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terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Burocracia faz com que Disque Igualdade Racial não saia do papel

Kim Fortunato: O racismo não é como uma multa de trânsito. Paguei e estou livre. Evoluímos, mas precisamos reconhecer que existe o racismo

Com recursos escassos, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial tem dificuldades para mapear as denúncias no país, o que auxiliaria políticas públicas


Com o menor orçamento da Esplanada dos Ministérios, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) termina 2014 sem tirar do papel um canal grátis de denúncias de racismo, prometido há dois anos. A criação do Disque Igualdade Racial, que funcionará de maneira semelhante a canais já existentes nas pastas de Direitos Humanos e Políticas para as Mulheres, foi reiterada pela ministra da Seppir, Luiza Bairros, em junho. Sem o instrumento, a secretaria não consegue fazer o mapa das queixas pelo país, o que pode dificultar o planejamento de políticas públicas.

O atraso se deve à burocracia para a implantação e à escassez de recursos. Neste ano, enquanto a Secretaria de Direitos Humanos gastou R$ 19,1 milhões apenas com o Disque 100, a Seppir desembolsou R$ 26 milhões com toda sua estrutura. Sem o Disque Igualdade Racial, que terá o número 138, a ouvidoria da Seppir recebe as denúncias de outras formas. Neste ano, foram 425. Para se ter ideia do tanto que o número é subdimensionado, apenas o Disque Racismo do Distrito Federal, que começou a funcionar em março de 2013, recebeu mais de 15 mil ligações que originaram 207 ocorrências, que foram levadas ao Ministério Público do DF.

Desde que o Disque Racismo do DF foi criado, o número de denúncias oferecidas pelo MP à Justiça aumentou consideravelmente. Em 2010, foram 10, e em 2012, 16. Já em 2013, o número subiu para 60 denúncias e, neste ano, 41.




O gerente de projetos da Seppir, Felipe Freitas, atribui a dificuldade de criação do Disque à burocracia. “O processo licitatório pode ser bastante longo e pode haver judicialização administrativa questionando o pregão”, diz. A Seppir, entretanto, não informou em que etapa está o processo, quando foi aberto, e quais são as empresas envolvidas. Ele nega que os poucos recursos da pasta são problema para a implantação. "O orçamento (da Seppir) pode ser um entrave lá na frente. A prática pode nos revelar que se transforme em um problema”, avalia Freitas.

Segundo ele, um plano sobre como funcionará o Disque foi feito em diálogo com a Secretaria de Políticas para Mulheres e a Secretaria de Direitos Humanos. Ele não soube passar detalhes do projeto, entretanto. Freitas reconhece que o conjunto de casos de racismo no Brasil é maior do que o recebido pela Seppir em denúncias. Ele, no entanto, pondera os dados. “O fato de nós termos menos denúncias aqui revela que a política de igualdade racial está acontecendo porque os estados e municípios estão fazendo seu papel”, avalia ele.

Problemas

O sociólogo Ivair dos Santos, professor do Centro de Convivência Negra da Universidade de Brasília (UnB), acredita que há dois grandes problemas na estrutura de combate ao racismo no país: a falta de recursos e a pouca representatividade política. “Diante do que temos de fazer para combater o racismo e da estrutura que temos hoje, é preciso repensar, porque efetivamente não temos recursos. A Seppir não é faz de contas. Se ela não existisse, não teríamos a lei de cotas. Mas, para dar conta da demanda, precisa de dinheiro e articulação política”, avalia.

Para Santos, é necessário criar o Disque Igualdade Racial e monitorar as políticas afirmativas feitas. Para isso, ele reforçar que é fundamental aumentar a estrutura e os recursos humanos da pasta. Por isso, o sociólogo propõe como solução a criação de um fundo nacional de combate ao racismo. Os recursos viriam da União, de parte da arrecadação das loterias da Caixa Econômica Federal e de percentual das multas por crimes raciais.

O coordenador de projetos da Seppir, Felipe Freitas, diz que os recursos para combater o racismo não são só da Seppir, mas sairiam também de outros ministérios. Mesmo levando em conta projetos contra o racismo que têm a participação de outras pastas, no entanto, o número é pequeno. O valor autorizado neste ano para o programa de combate ao racismo que engloba sete ministérios, além da Seppir, foi de R$ 64,73 milhões. Do total, R$ 58,76 milhões foram pagos, sendo que R$ 36,63 milhões são de restos a pagar. Em 2013, o valor autorizado foi de R$ 76,06 milhões e R$ 58,7 milhões foram pagos, dos quais 38,18 milhões foram de restos a pagar. Em 2012, foram R$ 105,5 milhões autorizados e R$ 12,8 milhões pagos. O levantamento foi feito pelo Contas Abertas a pedido do Correio.

Vítima

O contador Kim Fortunato, 23 anos, que já recebeu indenização após ser vítima de racismo, acredita que um canal de denúncias incentiva a população a não tratar o crime como algo normal. Para ele, proporciona um panorama base para políticas públicas. Fortunato diz que ter um canal de denúncia é essencial para a sociedade receber um “feedback” de como está a situação e para o estado avaliar como responder a elas.

Ele conta que já foi vítima de preconceito várias vezes, mas somente uma delas o levou a denunciar. Fortunato relata que foi ao banco fazer um depósito e surprendeu-se com uma série de perguntas de uma funcionária. “Ela começou a separar as notas e me perguntar de quem era o dinheiro, como eu tinha conseguido e quanto era a quantia”, conta.

Fortunato entrou com uma ação contra a funcionária e o banco. Com a causa ganha, em fevereiro deste ano, ele recebeu indenização de ambos. A penalidade aplicada a eles, entretanto, foi a prevista nos casos de injúria racial, com penas mais brandas que o racismo, considerado crime imprescritível. “As penas da injúria são brandas. O racismo não é como uma multa de trânsito. Paguei e estou livre”, diz.


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