por Lilian do Carmo de Oliveira Cunha* via Guest Post para o Portal Geledés
Resumo
A discriminação racial na escola se manifesta por meio das diversas relações que nela acontecem: através de materiais didáticos, no convívio entre professores e alunos e demais atores sociais que a compõe. O presente artigo pretende discorrer sobre as demandas pedagógicas suscitadas pela Lei Federal 10.639/03, que torna obrigatório incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, posicionando o pedagogo como mediador das tensões que a exigência de novas diretrizes promovem no espaço escolar, com objetivo de eliminar os reflexos do racismo existentes na instituição educacionais.
Palavras-chaves: relações raciais, espaço escolar, pedagogo
Introdução
As discussões acerca das questões raciais na educação gradativamente vêm ganhando espaço nas instituições escolares, considerando que há alguns anos a temática não tinha caminhos abertos para permear este contexto. Em 2011 participei da formação do projeto “A Cor da Cultura”¹ junto a professores do ensino médio da Fundação de Apoio à Escola Técnica – FAETEC. Na ocasião, os docentes apresentaram muitas dificuldades de lidar com a diversidade², o que demonstrou o quanto as discussões sobre as relações entre “os diferentes”, especificamente as relações étnico-raciais, ainda precisam avançar.
Deve-se reconhecer que após a promulgação da Lei 10.639/03, que obrigou a inclusão da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” nos currículos dos estabelecimentos de ensino, houve a legitimação da importância de trazer para as discussões pedagógicas as relações raciais na escola. Do mesmo modo, houve um aumento significativo da produção acadêmica nesta área, o que contribui para o processo dialógico de inserção desta temática nos espaços escolares. É importante ressaltar que não quero aqui dizer que antes deste marco não existia diálogo pedagógico e/ou teórico que contemplasse essa abordagem, pelo contrário, foram exatamente as lutas dos movimentos sociais que resultaram no reconhecimento legal, todavia, a lei descortinou a homogeneidade cultural, política, social e econômica historicamente institucionalizada através dos currículos escolares, anunciando como pressuposto uma mudança no tocante às perspectivas epistemológicas da educação.
Não pretendemos posicionar a escola como redentora dos conflitos sociais, pois esta não resolve sozinha as mazelas do nosso cotidiano racial, uma vez que estes estão enraizados em uma construção histórica, mas considerar a escola como lugar de destaque para a intervenção nesse cenário social é fundamental. Nesta perspectiva, Nilma Lino Gomes (2008) afirma que
a escola cumpre a sua função social e política não somente na escolha da metodologia eficaz para a transmissão dos conhecimentos historicamente acumulados ou no preparo das novas gerações para serem inseridas no mercado de trabalho e/ou serem aprovadas no vestibular. Quando a escola conseguir superar essa visão, ela compreenderá que a racionalidade científica é importante para os processos formativos e informativos, porém, ela não modifica por si só o imaginário e as representações coletivas e negativas que se construíram sobre os ditos “diferentes” em nossa sociedade (p.2).
Considerando que esta escola citada por Nilma Lino Gomes é composta por diversos atores sociais que são direta ou indiretamente responsáveis pela formação dos alunos e, no cotidiano escolar considerável parcela de profissionais da educação diz não perceber os conflitos e as discriminações raciais entre os próprios alunos e entre professores e alunos , este artigo pretende discorrer de que maneira o pedagogo poderia mediar estas relações raciais no espaço escolar.
O pedagogo na escola
Etimologicamente, o significado da palavra pedagogo é aquele que conduz, mas suas atribuições foram sendo modificadas de acordo com as tendências pedagógicas de cada década, agregando:
- ação fiscalizadora;
- implementação de métodos;
- facilitador da aprendizagem;
- facilitador do diálogo;
- mediação para definição de conteúdos;
- atividades burocráticas.
No espaço escolar, este pode atuar como docente dos anos iniciais e disciplinas pedagógicas, na gestão do ensino, na administração, supervisão, orientação ou na coordenação pedagógica. As atribuições de cada função poderão variar de acordo com a instituição em que o profissional atua, contudo, trataremos neste trabalho do pedagogo fora da função de docência, em sua atuação nas práticas pedagógicas da escola, sendo este o responsável pela gestão, acompanhamento e avaliação dos diversos processos educacionais.
