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segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Enquanto houver racismo para as mulheres negras o aborto sempre será inseguro, desumano e criminalizado


Abortei a escravidão

Sem te tocar
Lhe entreguei ao mar
Lhe dei liberdade 
Lhe entreguei ao mar
Para ser livre no ventre
Lhe entreguei ao mar
Serei sua ancestral
No seu retorno já Rei
Ventre negro
Ventre livre

por Emanuelle Goes*,
Práticas racistas estão na vida das mulheres negras e em qualquer situação na saúde, mesmo quando estamos diante de um cenário que por si só é desfavorável ainda consegue ser pior para as mulheres negras, neste caso estou falando do aborto, que quando inseguro e clandestino são as mulheres negras as mais atingidas.

Por outro lado, mesmo em um atendimento com mulheres em situação de abortamento onde supostamente nada se sabe sobre o tipo de aborto, se provocado ou espontâneo, são também as mulheres negras as mais punidas no atendimento desumanizado no serviço.

De acordo com a Norma Técnica para Atenção Humanizada ao Abortamento, (BRASIL, 2011, p.15):
A atenção humanizada às mulheres em abortamento merece abordagem ética e reflexão sobre os aspectos jurídicos, tendo como princípios norteadores a igualdade, a liberdade e a dignidade da pessoa humana, não se admitindo qualquer discriminação ou restrição ao acesso à assistência à saúde. Esses princípios incorporam o direito à assistência ao abortamento no marco ético e jurídico dos direitos sexuais e reprodutivos afirmados nos planos internacional e nacional de direitos humanos.
As mulheres com abortamento sofrem diversos problemas no acesso aos serviços de saúde, como dificuldade de vagas hospitalares com peregrinações na procura de um leito obstétrico e, chegando às unidades, estão expostas a situações de violência institucional e discriminações, conforme denúncias constantes dos movimentos de mulheres, em diversos lugares do país (AQUINO et al., 2012).

Um estudo realizado no Nordeste do Brasil (GRAVSUS.NE) apresentou em seu resultado como as mulheres em situação de abortamento tem dificuldade de acessar o serviço de saúde, no entanto ser de cor preta foi o único fator que, explicou a maior dificuldade, revelando dessa forma o racismo institucional.

Racismo institucional é qualquer sistema de desigualdade que se baseia em raça que pode ocorrer em instituições como órgãos públicos governamentais, corporações empresariais privadas e universidades (públicas e privadas) (SANTOS, 2001), “trata-se da falha coletiva de uma organização em prover um serviço apropriado e profissional às pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica”

De acordo com a Pesquisa Nacional sobre Aborto (2010), são as negras as que mais realizam aborto em locais com pouca ou nenhuma higiene, insalubre e sem conhecimento médico, onde se utilizam sondas inapropriadas e outros apetrechos para provocar o abortamento. Alem disso são também as negras, de baixa escolaridade e com menos de 21 anos as que mais passam pelo processo sozinhas, sem o auxílio ou apoio de uma amiga, familiar ou profissional da saúde. (Leiam também o artigo Precisamos falar sobre o aborto de todas)

As experiências vividas para as mulheres negras no exercício do direito reprodutivo sempre teve a cor da pele como um diferencial, um olhar sobre a superfície parece que nós, mulheres negras, temos trajetórias similares com as mulheres brancas, mas não é verdade, tendo o racismo como estruturante e transversal na vida das mulheres negras faz com que o percurso seja outro, mesmo que estejamos em lutas com bandeiras comuns.

Com base no Feminismo Negro, usamos a Teoria do Feminismo Interseccional para explicar as vivencias singulares com os cruzamentos das opressões de raça e gênero e outras opressões correlatas. Pois, a interseccionalidade é uma associação de sistemas múltiplos de subordinação, sendo descrita de várias formas como discriminação composta, cargas múltiplas, ou como dupla ou tripla discriminação, que concentra problemas e busca capturar as consequências estruturais de dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação (Crenshaw, 2002).

