A liberdade de olhar/UNODC
"Eu tenho três filhos. Já tive que morar debaixo de uma lona e eles diziam: 'quero morar com minha mãe'. Para o que acontecesse, eles estavam comigo.
Agora eles estão com minha mãe"
Na pequena sala do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado, no centro de São Paulo, dezenas de pastas de processos amontoam-se sobre as mesas. A imagem só é um dos retratos do aumento da população carcerária no país. O Levantamento Nacional de Informações penitenciárias (InfoPen), divulgado em junho, aponta que o Brasil tem a quarta maior população prisional do mundo (607 mil presos), ficando atrás dos EUA (2,2 milhões), da China (1,7 milhão) e da Rússia (673 mil). De algum lugar da pilha, o defensor Bruno Shimizu puxa o caso de Mara*, condenada à pena de seis anos e nove meses pelo tráfico de 1 grama de maconha. “São duas balas Tic-Tac”, compara Bruno, que levou o caso ao Supremo Tribunal Federal (STF), na esperança de que a decisão não considerasse o ato praticado como um crime – o chamado Princípio da Insignificância. O ministro Gilmar Mendes concedeu a liminar de soltura, declarando que: “Salta aos olhos a flagrante desproporcionalidade na imposição de pena tão elevada e consequente privação da liberdade da paciente em face de quantidade ínfima de droga”.
Ainda assim, enquanto o pedido era negado em outras instâncias, ela ficou três anos na Penitenciária Feminina da Capital, em São Paulo. Por mais que pareça, a história de Mara não é exceção. Mulheres enquadradas no crime de tráfico de drogas representam 63% do encarceramento feminino no país – no caso dos homens, cai para 25%. A pena aplicada a quem comete este delito se equipara à de crime hediondo, com reclusão de cinco a 15 anos, em regime fechado. “A maioria das mulheres presas hoje por tráfico no Brasil ocupam papéis insignificantes no crime. Geralmente, elas guardam a droga de outra pessoa em casa e acabam sendo levadas nas batidas policiais. Ou tem aquelas que, para sustentar os filhos, empacotam ou levam pequenas quantidades para dentro dos presídios porque têm um companheiro ameaçado”, explica o defensor Bruno Shimizu. “É muito difícil ter um caso em que a mulher ocupe cargo de destaque no tráfico ou tenha autonomia, o que seria até menos preocupante”, completa.
"Mulheres enquadradas no crime de tráfico de drogas representam 63% do encarceramento feminino no país"
Gabriela Ferraz, coordenadora do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), engrossa o coro, argumentando que essas mulheres são a ponta do tráfico – e rapidamente substituídas quando detidas. “A mulher que está no tráfico é parte de uma família em que é a única ou maior responsável pelo sustento da casa. Ela soma essa ‘tarefa’ a outras, como olhar os filhos, porque não tem creche para deixá-los. Mas acaba sendo presa como uma grande traficante de drogas, como um risco público, enquadrada em um crime hediondo”, diz. O fato de a legislação não ter uma diferenciação clara entre traficante e usuário só agrava a situa-ção dessas mulheres. E faz inflar as estatísticas: entre os anos de 2003 e 2014, a população carcerária feminina cresceu 279%, o que corresponde a 37 mil presas, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) – neste mesmo período, o aumento do número de homens presos foi de 147%.
Pela nova Lei de Drogas, de 2006, em prática há quase uma década, o juiz manda prender baseado no flagrante, cujas testemunhas na maioria das vezes são os policiais militares que fizeram a apreensão. O resultado são centros de detenção provisórios superlotados. Esse formato de julgamento também é em grande parte responsável pelo alto número de prisões preventivas no Brasil: mais de 40% da população carcerária aguarda sentença.
O perfil se repete com homens e mulheres: jovens negros, de baixa escolaridade e de baixa renda. A coordenadora do Cladem, Gabriela Ferraz, conta que é comum o juiz decidir o futuro das rés levando mais em conta as convicções pessoais do que a lei. “Quando se trata de mulher, negra e de periferia, não tenha dúvidas: ela vai como traficante e ainda vai ser alvo de um discurso moralizante do tipo ‘você não pensou nos seus filhos na hora de fazer isso’. Nas audiências de mulheres o juiz não só dá uma pena, como faz questão de passar um sabão. Eu já vi a pena aumentar porque ela empacotava droga na frente dos filhos, sem levar em consideração a condição de vida daquela mulher. E isso não acontece no julgamento dos homens”, revela.
