Centenas de mulheres são vítimas, diariamente, da violência obstétrica dentro de unidades de saúde, que vai desde o tratamento dado pela recepcionista das maternidades às imposições médicas na hora do parto
Por LUANA CARVALHO,
A alegria em relembrar o nascimento do primeiro filho é ofuscada pela angústia que sente ao relatar a violência que sofreu durante o parto. Este é o caso da vendedora Tayana Guimarães, 23, que derramou lágrimas enquanto contava a história. Assim como ela, centenas de mulheres são vítimas, diariamente, da violência obstétrica – que vai desde o tratamento dado pela recepcionista das maternidades às imposições médicas.
Nos últimos dois anos, o Ministério Público Federal registrou 53 denúncias de violência obstétrica no Brasil, sendo três no Amazonas. Mesmo sendo um tipo de violência ainda pouco denunciada – muitas vezes por falta de informação – há casos que chocam e traumatizam mulheres pelo resto da vida.
A vendedora Tayana se programou para ter o pequeno Luiz Antônio, hoje com oito meses, em casa. Porém, quando começou a sentir as dores, a família bastante preocupada resolveu levá-la a uma maternidade pública. Ela optou pelo parto ‘normal’ acreditando que tudo aconteceria naturalmente.
“A doula (acompanhantes de parto profissional) que estava comigo não pôde entrar na maternidade. Tive que ficar deitada na maca do hospital com outras gestantes ao meu lado. Duas médicas passaram por mim para fazer o ‘toque’ enquanto meu marido massageava minhas costas”.
A bolsa foi estourada pela cirurgiã obstetra com um palito. Para piorar a situação, Tayana passou pelo que mais temia: a episiotomia, um corte cirúrgico feito na região períneo. “Deitei, coloquei os pés no apoio e quando vi que a médica ia me cortar, questionei. Mas ela afirmou que como era meu primeiro filho o procedimento era necessário. Mesmo anestesiada, notei a força que ela fazia para fazer o corte. Foram 20 pontos, tive uma hemorragia e ainda estou me recuperando”, relatou.
O bebê de Tayana também não escapou da violência. “Ele chorava muito e no terceiro dia uma pediatra constatou que ele estava com a clavícula fraturada porque ele foi ‘puxado’ com muita força. Ela ainda disse que isso normalmente acontece quando eles fazem a manobra para tirar o bebê”, contou.
Momentos de terror
O que era para ser um momento perfeito tornou-se uma lembrança ruim na vida da artista plástica Marcela Aureliano. Com 32 anos, ela foi impedida de ter um parto natural “por conta da idade”, entre outros tipos de violência obstétrica que sofreu.
“Eu e meu bebê estávamos bem de saúde. Eu havia me preparado para ter meu filho em casa, mas aconteceram alguns imprevistos e meu ‘plano B’ era ir para uma maternidade pública. Já na triagem fui super mal tratada pelas enfermeiras que não sabem lidar com mulheres em trabalho de parto”.
Os maus tratos foram além da enfermagem. “A primeira coisa que o médico fez foi perguntar ‘o que eu estava fazendo alí’, argumentando que ‘mulher que tem mais de 30 anos não pode ter parto normal’. Me deixaram em uma maca desconfortável, sem comida e sem água. A dor era muita e lembro que eu chorava bastante”, desabafou.
O ápice da violência foi quando Marcela recusou a ocitocina artificial (hormônio que acelera as contrações na hora do parto) e o médico a abandonou, dizendo que ela “estava fazendo tudo errado”. “Ninguém respeitava o que eu queria e eu comecei a passar mal. Me deram soro com remédio para dor. As enfermeiras falavam que eu tinha que fazer a cesárea. Na sala de cirurgia não permitiram que meu marido entrasse e ainda me mandaram calar a boca várias vezes”.
‘Apavorante’
A professora Gabriela Repolho de Andrade, 23, não sabia o que era violência obstétrica até o nascimento da primeira filha. Diferente de Tayana e Marcela, a professora sofreu violência obstétrica em um hospital particular, onde foi internada com forte dor de cabeça e visão embaçada.
O plano de saúde não cobria o parto, apenas consultas e exames do pré-natal. “Cheguei ao atendimento de urgência e desconfiaram de pré-eclâmpsia ( quando a grávida tem pressão arterial elevada). Por causa da carência do plano fui humilhada e constrangida pela médica, que dizia que eu tinha ido ao hospital para ter o parto de graça”.
A parturiente foi proibida de ter um acompanhante durante o parto, direito dado às gestantes e preconizado pelo Ministério da Saúde. “Eles me levaram para a sala de cirurgia e pediram um cheque caução para autorizar o procedimento. Mas meu marido não tinha o dinheiro na hora. Minha pressão subiu ainda mais e eu perdi a visão do lado esquerdo durante o procedimento”, contou.
