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segunda-feira, 5 de junho de 2017

NEGRA BRASÍLIA | Pedro Henrique Sousa Dias - "JOÃO, PEDRO E UMA DÚVIDA DE COR"

Foto: Carlos Moura/CB/D.A Press - Arte: FCLopes/CB/D.A Press

JOÃO, PEDRO E UMA DÚVIDA DE COR

por Conceição Freitas,
Na 10ª parte da série, dois brasilienses contam como é ser quase preto

Eles nasceram na mesma cidade, não se conhecem e vivem em ambientes distintos, um no Plano Piloto e o outro entre o Guará e Ceilândia. Mas há algo que os aproxima fortemente. Um é aluno cotista de medicina na Universidade de Brasília (UnB) da turma de 2005. O outro foi um dos 2.820 recenseadores brasilienses do Censo 2010.

O brasiliense Pedro Henrique Sousa Dias, 20 anos, participou de um Censo histórico. Pela primeira vez na história da demografia brasileira, foi perguntada a cor do entrevistado, na pesquisa universal. No Censo de 2000, a pergunta foi feita apenas a uma parte da população. O resultado dessa contagem de raça/etnia deve demorar de um a dois anos para ser tabulado.

João Ubiratan Veríssimo Nascimento, 24 anos, entrou na UnB em 2005 e já está na fase da residência médica. Oito anos depois de ter sido adotado pela primeira vez pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o sistema de cotas raciais já é utilizado por 77 universidades brasileiras e beneficia 400 mil estudantes. A UnB foi a primeira instituição federal a adotar a reserva de vagas para afrodescendentes. Dos 28.999 estudantes hoje matriculados, 3.303 entraram pelo sistema de cotas. A ação afirmativa que garante acesso de negros à universidade está em julgamento no Superior Tribunal Federal (STF). Não há previsão de que a ação, impetrada pelo DEM, o Partido dos Democratas, seja julgada ainda este ano.

O cotista João e o recenseador Pedro têm em comum uma certa semelhança na cor da pele e uma quase mesma dúvida: são pretos ou são pardos? Também compartilham de idêntica experiência de alteridade: é o outro quem os vê, quase sempre, como negros. Nesta página, cada um deles conta como é ter a pele quase negra num país de mestiços e como foi para um perguntar a cor de brasilienses moradores de Ceilândia, e como é para o outro ser um cotista no curso de medicina da UnB.

"Não tenho dó de tinta"
João Ubiratan Verissimo Nascimento, 24 anos, brasiliense. Mora no Plano Piloto, é cotista da UnB no curso de medicina

Nasci em Brasília, em outubro de 1986. Fui criado na Asa Sul, meus pais são funcionários públicos. Meu pai é da minha cor, só que um pouco mais claro. A maioria das pessoas diz que ele é moreno, negão. Minha mãe é mais clara, mas gosta de se considerar negra. Meu pai gosta de exaltar uma descendência francesa que ele acha que tem [risos]. Tenho duas irmãs, sou o mais moreno de todos.

Brinquei muito no Parque da Cidade. Me lembro de andar de bicicleta com minha mãe e de jogar bola nas quadras da Asa Sul. Minha mãe conta que quando eu estava no maternal, ela estava conversando com uma amiga e a filha dela estava junto. Eu peguei na mão da menina e disse assim: ‘A sua mão é rosinha, e a minha não é. Só é se eu virar assim’ e virei a palma da mão para cima. Minha mãe diz que foi a partir desse momento que eu comecei a perceber que não era igual aos outros, que era um pouco diferente. Ela conta que quando a gente ia para o parque, eu saía correndo e quando chegava aos brinquedos os pais recolhiam seus filhos achando que eu era menino de rua.

Nunca me incomodei com apelidos, mas sempre me apelidaram por causa da cor da pele. Era sempre de acordo com o personagem que estivesse na televisão.Cirilo, do Carrossel, Tiziu, da novela das seis, Tião Macalé e Mussum, de Os Trapalhões. Eu não me ofendia. Não ligava pra esse tipo de brincadeira, fazia de conta que não era comigo.

Entrei na UnB [Universidade de Brasília] em 2005, numa das primeiras turmas de cotas. No começo, quando a gente via uma pessoa mais escura na universidade era um africano dos programas de intercâmbio cultural. Hoje você passeia pela univesidade e vê que ela está mais colorida.

As cotas não vieram para facilitar, vieram para garantir o acesso aos negros. Eu, por exemplo, tirei uma nota que me garantia tanto num sistema quanto no outro, mas como eu havia optado pelas cotas, entrei por elas. Quando fiz cursinho, havia um falatório muito grande em relação às cotas. Mas aqui dentro [da UnB] isso não existe. E, por incrível que pareça, a universidade é o único lugar onde não sou apelidado pela cor.

O brasileiro tem o preconceito dentro dele e é muito difícil de ele admitir isso. Porque é preciso analisar o que você anda fazendo, o que anda dizendo, como é que você age ou deixa de agir. Quem pratica o preconceito não percebe. Eu sou muito vítima dele. Quando, por exemplo, estou andando numa calçada e alguém vem vindo em minha direção, me vê e atravessa a rua. Se eu estiver de bermuda e chileno, pode esperar. Nos lugares que frequento [no Plano Piloto] sou o único ou um dos poucos da minha cor ou parecida. Aí olho e penso: ‘Pô, não tem mais ninguém da minha cor’. Por isso digo que a UnB é uma ilha de democracia racial.

