“Não podemos mais consentir que o negro sofra as perseguições constantes da polícia, sem dar uma resposta.” Esse limite foi definido pela carta convocatória do MNU para o ato público de 7 de julho de 1978, em São Paulo. “Contra a opressão policial” é palavra de ordem essencial da entidade, inscrita em seu registro de nascimento.
Por Edson Lopes Cardoso,
Mas a denúncia do assassinato de Robson Silveira da Luz, torturado por policiais, e da discriminação sofrida por jovens negros no Clube de Regatas Tietê, foi acompanhada da convicção de que esses casos “não darão em nada”, de que “serão mais dois processos abafados e arquivados pelas autoridades”.
Quantas experiências dessa natureza foram acumuladas pela população negra e suas centenas de entidades e organizações espalhadas pelo país? Uma experiência individual e coletiva intensa, dramática, nunca validada e reconhecida pelos governos, autoridades judiciais, meios de comunicação, formadores de opinião, partidos políticos.
O racismo, ali no limite entre vida e morte, como parte essencial do que os negros conhecem como sua realidade cotidiana. “A maioria da população tem medo da PM” é o título de reportagem recente da “Folha de S. Paulo” (31/07/2015, p. B 8) e refere-se a experiências que foram vivenciadas e acumuladas por descendentes de africanos no Brasil, desde muito tempo, agora finalmente reveladas aos leitores pelo DataFolha!
Ainda em 1978, o advogado Virgílio Luiz Donnici publicava o artigo “Criminalidade e Estado de Direito” na revista Encontros com a Civilização Brasileira (v. 5, novembro de 1978, pp. 201-235), de que extraio o seguinte trecho:
“Outro aspecto da criminalidade tradicional é que as vítimas não procuram a polícia, com a convicção pacífica de que ela não resolverá a situação, o que está a merecer uma ampla pesquisa para esclarecimento da opinião pública, sob a forma da indagação seguinte: Polícia – protetores ou opressores?”
A pesquisa do DataFolha em 2015 e a pesquisa proposta por Donnici em 1978 mostram como o entendimento de uma determinada realidade é sempre complexo e multifacetado. As pessoas amedrontadas e oprimidas em seu cotidiano mais trivial, ou trucidadas nos cárceres e em chacinas nas madrugadas sombrias, podem ter dificuldades não de compreender a realidade, mas de aceitar a extraordinária simplicidade e superficialidade com que sua realidade será apreendida pelos outros. Ainda mais quando esses outros são protegidos pela polícia, não é verdade?
De maneira constante, ao longo de muitas décadas, os governos vêm falhando em garantir o direito à vida da população negra. Nossa cultura e nossa subjetividade transmitem essa aberração há gerações: a vida dos negros é vida sem valor. A questão que quero levantar é a seguinte: a experiência que decorre dessa rejeição extrema, por acaso senta-se à mesa de negociação, em que se afirma buscar soluções (programas, políticas, estratégias) para reduzir as altas taxas de homicídio da juventude?
Como devemos entender o apagamento de uma trajetória histórica singular, de uma riqueza tão inestimável de consequências críticas, certamente incômoda e perturbadora? Se as reuniões preparam a ação política efetiva, como prescindir da participação da população negra, de suas entidades e organizações, de suas fontes intelectuais e políticas?
Não é um paradoxo que quem se omitiu, sempre cúmplice, saiba agora o que fazer, enquanto os que vivenciam condições materiais, concretas e insubstituíveis, devam calar-se e aguardar, renunciando a contribuir para a solução dos problemas que sua realidade expõe todos os dias e que implicam em sua sobrevivência e continuidade?
A Declaração e o Programa de Ação de Durban, que estão completando 14 anos, pareciam ser um marco no reconhecimento do papel fundamental desempenhado pelas organizações negras. Mas ninguém se refere mais a Durban.
A contragosto, aqueles que ousam abordar o tema das altas taxas de homicídio de jovens na grande mídia admitem que os negros sejam as principais vítimas. Uma percepção não exatamente aguda de uma dimensão do real ostensiva. Embora estejamos ainda muito distantes de uma tomada de posição política diante do racismo e das desigualdades raciais, significa algo. Mas poderia significar muito mais.
No fundo, o racismo permanece secundário e a frase que acentua a cor das vítimas, que deveria significar que os assassinos foram educados para considerá-la uma justificação suficiente para suas condutas bárbaras, como parte essencial de larga tradição cultural, vai sendo assimilada pelo seu caráter exclusivamente formal.
O fato evidente, finalmente admitido, de que os negros são as vítimas principais da violência é ou não uma experiência social, política, psicológica dos negros a ser considerada?
Ao reconhecer a cor das vítimas, não nos sentimos obrigados a priorizar o enfrentamento do racismo nem a participação política dos negros? Que reconhecimento é esse, afinal? A questão central é a recusa sistemática a considerar os negros como parte da solução.
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Edson Lopes Cardoso.
Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo.
Fonte: Bradonegro
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