota não seria também um agravante das desigualdades sociais, visto que quem paga um suporte desse nível aos estudos é, a priori, quem tem dinheiro para permanecer nas universidades particulares. Já não basta cursarem as melhores escolas particulares durante toda a vida, e ainda precisam dessa “medida afirmativa” que custa caro, tanto quanto a mensalidade do suposto colégio da estudante negra?

Alguns vão levantar a existência de cursinhos gratuitos direcionados aos alunos de baixa renda. Mas esses não têm a mesma aderência e nem o mesmo suporte que aqueles mais caros e famosos. E, ainda por cima, são frequentados em sua maioria por estudantes que intercalam os estudos com a jornada de 40 horas semanais de trabalho para custear as outras necessidades que a vida solicita. Já no caso dos nossos heróis meritocráticos, são invariavelmente garantidas pelos pais, permitindo uma dedicação integral aos estudos.

Temos que ressaltar que toda essa avalanche de ofensas que intimidam alunos cotistas nas universidades públicas e particulares vem de um país que cria hashtags diversificadas (e porque não dizer, totalmente caricatas) de apoio às vítimas de racismo. Esse povo brasileiro que se diz indignado quando presencia atitudes racistas de outrem, mas que não se envergonha dos 15 mil compartilhamentos seguidos de cerca 1000 comentários, altamente ofensivos, que facilmente poderiam ser enquadrados nos crimes de racismo e injúria racial. A elite que se prepara para representar profissionalmente os setores mais altos da sociedade não se dá nem ao trabalho de pelo menos estudar sobre o assunto em questão para refutar de maneira séria ou pelo menos respeitável. Pergunte a um deles o nome de algum intelectual e/ou obra escrita que aborda o tema em questão (racismo) e eles, quando muito, irão citar alguma bobagem postada em rede social, falsamente atribuída a Mandela ou Martin Luther King, os preferidos por conta de uma suposta passividade frente ao racismo.

Eles reclamam do conteúdo agressivo do discurso da estudante, que usa palavras de baixo calão e termina o discurso/encenação pleiteando a dívida histórica que a branquitude mantém com as pessoas negras por toda a América. Mas mantém um silêncio sorridente diante das pichações ameaçadoras, pois, afinal, elas expressam o pensamento da maioria. Essa elite branca e bem nascida também não se sente sensibilizada com as manifestações de pedofilia, racismo, homofobia e afins, que estão livremente na internet. Não, isso não incomoda ninguém.

Eles apelam para a moralidade, na mais hilária demonstração de hipocrisia, mas se calam frente aos episódios de estupro nos diversos campus da universidade, punidos com reles suspensão dos criminosos. E esses mesmos baluartes da moralidade que se chocaram com os palavrões proferidos pelas alunas provavelmente presenciam coisas piores nas conhecidas e lendárias festas organizadas por eles, que não são nem de longe pautadas no recato e muito menos no decoro, conforme as regras sociais que eles invocam com essas reclamações típicas de quem não tem argumento devidamente fundamentado, frente ao discurso/encenação feito.

Diante deste triste episódio, podemos esperar que o futuro da nação, que está sendo cunhado nos bancos dessas universidades públicas e particulares será de uma hipocrisia e ineficiência proporcional a quantidade de pessoas brancas, covardes e preconceituosas que a frequentam.

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Joice Berth é Arquiteta e Urbanista pela Universidade Nove de Julho e Pós graduada em Direito Urbanístico pela PUC-MG. Feminista Interseccional Negra e integrante do Coletivo Imprensa Feminista.

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