Pretendo fazer residência em clínica médica e atender como clínico-geral. Quero trabalhar no interior porque Brasília é muito cara e no interior você recebe um pouco melhor, gasta menos e pode fazer um pé de meia. Devo ficar só no serviço público mesmo. Como um professor disse, temos que dar a nossa mão de obra, a nossa força de trabalho, para quem mais precisa. Não acho que Brasília seja mais preconceituosa que outros lugares. Já viajei bastante, Cuiabá, Rio, São Paulo, como turista. Não adianta. Em todo lugar é do mesmo jeito, não muda.

Aqui na UnB, cotista acaba ficando amigo de cotista. Às vezes, eles se relacionam sem saber que são cotistas. A maioria dos meus amigos é cotista, a gente tem mais afinidade. Tem garota que diz: ‘Você é moreninho, não é preto’. Eu digo: ‘Não precisa ter dó da tinta, não’. O povo tem medo de te chamar de preto. Eu me sinto negro, sou tratado como negro, porque é que eu vou ficar no meio-termo? Vou ficar com dó da minha própria tinta? [risos].

"Pardo é muito sem graça"
Pedro Henrique Sousa Dias, 20 anos, estudante de curso técnico. Nasceu em Brasília, mora em Ceilândia e no Guará, na casa do pai e na casa da mãe

Fui recenseador do IBGE no Sol Nascente [condomínio de baixa renda em Ceilândia]. Quando chegava a hora de perguntar a cor, muita gente olhava para mim e devolvia a pergunta: ‘De que cor você é?’. Eu não podia induzir a resposta, não podia dar opinião nem ajudar, mas os caras ficavam me olhando. Eu dizia: ‘Você tem que escolher: branco, pardo, negro, indígena, amarelo’. Eles paravam…, me olhavam e pediam: ‘Repete’. Eu repetia. ‘Branco, pardo…’ Aí desenvolvi uma fórmula para sair da situação. Eu dizia: ‘Não sou amarelo porque não sou descendente de asiático, não sou indígena porque não tenho ascendência indígena, sou escuro demais para ser branco e sou branco demais para ser negro, aí sou pardo’.

Se fosse pra eu decidir, a maioria das pessoas que eu entrevistei era parda, mas a maioria escolheu branca e só o negro negro mesmo escolheu negra. Muitas vezes toda, a família estava em casa. Aí você olhava e via que os mais velhos eram geralmente mais escuros e os mais novos vinham desbotando. Eles ficavam se perguntando: Branco? Pardo? E eu esperando.

Tenho uma irmã que diz que tenho duas opções: posso ser ou um branco encardido ou um preto desbotado. No 2º grau todinho, eu era o negão da sala. Quando fiz trança pela primeira vez, uma professora ficou brincando: ‘Rapaz, você está um show de africano’. Meus amigos sempre brincam comigo, pensando bem, brincadeira até racista, mas como é amigo, fica na intimidade. Eles me chamam de ‘negão’ e eu os chamo de ‘branquelos azedos’.

Na minha casa, sou o mais moreno. Nasci em Brasília, mas fui criado pela minha mãe em Barretos, São Paulo. Lá a maioria das pessoas era mais clara do que eu. A maioria das pessoas que eu conheço me entendem por negro. Os brancos me acham negro e os negros ficam me tirando: ‘Ah! Essa coisa branca querendo ser negro, essa coisa amarela, indefinida’.Eu nunca me declaro branco, não faz sentido eu me declarar branco, sou pardo ou negro. Mas pardo é muito sem graça [risos]’. Minha mãe conta que quando era pequeno chorei porque queria ser branco, queria ter o olho azul. Cheguei da escola chorando porque a menina que eu gostava era branquela.

Quando eu tinha 13 anos, a coisa virou. Cheguei pra minha mãe e disse: ‘Pô, queria ser negão. Essa coisa indefinida é uma sacanagem’. Tenho dois irmãos negões, são filhos do meu pai com duas mulheres negras. Eu sempre cortei o cabelo curtinho. Ele é bem cacheado, então passava a máquina 2 ou 3. Aí uma vez eu relaxei e o cabelo cresceu e meus amigos sugeriram: ‘Pô você ia ficar massa de trancinha. Aí comecei a trançar. Tenho preguiça de cuidar do cabelo, trança é mais prático. No começo, eu botava uns barbantes cheios de fios e de linhas.Quando estou de trança é mais fácil de a pessoa me identificar como negro.

Tem gente que diz pra eu ir para a Europa, porque lá eu sou negão e aqui sou encardido. Eu sempre me lasco na brincadeira da cor. Já reparei também que quando eu entro em banco ou em algum lugar muito social as pessoas costumam dar uma olhada meio torta, mas eu não estou nem aí. Já me acostumei. Nunca cheguei a me angustiar com essa coisa de pardo ser negro, mas fico meio perdido.

JOAQUIM NABUCO - 1849/1910
É preciso mais do que a cessação do sofrimento ou da inflição do cativeiro para converter o escravo e o senhor em homens animados do espírito de tolerância, de adesão aos princípios de justiça mesmo que sejam contra nós, de progresso e de subordinação individual aos interesses da pátria, sem os quais nenhuma sociedade nacional existe senão no grau de molusco, isto é, sem vértebras nem individualização. 
(O abolicionismo, Editora UnB, 2003, página 215)

Fonte: Correiobraziliense

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