Alguém realmente gosta de se expor ao que lhe é estranho?
por Guilherme Spadini,
Como qualquer outro animal, o ser humano deveria ser programado para evitar o diferente, tido como ameaçador. Sendo bem mais do que apenas um animal, sabemos que é possível escapar a essa tendência e apreciar a curiosidade e o estranhamento. Seres humanos são notórios por inovar, abrir-se a experiências, arriscar. E, mais surpreendentemente ainda, aprendemos a reconhecer no diferente um valor. É a chamada alteridade.
Porém, devagar. Voltemos à questão de que fugir do que é diferente deveria ser um pressuposto básico de um organismo biológico. De fato, as pressões evolutivas que moldaram todos os seres conhecidos resultam, justamente, no desenvolvimento de mecanismos para reconhecer ameaças e escapar delas. Ou, em armas para dominar o campo de batalha. Nosso instinto mais primordial é temer e odiar o que parece diferente.
O ser humano tem uma capacidade cognitiva ímpar. Tanto a razão, quanto as mais nobres emoções (empatia, amor), nos destacam da simplicidade animal. Mas, não acredito que possam anular a realidade física da natureza. Ainda somos programados para reproduzir, reconhecer padrões, ter medo, e lutar desesperadamente, com unhas e dentes, para sobreviver.
Por isso, ninguém ama o diferente. Ninguém ama o que é estranho, desconfortável, difícil de compreender. Ser assim programado, instintivamente atraído pelo diferente, sem se preocupar com o que pode haver de ameaçador, é uma impossibilidade natural. Ou, melhor, é uma das possibilidades que surgiram e surgirão na história evolutiva, apenas para serem precocemente destruídas no processo de seleção natural – portanto, é uma impossibilidade entres as espécies bem adaptadas.
Então, o que estou dizendo? Que é impossível a tolerância? Que a alteridade é um falso valor? Uma quimera, uma ilusão? Muito pelo contrário. Afirmo que é impossível amar o diferente para tentar trazer à tona o verdadeiro sentido da alteridade enquanto um valor.
A possibilidade de amar a humanidade como um todo, de aceitar e respeitar as diferenças culturais e de opinião, de viver em uma sociedade verdadeiramente inclusiva, não pode depender de um questionável amor pelo diferente, mas de um custoso aprendizado sobre o que é, de fato, ser diferente.
Será que cor de pele faz alguém ser diferente? Preferência sexual? Religião? Repito: é impossível amar o diferente. Mas é possível reconhecer o semelhante naquilo que parece diferente apenas na superfície. O amor pela humanidade deve ser direcionado a algo de essencial que nos faz humanos, e não ser limitado por detalhes que são apenas contingenciais. Ninguém é essencialmente uma etnia, uma crença, ou uma afiliação política. Tudo isso são só acasos, coisas que aconteceram de ser. A paixão com que um homem se apega a uma ideia (mesmo que seja diferente da minha), o amor de uma mãe por um filho (mesmo que de uma outra etnia), a tontura inebriante do romance (sejam quais forem os gêneros envolvidos), são características essenciais da humanidade, e são essas que valem a pena serem amadas.
Eu falo em custoso aprendizado porque, infelizmente, é exatamente assim que tem de ser. Estranhar as diferenças não precisa ser ensinado. Herdamos isso do processo evolutivo. Estudos mostrando que crianças respondem mais favoravelmente a rostos pertencentes à mesma etnia apenas confirmam o óbvio.
Vem justamente daí o valor da alteridade. A única forma de aprender a diferenciar o contingente do essencial é estar exposto à toda a fascinante diversidade das expressões humanas. Quando nos expomos a poucas coisas diferentes, corremos um risco maior de confundir uma característica isolada com uma diferença fundamental. É assim que nasce a intolerância. No entanto, quando aceitamos a alteridade como um valor, e passamos a nos esforçar para estar mais e mais em contato com o outro, fica muito mais difícil tomar uma ou outra característica como a fundamental. Aprendemos a reconhecer que todas as diferentes formas pela qual a natureza humana se expressa ainda correspondem, apenas, à nossa própria natureza.
Alteridade não é só estar em contato com o outro, mas reconhecer que nós mesmos, individualmente, fazemos muito pouco sentido sem o outro. À primeira vista, isso parece que nos diminui. Há um valor, também, no indivíduo, e necessitar do outro soa ameaçador para muita gente. Mas, o que transforma a alteridade em mais do que um valor, em uma virtude, é que ela não apenas nos leva a tolerar as diferenças, mas a nos reconhecer nelas. “Somos todos iguais” é um lema bobo, falso, pueril. Mas “há algo de igual em todos nós, inclusive nas diferenças” é verdadeiro e libertador. Não se trata apenas de amar a humanidade, mas de ser tão grande quanto ela. Há poucas experiências tão expansivas e alegres quanto essa.
Fonte: Brasil Post
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