A partir da década de 90 o pedagogo deixou de ter uma função meramente técnica e passou a ser o “responsável” pelas diversas relações no espaço escolar, sejam estas políticas ou sociais, não somente restritas a esfera educacional. As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia (2006) estabelece, entre as funções do pedagogo, a
ação educativa construída em relações sociais, étnico-raciais, desenvolvendo-se na articulação entre conhecimentos científicos e culturais, valores éticos e estéticos inerentes a processos de aprendizagem, socialização e construção do conhecimento, no âmbito do diálogo entre diferentes visões de mundo.
Assim, surgem novos desafios, sem perder de vista as questões eminentemente pedagógicas (OLIVEIRA e GRINSPUN, 2012, p.26). Oliveira e Grinspun (2012) pontuam que para compreender o trabalho do pedagogo, é necessário conhecer as dimensões presentes no dinamismo do cotidiano escolar, são estas:
- Dimensão institucional/organizacional – envolve todos os aspectos referentes ao contexto da prática escolar: formas de organização do trabalho pedagógico, estruturas de poder e de decisão, níveis de participação dos seus agentes, disponibilidade de recursos humanos e materiais , ou seja, toda a rede de relações que se forma e transforma no acontecer diário da vida escolar.
- Dimensão instrucional/pedagógica – abrange todas as situações de ensino em que se dá o encontro entre o professor, o aluno e o conhecimento. Nesse encontro, estão envolvidos os objetivos e os conteúdos do ensino as atividades e o material didático, a linguagem e outros meios de comunicação entre professor e alunos, e as formas de avaliar o ensino e a aprendizagem.
- Dimensão histórica/filosófica/epistemológica – refere-se aos pressupostos subjacentes à prática educativa. Esse âmbito de análise inclui uma reflexão sobre os determinantes sociopolíticos dessa prática, o entendimento da sua razão histórica e o exame das concepções de homem, mundo, sociedade e conhecimento nela envolvidas.
Entendemos assim que embora haja essa separação de funções/atribuições, as ações devem ser globais, em uma relação de interdependência, uma vez que não há como compreendê-las fora de suas relações, pois integradas, solidificam a práxis social do ensino. Nesse sentido, objetivamos explicitar que o pedagogo, independente da nomenclatura que tenha dentro da escola, tem a função indispensável de refletir sobre os problemas sociais e educacionais e procurar possíveis encaminhamentos, visando equacionar as tensões das relações atuais.
Para que as práticas acima descritas sejam efetivadas pelos pedagogos presentes nos espaços escolares se efetivem, estes devem estar em constante formação, atentos às situações que emergem no dia a dia da escola. A escola também é um espaço de formação contínua para os profissionais que nela atuam, pois são nas práticas cotidianas que o fazer pedagógico tem o seu sentido e este não pode existir sem intencionalidade. Assim, o papel do pedagogo deve constantemente ser repensado, objetivando refletir suas práticas enquanto mediador das relações pedagógicas existentes entre professor – aluno – currículo – metodologia – avaliação – ensino e aprendizagem, de forma simultânea. Entre as diversas mediações/intervenções as quais o pedagogo é responsável, enfatizamos sua postura frente as relações raciais.
O pedagogo e as relações raciais no espaço escolar
Antes de começar a delinear quais são os possíveis procedimentos para a mediação pedagógica das relações raciais no espaço escolar, saliento que todos os atores presentes neste espaço devem ser agentes de promoção de uma educação antirracista e antidiscriminatória, não posicionando o pedagogo como único responsável por intervir nestas relações, mas deve-se considerar que as especificidades de sua formação o situa como um importante mediador.
De acordo com Gomes (2008), a escola é mais que um espaço educacional formal, é um espaço sociocultural em que as diferentes presenças se encontram. Os problemas de cunho social e racial existem dentro da escola e uma posição deve ser assumida, que vai além de uma posição ideológica, mas de comprometimento com o papel de educador. Não se trata de ser “o salvador” e acreditar que pode mudar as mentes da equipe, mas de buscar ver a escola com um olhar capaz de perceber as diferenças presentes e buscar subsídios para auxiliar na transformação deste cenário, o que exige um posicionamento crítico e político. É necessário então repensar o papel dos profissionais da educação: eles não podem atuar de forma neutra em uma sociedade conflituosa, nem podem permanecer omissos, pois a realidade pede que se posicionem diante dos problemas sociais (OLIVEIRA e GRINSPUN, 2012, p.8). Caso contrário, estes estarão colaborando com a perpetuação das práticas reprodutoras, indo de encontro na contramão com os ideais da profissão.
