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quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Maria Araújo, a mulher trans que passou na UFPE


Mulher transexual, negra e de infância pobre, Maria Clara Araújo causou comoção ao ser aprovada

Aos 18 anos, Maria Clara Araújo já se tornou um símbolo da luta pelos direitos das transexuais. Aprovada pelo Sisu para cursar Pedagogia na Universidade Federal de Pernambuco, a jovem de Recife comemora o fato de ser mais uma transexual matriculada em uma universidade pública. Passada a euforia, no entanto, um percalço na hora da matrícula: mesmo tendo encaminhado os papéis para adequar seus documentos com seu nome social, precisou fazer a matrícula com o seu nome civil, aquele que recebeu ao nascer e que não corresponde ao seu gênero.

Em entrevista a CartaCapital, Maria Clara conta que a boa notícia é que a universidade se mostrou sensível ao seu apelo e deve permitir o uso de seu nome social. O caso ganhou forte repercussão nas redes sociais nos últimos dias.

Após passar na faculdade, Maria Clara publicou um relato longo e forte em seu Facebook (leia a íntegra ao final do texto) no qual desabafa sobre todo o preconceito sofrido em sua vida como transexual: "Se ontem a professora tirou a boneca de minha mão, hoje o Reitor diz não ter demanda para meu nome social. Eu existo! Nós existimos!", escreveu.

Maria Clara se acostumou a crescer num ambiente muito hostil. Uma menina periférica, filha de um pai trabalhador servente, como se define, a jovem trans precisou galgar seu espaço na sociedade para driblar o fato de ser mulher, transexual, pobre e negra. “Da mesma forma que eu tive que me construir mulher numa sociedade que te atribui um gênero, eu tive que me construir como uma pessoa negra numa sociedade racista.”


Foi sua mãe quem investiu para que estudasse em bons colégios públicos, distantes da periferia em que mora. Mesmo sendo muito católica, sua mãe adotiva nunca deixou transparecer qualquer traço de preconceito, segundo a jovem. “Cresci ouvindo que eu era uma pessoa diferente. E antes de eu escutar isso, mamãe foi quem escutou primeiro.”

Sua experiência na escola fez com que percebesse porque as transexuais abandonam os estudos. “Desde muito cedo o âmbito escolar me foi hostil. A escola sempre foi um local de retaliações”, conta. “Uma vez eu cortei o cabelo e estava me achando meio estranha, sabe? Ficou muito pequeno. Ai, eu fui de lenço pra escola. Quando cheguei, o próprio diretor olhou pra minha cara e disse: tire esse lenço agora, tome jeito de homem.”

O acontecimento marcou Maria Clara a ponto de ela refletir sobre o que enfrentaria quando se declarasse de vez como mulher. “Isso foi no início da transição, eu ainda estava me construindo. Daí eu coloquei na balança e pensei como seria minha vida daqui em diante.”

A luta pelo seu direito de ser Maria Clara é diária, e a faz perceber o quanto a sociedade é transfóbica e afasta as travestis das universidades e postos formais de trabalho. “Quando converso com minhas amigas travestis, é unânime: todas largaram a escola porque são rejeitadas naquele ambiente. Não tem transexual em universidade porque desde de cedo é colocado que o ambiente educacional não é lugar para elas”.

“Tem muita gente dizendo: porque você conseguiu, as outras poderiam conseguir também. Mas eu acho que não, porque se eu fui forte o suficiente pra lidar com tudo isso e ainda ter coragem de entrar na universidade, foi uma conquista pessoal. E torço para que muitas outras também consigam”, explica a caloura.

Longe das oportunidades, restam poucas opções. “A prostituição, embora seja uma situação de marginalidade extrema, é o único lugar em que essas meninas encontram um certo reconhecimento. E isso é muito triste, você só encontra reconhecimento numa situação muitas vezes sub-humana.”

Maria Clara já procurou emprego em áreas como telemarketing e vendas, mas nunca foi chamada. "Mesmo com boas entrevistas, nunca fui contratada.” Além das dificuldades de serem chamadas para as vagas, as transexuais precisam lidar com outras questões cotidianas. “Quando a menina trans consegue o emprego, em todo momento ela é deslegitimada, ela não pode usar o banheiro feminino, não pode ter seu nome social no crachá...”.

A escolha por Pedagogia não foi por acaso. “Anseio pautar uma educação mais libertária e inclusiva, e que realmente crie respeito. Se hoje não tem transexuais na faculdade é porque desde lá de baixo falta acolhimento na educação.”

Maria Clara não desanima: “A escolha é apenas uma: lutar ou lutar. E eu, Maria Clara Araújo, escolhi ser um símbolo de força. A revolução será travesti!”.

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