Para Bairros (1995), a experiência da opressão sexista é dada pela posição que as mulheres ocupam numa matriz de dominação, na qual a raça, gênero e classe social interceptam-se em diferentes pontos, pois se configuram mutuamente, formando um mosaico, que só pode ser entendido em sua multidimensionalidade, uma vez que, do ponto de vista feminista, não existe uma identidade única; a experiência de ser mulher se constitui como tal de forma social e historicamente determinada.

Alguns pontos podem ser demarcados aqui, para explicitar essa trajetória das mulheres negras em relação ao aborto.

Na escravidão as mulheres negras realizavam aborto para não ver os seus filhos na escravidão, em outro momento elas eram obrigadas a abortar, que como amas-de-leite tinham que dá exclusividade em amamentar o filho do seu opressor. Muitas mulheres escravas recusavam-se a trazer crianças ao mundo do trabalho forçado interminável, onde as correntes, os chicotes e o abuso sexual das mulheres eram as únicas condições de vida a ser ofertada (Davis, 1981).

Posteriormente, outras situações adversas por conta das desigualdades raciais, as mulheres negras continuavam a abortar por não ter condições de ofertar uma vida digna aos seus filhos. Segundo Angela Davis (1981) quando as mulheres negras e latinas realizavam aborto grande parte das histórias que contavam não eram sobre o seu desejo de se verem livre da gestação, mas as condições precárias que as demoviam de trazer novas vidas ao mundo.

Para assegurar o trabalho por muitas vezes como empregada domestica ou dentro do trabalho informal sem nenhum direito as mulheres também recorrem ao aborto inseguro para a manutenção do seu trabalho, neste caso são as negras que representam o maior contingente neste tipo de trabalho, relembro aqui os casos de Jandira Magdalena dos Santos e Elizângela Barbosa temiam em perder em seus empregos, com isso a realização do aborto tinha como garantia a permanência do trabalho e elas ao realizarem o aborto inseguro e clandestino tiveram suas vidas ceifadas precocemente, vejam o artigo“Aborto e machismo no mercado de trabalho” de Jarid Arraes.

A pesquisa recente realizada pelo IBGE (2013) demonstrou que o aborto tem cor e renda,no Nordeste, por exemplo, o percentual de mulheres sem instrução que fizeram aborto provocado (37% do total de abortos) é sete vezes maior que o de mulheres com superior completo (5%). Entre as mulheres pretas, o índice de aborto provocado (3,5% das mulheres) é o dobro daquele verificado entre as brancas (1,7% das mulheres).

Os processos singulares vivenciados pelas mulheres negras vão delinear caminhos distintos e neste sentido o campo da saúde reprodutiva evidencia nitidamente essas diferenças experienciadas pelas mulheres segundo a sua pertença racial como direitos, autonomia, tomadas de decisões e escolhas reprodutivas, e para as mulheres negras segue um conjunto de fatores estruturado pelo racismo, daí a necessidade de assegurarmos as singularidades que conformam as mulheres dentro do processo coletivo no reconhecimento do sujeito e de sua historia.

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Referencias:
  • AQUINO, Estela M. L. et al . Qualidade da atenção ao aborto no Sistema Único de Saúde do Nordeste brasileiro: o que dizem as mulheres?. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 7, jul. 2012. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232012000700015&lng=pt&nrm=iso
  • BAIRROS, Luiza. Nossos Feminismos revisitados. Estudos Feministas. vol.3, n.2, p.458-463. 1995.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Atenção Humanizada ao Abortamento: norma técnica. Brasília, 2011.
  • Carmichael, S. e Hamilton, C. Black power: the politics of liberation in America. New York, Vintage, 1967, p. 4
  • CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, vol.10, n.1, p.171-188. 2002.
  • Davis, Angela. (1981), Women, race and class. Nova York, Vintage Books.

  • Helio Santos (2001). A busca de um caminho para o Brasil: a trilha do círculo vicioso. Senac. p. 109 - 110. 


*Blogueira, Enfermeira, Militante do Movimento de Mulheres Negras, Pesquisadora em Saúde das Mulheres Negras, Doutoranda em Saude Pública ISC/UFBA


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