Visto que a educação não é neutra, a pluralidade de identidades presentes na escola exige um intenso trabalho de articulação entre as diferenças, para que as ações individuais se transformem em contribuições efetivas na consecução dos objetivos pedagógicos da escola. Não se trata de uma revolução e sim de uma evolução (OLIVEIRA e GRINSPUN, 2012, p.41).
Pesquisas recentes indicam que a formação dos professores não contempla uma educação para as relações raciais. Do mesmo modo, apontam que os cursos de pedagogia, mesmo doze anos após a promulgação da Lei 10.639/03, também não inseriram de fato as discussões previstas na lei em seus currículos, ou seja, a formação dos atores que atuam na escola ainda é resultado de uma formação eurocêntrica. Isto não isenta a responsabilidade dos mesmos frente a multiplicidade de conhecimentos que permeiam a escola e ainda não foram inseridos nos debates educacionais, pelo contrário, sinalizam a urgência pela busca de outras pedagogias que supram esta lacuna.
Se considerarmos o pedagogo com essa formação deficiente que não o assegure de discutir a problemática que delineia a temática étnico-racial, este deve apropriar-se dessas abordagens de modo a se instrumentalizar e ressignificar a compreensão dos processos históricos de produção/reprodução das desigualdades sociais. Atualmente, é possível encontrar uma ampla produção acadêmica que contempla as diversas vertentes das relações raciais e educação, o que permite não só a ampliação de conhecimentos necessários para compreender os conflitos forjados por uma sociedade construída sob valores da hegemonia europeia, mas o entendimento de como nós, educadores, podemos intervir nessas relações. Estando o pedagogo ciente da relação escola – sociedade, entendendo a escola como instituição social que favorece, consciente ou inconscientemente, a perpetuação das desigualdades sociais e práticas excludentes, bem como o reforço de atitudes discriminatórias, este poderá perceber estas tensões como problema de todos e assim buscar junto aos demais membros que compõe a equipe escolar, o desenvolvimento de outras filosofias, outras pedagogias, outras epistemologias.
É importante evidenciar que não é tarefa fácil reorganizar um cotidiano balisado há anos numa educação eurocêntrica. As dimensões abrangidas pela temática étnico-racial devem ser descritas e conceituadas, para que haja um entendimento capaz de fundamentar as práticas, mesmo porque, cada pessoa, seja o aluno, o professor, o zelador, traz consigo uma cultura, conceitos, crenças e, na escola, se esbarram com a diversidade, o que ecoa a necessidade de diálogos.
Após a promulgação da Lei 10.639/03, o Ministério da Educação junto a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD e a um coletivo de estudiosos especialistas e militantes das questões étnico-raciais, produziram materiais com objetivo de orientar e promover a formação dos profissionais da educação. Uma delas são: “Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais (BRASIL, 2006), as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação da Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana”(BRASIL, 2004), entre outras publicações de livros e coleções. As orientações trazem para cada nível ou modalidade de ensino, um histórico da educação brasileira e a conjunção com a temática étnico-racial, apresentando diversas formas de inserir as discussões nos currículos e demais práticas pedagógicas. Já as diretrizes se apresentam como
dimensões normativas , reguladoras de caminhos, embora não fechadas a que historicamente possam, a partir das determinações iniciais, tomar novos rumos. Diretrizes não visam a desencadear ações uniformes, todavia, objetivam oferecer referências e critérios para que se implantem ações, as avaliem e reformulem no que e quando necessário (BRASIL, 2004)
Face ao exposto, o pedagogo, a partir destas publicações, irá orientar para que os demais atores do espaço escolar dediquem cuidadosa atenção a inserção das discussões da diversidade racial nas práticas escolares, como propõe a lei. As intervenções podem iniciar com um diálogo durante um conselho de classe ou centro de estudos, nas conversas nas salas dos professores e pátios, para que inicialmente se perceba o posicionamento ideológico/social dos professores, pois isto influencia o modo pelo qual o conhecimento é transmitido e de que forma este se relaciona perante as situações de diversidade. O pedagogo não deve expor as ideias de maneira impositiva, e sim oferecer subsídios, teóricos e práticos que fomentem o discurso pedagógico para o desenvolvimento de atitudes positivas. Espera-se assim que posteriormente este, em conjunto com seus pares, promovam o estabelecimento de novas diretrizes e práticas pedagógicas, construindo em parceria uma política institucional de inclusão educacional. Políticas estas que são nomeadas de políticas afirmativas, que favorecem o reconhecimento e valorização da história, cultura e identidade do negro. Para Banks (2006),
para que uma educação multicultural seja implementada com sucesso, são necessárias mudanças institucionais mais abrangentes nas escolas, incluindo mudanças no currículo; no material didático; nos estilos de ensinar e aprender; nas atitudes, percepções e comportamentos (p.21).