A liberdade de olhar/UNODC
"o preso não é apenas aquele ali na sua frente, tem toda uma história", C.C.O
Gravidez na cela
O programa Mães em Cárcere, da Defensoria Pública, contabiliza as mulheres grávidas e com filhos que entraram nos presídios de São Paulo. Números mostram que a grande maioria era a única responsável pelo sustento da família no momento da prisão. Questionadas sobre quem passou a ficar responsável pelos filhos, as respostas mais ouvidas foram “avós maternos” e “ninguém”. É o caso de Ana*, que viu sua família – e sua vida – se desestruturar. Três anos após deixar a cadeia, ela sente que ainda está pagando sua pena. Detida por tráfico aos 37 anos, portando uma pequena quantidade de cocaína, era ela quem cuidava dos filhos de 12 e 16 anos. Sem saber, levava um bebê na barriga. “Estava de quatro meses. Um dia, comecei a sentir muita dor, pedi socorro, mas demoraram para me atender. Só quando já estava sangrando muito e outras presas começaram a fazer barulho é que a viatura me levou para o PS. Mas já era tarde. Perdi o bebê e voltei pra cela. Foi muito triste”, lembra. Como muitas mulheres encarceradas fazem, Ana liberou a mãe e a filha de visitá-la, para não se submeterem às revistas vexatórias – tirar a roupa, agachar e fazer força sem privacidade. Durante o perío-do que ficou detida, Ana falava com o filho de 16 anos pelo telefone. “Ele dizia: ‘Olha, mãe, tô roubando mesmo, porque não quero mendigar prato de comida. Eu ficava desesperada, mas não tinha o que fazer lá de dentro. Hoje ele está preso por tráfico e me culpa por tudo o que aconteceu”, lamenta.
“A maioria das mulheres presas hoje por tráfico no brasil ocupam papéis insignificantes no crime” - Bruno Shimizu, defensor público
Dependente química desde os 13 anos, Daniela* saiu de casa aos 16 para morar na cracolândia, no centro de São Paulo. Foi presa duas vezes: por roubo e por tráfico. “Da primeira, participei de um roubo e fui sentenciada a cinco anos e quatro meses de prisão. Estava grávida e dei à luz na prisão, algemada. Não fiz pré-natal, não tinha regalia por ser gestante, tomava banho gelado. Fui para o hospital de camburão”, lembra. “Me deixaram ficar só três meses com meu filho. Implorei pra não tirarem ele de mim. Vi ele de novo após três anos e não conseguimos criar um vínculo.”
Daniela conta que meses após ser solta e sem tratamento para a dependência, acabou na rua de novo. Em uma operação policial na cracolândia, foi detida. “Eu não tinha R$ 1 no bolso, mas fui presa como traficante. Eles sabem quem são os traficantes, mas prendem os usuários. Estava grávida de novo e, de novo, não fiz nenhum exame.” Por meio de um habeas corpus, Daniela conseguiu voltar pra casa com o filho no colo, mas o futuro é incerto: “Meu processo não acabou, posso voltar pra cadeia a qualquer momento. Hoje estou limpa, sustento meus filhos e minha mãe vendendo doces. Mas vivo um dia depois do outro, sem saber o que vai ser amanhã”.
O Artigo 5º da Constituição Federal assegura às presidiárias “condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação”. A lei exige que os estabelecimentos penais destinados a mulheres tenham berçário, onde elas possam cuidar de seus filhos e amamentá-los, no mínimo, até 6 meses de idade. Aprovadas pela ONU em 2010, as Regras de Bangkok para o tratamento da mulher presa recomendam que as infratoras não devem ser separadas de suas famílias sem a devida atenção aos laços familiares. “Formas alternativas deverão ser usadas, quando possível, com as mulheres que cometam crimes, tais como medidas e alternativas à prisão preventiva e à pena”, diz o relatório. Em 2014, a ONU reconheceu que os objetivos na luta contra as drogas ainda não tinham sido cumpridos, recomendando, pela primeira vez, a descriminalização do uso de entorpecentes como uma forma eficaz de “descongestionar as prisões, redistribuir recursos para atribuí-los ao tratamento e facilitar a reabilitação”.