Inquérito civil
Gabriela denunciou o caso ao Ministério Público do Estado (MPE-AM) e Federal (MPF-AM) em 2013, mas a denúncia foi arquivada por se tratar de “um caso isolado, de direito individual”. Orientada por um procurador, ela entrou com um processo cível na Justiça. “Ele também sugeriu formar um grupo para solicitar uma audiência pública e fazer denúncia coletiva. Desde então estamos tentando reunir as mães que passaram por violência obstétrica”.
Para a surpresa dela, o MPF-AM instaurou um inquérito civil em novembro do ano passado para avaliar possível prática de violência obstétrica nos hospitais e maternidades do Amazonas.
Posicionamento
A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) informou que está imbuída na defesa dos direitos da mulher, elaborando condutas e normas de aplicação pelos médicos com o objetivo de universalizar as boas práticas na condução do parto e na busca de caminhos e soluções mais adequadas para ampliar os direitos femininos, assim como na minimização das vulnerabilidades.
Números
Em números, 26.657 partos foram realizados em maternidades estaduais do Amazonas em 2014. Deste total, 40,6% foram cesáreas, enquanto o índice recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) é de 15%. Em uma das principais maternidades da prefeitura de Manaus, Moura Tapajóz, 1.072 cesáreas foram feitas de um total de 2.634.
Grupo reúne vítimas de violência
As redes sociais foram as ferramentas ideais encontradas pelo grupo ‘Sagrado Feminino’ para reunir mulheres com o objetivo de compartilhar informações entre gestantes sobre hospitais, médicos e procedimentos. A mais recente luta das ‘mamães’ é para fazer uma denúncia coletiva de violência obstétrica, a fim de conseguirem uma audiência pública no Ministério Público Federal, conforme explicou uma das organizadoras, Gabriela Repolho, que também sofreu violência.
“Fiz uma denúncia, mas foi arquivada. Então um procurador orientou que algumas mulheres se reunissem para apresentar documentos e relatos dos tipos de violência obstétrica que sofremos. Desde então estamos mobilizando as mães que foram vítimas, mas por algum motivo tem medo de denunciar”, ressaltou.
Além da página oficial do grupo, elas criaram uma página só para denúncias:www.facebook.com/ViolenciaObstetricaManausAM.Atualmente o grupo do Whatsapp conta com 60 integrantes e a página no Facebook tem cerca de mil ‘curtidas’. Informações em (92) 982598643.
“Médicos são vítimas também”
“Nós também somos violentados, gritam em nossos ouvidos, recebemos xingamentos das mães e dos acompanhantes enquanto estamos tentando fazer o atendimento da melhor maneira que nos é permitido”, declarou a presidente da Associação Amazonense de Ginecologia e Obstetrícia (Assago-AM), Hilca Espírito Santo.
De acordo com a médica, a episiotomia e ocitocina artifical são procedimentos usados “para facilitar a condução do trabalho de parto”. “A ocitocina apressa a expulsão do bebê, são drogas que precisam ser utilizadas quase sempre. É um risco de vida não usar, pois muitas vezes as pacientes não têm produção suficiente do hormônio. Se tenho uma droga que vai facilitar dar um ritmo às contrações, não posso lançar mão da tecnologia que me é oferecida? É para o bem da paciente”, esclareceu.
Sobre a episiotomia (corte na região do períneo), a médica explicou que é uma indicação obstétrica feita há mais de um século. “Caso não tenha esse corte, a mulher corre o risco de ter várias lacerações e teremos que fazer a sutura depois. Não concordo em rotular esses procedimentos como violência. Não somos violentos”.
Ministério prega parto humanizado
O Ministério da Saúde informou que “estimula a adoção de práticas de humanização do atendimento, como o respeito à privacidade da mulher, a abolição da violência obstétrica (episiotomia de rotina, ocitocina artificial, jejum), um ambiente ajustado que possibilite que a gestante escolha melhores posições para o parto, entre outros”. Essas ações são realizadas por meio da estratégia Rede Cegonha, que beneficia com incentivos financeiros as maternidades que aderem ao programa.
O secretário adjunto de atenção especializada da capital, Wagner William de Souza, garantiu que o conceito de parto humanizado está sendo implantado em toda a rede estadual de saúde. “Iniciamos o processo da implantação da Rede Cegonha.O principal a ser trabalhado é a mudança de processos de trabalhos. Algumas adaptações estruturais também estão sendo feitas na rede para facilitar essa humanização. Sabemos que infelizmente os direitos das mulheres são negados, mas o importante é esclarecer para as gestantes o que consiste um parto humanizado para que ela seja a protagonista do parto”.
Fonte: A Critica
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