Deste modo, não só o pedagogo, mas toda a equipe escolar perceberá como a desigualdade que existe dentro da escola é reproduzida e de que maneira cada um pode intervir nesta realidade.
Considerações finais
O Brasil, ao longo de sua história, estabeleceu um modelo de desenvolvimento excludente, e este processo é transferido para o ambiente escolar. Com olhar crítico sobre dia a dia da escola, pode-se entender os mecanismos de dominação e de resistência por meio da percepção de como é construído o conhecimento e como são transmitidos valores, atitudes, crenças, modos de ver a realidade e o mundo. Ainda possuímos uma realidade marcada por posturas de preconceito, racismo e discriminação e por isso falar de relações raciais na escola implica em confrontar posições ideológicas, sociais e culturais, mas se ficarmos inertes centrados nas possíveis resistências do cotidiano, as práticas pedagógicas permanecerão reprodutoras de padrões conservadores. Forjar um novo modelo educacional é um desafio, todavia
a educação constitui-se em dos principais mecanismos de transformação de um povo e é papel da escola, de forma democrática e comprometida com a promoção do ser humano na sua integralidade, estimular a formação de valores, hábitos e comportamentos que respeitem as diferenças e as características próprias de grupos e minorias. Assim, a educação é essencial no processo de formação de qualquer sociedade e abre caminhos para a ampliação da cidadania de um povo (BRASIL, 2006, p.7).
O processo pedagógico envolve três grandes dimensões: humana, técnica e político-social, nesse sentido, é necessário captar a relação escola-sociedade a fim de estabelecer a adoção de políticas educacionais e estratégias pedagógicas capazes de redefinir a educação brasileira nos diferentes níveis e modalidades de ensino. A promulgação da Lei 10.639/03 foi um passo inicial rumo a reparação das desigualdades raciais, pois abre caminhos para a adoção de medidas humanitárias na construção e apreensão do conhecimento e nas relações raciais no espaço escolar, mas as políticas públicas não se constituem sozinhas, elas têm seu sentido na práxis de seu contexto. A humanização enquanto objeto da pedagogia, responsabiliza o pedagogo como o mediador de uma educação que seja algo mais do que simples produto da ação metodológica. Portanto, este profissional vai direcionar o trabalho pedagógico, provocando uma ação coletiva rumo a uma mudança institucional, para que a escola se torne um espaço de formação humana, e não apenas de instrução escolar.
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Referências Bibliográficas:
BRASIL. Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, 1996;
BRASIL, Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Brasília: MEC, 2004;
___________________________. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal 10.639. Brasília: SECAD/MEC, 2005;
___________________________. Orientações e ações para Educação das Relações Étnico-Raciais. Brasília: SECAD/MEC, 2006;
___________________________. Resolução CNE/CP nº 1 de maio de 2006. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia. Brasília, 2006;
BANKS, James A. Reformando escolas para implementar igualdade para diferentes grupos raciais e étnicos. In: Cadernos Penesb – População negra e educação escolar. Niterói: EDUFF, 2006;
GOMES, Nilma Lino. Educação e diversidade cultural: refletindo sobre as diferentes presenças na escola, 2008. Disponível em www.mulheresnegras.org/nilma.html;
OLIVEIRA, Eloisa da Silva Gomes; GRINSPUN, Mírian Paura Sabrosa Zippin. Princípios e métodos de supervisão e orientação educacional. Curitiba: IESDE, 2012.
OLIVEIRA, Iolanda de. Raça, Currículo e práxis pedagógica. In: Cadernos Penesb – População negra e educação escolar. Niterói: EDUFF, 2006;
Fonte: Geledés.
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