O que se vê hoje nos presídios brasileiros é o total descumprimento das leis, como relata a jornalista paulistana Nana Queiroz no livro Presos que menstruam: a brutal vida das mulheres – tratadas como homens – nas prisões brasileiras (ed. Record), lançado em julho. Nana visitou penitenciárias de todo o país e testemunhou violações graves de direitos, como celas superlotadas e sem ventilação, falta de itens de higiene e de cuidados médicos e torturas por parte de policiais. Dados de junho de 2013 do Ministério da Justiça, revelados pela organização de direitos humanos Conectas, falavam em um médico ginecologista para cada grupo de 1.700 mulheres. “As mulheres ainda usam miolo de pão como absorvente interno porque a maioria dos presídios não fornece absorventes. O papel higiênico acaba no fim do mês e elas saem caçando jornal velho”, diz Nana.
A liberdade de olhar/UNODC
"Me lembra o dia em que a gente entra e vai presa. Parar para pensar em tudo o que você deixou pra trás"
A agente penitenciária Marília* conta que em mais de dez anos trabalhando no sistema carcerário feminino foi percebendo tantas violações de direitos que “se tornou feminista”. “Não dava pra concordar com tudo aquilo que eu via.” Ela conta que, de fato, os presídios femininos nunca foram pensados para as mulheres, e sim adaptados dos masculinos. “Mesmo nos prédios reformados para comportar mães e bebês, por exemplo, as crianças vivem dentro de celas com porta de ferro. Toda manhã, quando eu ia abrir as celas, era só os bebês ouvirem o barulho das chaves que já viravam para a porta”, lembra. Ela explica que os próprios funcionários pressionam a diretoria dizendo que “não prestaram concurso para bater cela nas costas de criança”. Marília não sabe dizer ao certo quantas mulheres viu parir algemadas e serem separadas de seus bebês antes da hora. “Se as presas não têm família, o bebê vai para um abrigo. Quando elas saem, descobrem que perderam a guarda da criança.” A agente ressalta que as mulheres que conseguem trabalhar dentro da prisão continuam sustentando suas famílias. “Não tem licença maternidade ou direito trabalhista. A maternidade no cárcere é muito mais complicada do que a simples separação entre mãe e bebê.”
“Se as presas não têm família, o bebê vai para um abrigo. Quando elas saem, descobrem que perderam a guarda da criança” - Marília*, agente penitenciária
A solidão também marca a vida dessas mulheres. Com pouca ou nenhuma visita, ao contrário dos homens, as penas se tornam mais longas e difíceis. Segundo dados do Programa Mães em Cárcere, 73% das mulheres entrevistadas nos presídios de São Paulo não recebem a visita dos filhos homens. Dado que a antropóloga Débora Diniz também constatou depois de ouvir o relato de 50 mulheres no presídio Colmeia, em Brasília, e que deve virar livro até o fim do ano. “As visitadoras são sempre mulheres. A diferença é que, no presídio masculino, as visitadoras são mães, companheiras ou namoradas. No feminino, são mães, filhas ou amigas. Há um círculo de mulheres em torno da prisão que a literatura sociológica descreve como “aprisionamento secundário”, define. A psicóloga Ellen Taline de Ramos, que realiza pesquisas na área prisional, acrescenta: “As próprias mulheres muitas vezes ‘liberam’ os companheiros porque se sentem culpadas por quebrar o estereótipo feminino. Quando são presas, são duplamente marginalizadas. Elas rompem com o estereótipo de docilidade e isso aparece no discurso delas: “‘Como as pessoas vão me ver quando eu sair daqui?’”.
Aos olhos da sociedade, do Estado e do Judiciário, essas mulheres parecem invisíveis. O que está claramente à vista de todos é que o aumento do encarceramento feminino, assim como o endurecimento das leis, não evita que a indústria do tráfico cresça a passos largos.
A liberdade de olhar/UNODC
Quem não é visto não é lembrado
As imagens que ilustram esta reportagem integram o projeto A Liberdade de Olhar, criado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) em parceria com o Ministério da Saúde e o Ministério da Justiça, com o apoio da Delegação da União Europeia no Brasil. Implementado em 2013 em dois presídios de Porto Alegre, no Centro de Detenção Provisória de Brasília e na Penitenciária Feminina do Distrito Federal, câmeras fotográficas foram entregues a detentos e funcionários para que registrassem o cotidiano do cárcere. O trabalho virou mostra e foi exposto nas cidades participantes. Mais do que simplesmente exercer a fotografia, o objetivo do projeto é desenvolver uma metodologia de capacitação e de sensibilização sobre direitos humanos no sistema penitenciário nacional.
FONTE: revistatpm
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