Por Douglas Belchior,
Eu havia acabado de postar um vídeo, que só fiz por se tratar do assunto mais grave do país: O escandaloso número de homicídios e do genocídio negro (http://zip.net/bvtKVC). Postei com receio de ter pegado pesado com os primos de esquerda (como eu). Mas em seguida tomei conhecimento da notícia de uma iniciativa que avalio importante: Frente Ampla Nacional Pelas Diretas Já. Li e Desacreditei (http://bit.ly/2rNLIbu). Uma Nota sobre a conjuntura do País e a necessidade de Eleições Diretas (termos com os quais concordo integralmente). 53 assinaturas. 53 organizações. 53 entidades, todas ou quase todas, do chamado “campo progressista brasileiro” ou da “esquerda brasileira”. Dentre elas, nenhuma organização negra. É certo que havia pessoas negras no encontro – vi a foto -, e é certo que cada uma das 53 siglas reunidas, cada uma delas, tem seu cômodo reservado para negros “lá em casa”. Mas ali, representando politicamente o segmento maior, diga-se de passagem, 54% da população brasileira, não, nenhum, nem mesmo as mais tradicionais como MNU, CONEN, UNEGRO, CNAB, CEN, APN’s, CONAQ, entre outras, nenhuma meu pai Oxalá, nada! Nenhumazinha para que eu não me sentisse obrigado a vir aqui escrever esse texto com a dor de quem delata o próprio pai.
Não é possível que à esta altura, os companheiros – e mantenho o gênero masculino aqui propositadamente, porque pelo que vi, apenas duas organizações de mulheres estavam presentes – não se atenham para a importância do debate racial como estruturante dos problemas brasileiros. E antes que algum vermelho caia na tentação coxinha de me acusar de mimimi vitimista, não me refiro ao simples fato de estar ou não na reunião, até porque, pessoalmente, repito, tenho acordo com o conteúdo da Nota e da iniciativa. Ocorre que configura profunda falta de sensibilidade o fato de que, quando se promove ações públicas, debates, mesas, manifestações, a presença negra passou a ser – por conquista nossa – regra. Mesmo que a contra gosto. O medo do constrangimento público, muitas vezes bem maior que a sincera percepção da importância política, leva organizações negras a serem convidadas a participar de desses momentos. Nenhum ato público da esquerda brasileira, nesta quadra da história, será legítimo se não endossado pela presença negra. Artistas negros mobilizam público e criam o vínculo de identidade (conceito tão criticado pelas esquerdas) com o povo e simbolizam resistência política e cultural; Lideranças, militantes e ativistas negras/os legitimam politicamente as atividades e manifestações de esquerda. Eu mesmo, incontáveis vezes, me prestei a esse serviço. Mas o espaço de formulação da macro-política, de debate sobre um projeto de país, a direção e as decisões políticas de fato, continuam territórios de privilégio branco, latifúndio a ser ocupado por negras/os.
Piada infame, diz-se que não há negros nas listas da operação Lava Jato. Se procurar, talvez até encontre no quinto ou sexto escalão da porra toda. Mulheres, quando envolvidas, quase sempre na condição de cúmplices de seus maridos. Reclamação legítima, não por se desejar negras/os no mais alto escalão da criminalidade e da canalhice nacional. Mas por perceber a prova real ao fato de que negros e mulheres não habitam os espaços dos grandes negócios e da jogatina do poder. Triste, mas é isso, em que pese a construção no imaginário coletivo de que bandido, ladrão e traficante espelham o contrário do terno, da gravata e da pele alva. Guardada a medida, mas sem medo de ofender, a mesma lógica se aplica às esquerdas, já que, muito embora a maior parte dos movimentos populares, sindicatos e partidos de esquerda existam em função de causas da população mais pobre, logo, povo majoritariamente preto, suas direções estão muito longe de representar as bases, se não, imaginem: assalariados formais, trabalhadores informais e precarizados, desempregados, domésticas, camponeses, favelados, moradores em situação de rua, entre outros, ou, com o termo que mais contemplam: a própria classe trabalhadora.
Ora, perguntaria um ortodoxo qualquer, porque então não há uma grande organização negra, um grande e estruturado movimento negro no Brasil? Por que não há um movimento que por si só seria lembrado para momentos ricos de formulação de política ou iniciativas nacionais como a reclamada aqui? Por quê? E outro incrédulo responderia: Culpa dos próprios pretos! Sem competência para construir suas próprias organizações representativas, seus próprios sindicatos ou partidos, incapazes de eleger seus representantes, afinal, o que adianta ser maioria desorganizada, não é mesmo?
A miscigenação, a democracia racial e a permanente negação da plena humanidade da gente negra ou, com o termo apropriado: o racismo nu e cru, levou as organizações negras e suas lideranças a serem diluídas nas estruturas brancas, tornando-as – organizações e pessoas – dependentes das estruturas e da benevolência dos brancos. E ainda é assim. Mas não por muito tempo.
