por Edson Lopes,
Maria Júlia Coutinho é agora um nome nacional e já sabemos que ela prefere ser chamada de “Maju”. Sua presença vem contribuindo para descontrair o ambiente do “Jornal Nacional” na hora da previsão do tempo, de acordo com as “novas” estratégias de reconquista da audiência perdida. E o faz com segurança, numa televisão que impõe severas restrições à participação de pessoas negras.
Elas têm presença garantida na construção de cenários e ambientes, pedreiros, pintores, marceneiros, eletricistas, ou manicures e costureiras, iluminadores, etc. Quando o cenário está pronto e o programa começa, as pessoas de pele escura devem recolher-se. Mas nunca o fazem totalmente, sempre podemos vê-las aqui e ali ou pressentir sua presença.
Lembrem-se de Machado de Assis, descoberto a semana passada numa foto que documentou a missa campal em comemoração ao treze de maio. Recordemos uma cena de seu romance “Quincas Borba” (cap. 51), publicado em 1892.
O almoço já está servido, as personagens se dirigem à mesa e não vimos nada, sabemos que Sofia “apenas tomou um caldo”. Depois do almoço, Sofia, pensativa, ouve o rumor de pratos, o andar das escravas, e perdendo-se “em reflexões multiplicadas”, aborrecida e irritada por causa de episódio da véspera e da conversa com Palha, seu marido, vê, enquanto contempla a paisagem no jardim, “um pobre preto velho, que em frente à casa dela, trepava com dificuldade um pedaço de morro. As cautelas do preto buliam-lhe com os nervos”.
Acrescente-se que o narrador nos informou que a personagem tinha “ficado só”, após o almoço. O que não conta absolutamente para reduzir a solidão de Sofia é o fato de que a casa está cheia de escravos/as, os pretos estão em todo lugar e espalham-se pela paisagem.
Mas nós os veremos pelas frestas da narrativa, pelo resultado de atividades domésticas que garantem o conforto, a alimentação, etc.. Há indícios e registros dessa presença em todo o texto. Vejam também como a presença negra envolve os sentidos da personagem (paladar, audição, visão), e se faz presente nas associações simbólicas. Diante do assédio de Rubião, Palha, que lhe deve muito dinheiro, recomenda cautela a Sofia. A trajetória do casal de arrivistas e as cautelas necessárias de sua escalada social se materializam na paisagem através do esforço do preto velho.
Os mecanismos da narrativa no Brasil estabeleceram assim os fundamentos de uma apreensão refinada do país quase invisível habitado por negros.
Os jornalistas quando levantam da bancada principal do Jornal Nacional para interrogar Maria Júlia sobre as condições do tempo cruzam uma fronteira social. Como a interação com os negros se dá sempre de cima para baixo, pesa no diálogo inusitado o tom adocicado e paternalista. Acho que a história de “ela prefere ser chamada de Maju” entra também por aí.
Na entrevista que fez com a apresentadora Maria Júlia Coutinho (FSP 16.05.2015, C8 Ilustrada), Lígia Mesquita, que assina a coluna “Outro Canal”, lhe fez a seguinte pergunta: “Você é uma das poucas jornalistas negras no ar. É importante estar no principal telejornal do país para isso mudar?”.
Maria Júlia respondeu que uma andorinha só não faz verão e que o fardo é difícil de suportar: “não pode demorar tanto tempo pra ter outra Glória Maria, outro Heraldo Pereira”.
As pessoas, como se sabe, estão intimamente vinculadas a um conjunto de experiências de que são o resultado. O conjunto, extraordinariamente rico e diversificado, da experiência de africanos e seus descendentes no Brasil não interessa aos meios de comunicação (como não interessa aos políticos, etc.). Decorre daí, como bem disse Stuart Hall, esta presença pouca e dispersa, esta visibilidade controlada e regulada.
A demora a que se refere Maria Júlia ( Glória, Heraldo e ela mesma) é a expressão de uma regulação, movimentos demarcados por uma estratégia bem sucedida.
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Edson Lopes Cardoso.
Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo.
Fonte: Brado Negro
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