É provável que alguém tenha coragem de dizer em voz alta o que sussurram nos corredores, banheiros e reuniões fechadas: isso é divisionismo: “Absurdo que num momento de crise tão aguda e de necessária e unidade dos que lutam, tenhamos q debater coisas menores ou provocar debates desnecessários”. Nesse caso eu teria que lembrar que já convivemos com o “divisionismo” da vida real. Um mundo dividido entre os trabalhadores que nunca tiveram carteira assinada ou que já sofrem há anos com a terceirização do trabalho, ante aqueles que correm o risco de perder isso só agora; o divisionismo dos jovens que reclamam balas de borrachas ante aqueles que silenciam a morte prematura nas periferias ou ainda o divisionismo dos presos políticos provisórios e bem defendidos ante os presos comuns, portadores de pinho sol e excesso de melanina. Ou os dois. Sim, eu devolveria a acusação, lembrando que para gritar “Fora Temer” e “Diretas Já”, palavras de ordem que concordo e à plenos pulmões repito, é preciso estar vivo e livre, condição sobre a qual o divisionismo racial opera radicalmente, vide o Atlas da Violência sobre o qual tratei no vídeo citado acima.
Ainda assim, há quem possa dizer: “O encontro foi aberto! Participou quem quis.” Mas onde fora noticiado? Ou não. O encontro foi fechado para convidados. Movimentos negros não foram convidados? Se foram convidados, porque não estavam? Se não puderam estar, porque não puderam? Nenhuma pôde? São muitas as situações que levam à ausência do seguimento negro nos espaços de poder e decisão. Tais condições estão além da boa vontade de quem promove a ação. A isso chamamos racismo estrutural. Tudo leva à invisibilidade negra, à ausência natural desta representação. Para enfrentar esse fenômeno são necessárias práticas. É sobre isso que escrevo aqui.
Printei. Achei que a qualquer momento alguém iria perceber a insanidade e corrigir o documento. 53 organizações. Apenas duas representativas de mulheres. Nenhuma de pretos/as. Nenhuma indígena. Nenhuma LGBTQIA. E chamam isso de Frente Ampla e Nacional. Mas de qual país?
É possível que a qualquer momento uma ou outra organização negra venha a público tentar mediação ou dizer que houve um engano, que estava presente mas que não foi relatada, que foi convidada mas não pode estar presente ou coisa assim. Não duvido. Mas se forem sinceros consigo mesmo e com a causa que representam, o melhor caminho seria uma articulação unitária de todas as organizações, entidades, coletivos e personalidades negras do país para exigir um novo pacto racial no campo da esquerda. Este termo, cujo qual peço licença à Sueli Carneiro, proferida em sua recente entrevista à revista Cult, quando fala da necessidade de “um novo pacto racial, que destitua as hegemonias que o racismo e o sexismo construíram, e isso é urgente para a esquerda compreender, na medida em que nós não queremos mais que ninguém fale em nosso nome”.
Esse pacto, obviamente, só será possível no campo da esquerda, uma vez que da direita, racista, patriarcal e escravagista nada se espera. Espera-se, isso sim, do lugar de onde somos pela própria natureza, dos que se organizam ao lado dos historicamente oprimidos. No entanto, em uma nova condição, não mais apenas como a massa liderada, tampouco como um grupo que se contenta com a partilha ou a integração, embora nem a isso tenhamos experimentado. O que se almeja nestes tempos é, com as palavras de Érica Malunguinho – essa sim, liderança nata de seu povo (se não conhece, procure conhecer), “o pleno exercício democrático da alternância de poder”. E lá se foram 517 anos. Que venham então, os próximos! Mas o que os primos acham disso?
Sei do custo de posicionamentos como este. Isolamento, desqualificação, ostracismo. Muitos dos nossos viveram isso e, de alguma maneira já experimento esse gosto junto ao partido que milito. E justamente pelo atrevimento de fazer apontamentos semelhantes aos que relato aqui. A História dirá.
Para quem suportou ler até aqui, acho importante que saibam que esse relato é bastante pessoal mesmo. Sou dos que defendem partidos, sindicatos, valorizo e construo as Frentes que hoje dirigem a luta política em nosso campo. Mas não me parece respeitosa a forma como tratam a representação política negra nesses espaços. E digo isso fraternalmente, como alguém que acredita na luta coletiva. Não sou essencialista. Solano Trindade nos ensina: “Nem todo branco é inimigo, nem todo negro é aliado, companheiro é aquele que luta ao nosso lado”. Tenho plena consciência de que a questão racial não dá conta de todos os problemas brasileiros. Mas nenhum problema brasileiro será resolvido se não perpassar por essa questão. Reivindico posições de esquerda, seus pressupostos, seus valores. Humanidade, solidariedade, respeito, cuidado, partilha, justiça, igualdade, diversidade e tudo isso produzido e empregado aos oprimidos pela História, no caso brasileiro, povo negro-indígena, seguido dos pobres de todas as cores. De maneira que me resta dizer aos que heroicamente, e o faço com respeito, se dedicam à construção de uma alternativa popular para o Brasil que, ou a esquerda será negra, ou não será esquerda.
Fonte: negrobelchior
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