Foto: Carlos Moura/CB/D.A Press - Arte: FCLopes/CB/D.A Press
TERREIRO PODE VIRAR PATRIMÔNIO
Por Conceição Freitas,
Na 9ª parte da série, Railda Rocha Pitta conta como nasce uma mãe de santo
Se a burocracia apertar o passo, ainda este ano o terreiro de mãe Railda, o Ilê Axé Opô Afonjá — Ilê Oxum, será tombado como patrimônio cultural de Brasília. Caso contrário, a decisão ficará para os próximos superintendentes do Iphan [Instituto de Patrimônio Artístico e Histórico Nacional] no Distrito Federal e em Goiás. “Mãe Railda é a mais antiga e mais importante mãe de santo da cidade. Ela é o expoente da religião afro-brasileira na cidade”, diz o arquiteto Alfredo Gastal, superintendente do instituto. A capital criada pelos ventos modernistas não escapou de ser influenciada pelas religiões de matriz africana.
Conseguir tombar um terreiro de candomblé pode parecer uma conquista plausível, aos olhos de hoje, mas o Iphan teve uma luta histórica para em 1985 aprovar, pela primeira vez, o tombamento de uma casa de culto afro-brasileiro, o terreiro de Casa Branca, em Salvador (BA), um dos mais antigos do Brasil. “Quando o Iphan fala em patrimônio está falando em patrimônio de todo o povo brasileiro e não apenas da elite, que é uma visão que veio até os anos 1970/1980, mas que já mudou”. O tombamento do terreiro de mãe Railda, que fica em Valparaíso de Goiás, protege o sentimento de nacionalidade brasileira. “Raros somos os que não temos algumas gotas de sangue negro de nossos antepassados. A cultura brasileira é fortemente influenciada pela cultura negra. O Iphan tem que prestigiar a nossa negritude e mãe Railda talvez seja o exponente mais importante de Brasília associado às religiões afro-brasileiras.”
RAILDA ROCHA PITTA, baiana de Salvador, 72 anos, mãe de santo, mudou-se para Brasília em 1962 e desde 1968 tem um terreiro de candomblé em Valparaíso
Meu pai era alfaiate e minha mãe, dona de casa. A casa onde eu morava tinha um porão e nele vivia uma africana que usava muitas joias. Ela me deu meu primeiro banho. Pôs todo o ouro dela numa bacia, botou alfazema, alecrim, água de cheiro e me banhou. Minha mãe ficou um ano recolhida na camarinha*. Quando saiu, meu pai tinha arrumado outra mulher.
Quando completei 7 anos, minha mãe vendeu nossa casa e fomos morar no Rio de Janeiro. Como ela tinha que trabalhar, me botou numa casa de candomblé, que era uma creche. E ia vender cocada e acarajé na porta da fábrica da Brahma, na Marquês de Sapucaí. Nessa casa de candomblé aprendi a cantar, a dançar, a rezar, a fazer acarajé, abará, aprendi tudo.
Quando completei 12 anos, Oxum me pegou pela primeira vez. Como minha mãe não queria que eu fizesse o santo, ela me botou no colégio interno. Ela tinha sido muito infeliz no candomblé. Ela culpou o santo pela separação do meu pai. Eu estava muito doente, havia perdido o emprego, estava noiva, com vestido de noiva comprado, mas Oxum emperreou que não queria que eu me casasse antes de ser iniciada.
Minha mãe me levou à mãe Agripina, que jogou os búzios pra mim: ‘Xangô disse que está esperando sua filha há muito tempo. A ordem dele é ela nem voltar mais com você. E tem que fazer enxoval como se ela fosse se casar. Eu já tinha enxoval para o casamento que se desfez. A roupa de Oxum, da minha primeira saída, foi o meu vestido de noiva.
“Você vai sofrer muito”
Fui recolhida com as outras iaôs*. No terceiro dia, mãe Regina Bambochê chamou todos pra fazer o jogo de iaô. Quando chegou a minha vez, ela disse: ‘Olhe, minha filha, a sua caminhada é muito longa. Você vai sofrer muito. Vai ser muito traída, muito perseguida, vai sofrer muita ingratidão, mas nunca abra a boca para falar mal do seu santo, porque um dia sua vida vai mudar. Você vai ser muito famosa.’
Meu sofrimento começou naquele dia. Eu sempre cumpria minhas obrigações, presente em tudo no candomblé. Mas minha mãe ficou muito enciumada. Depois que fiz o santo, ela me botou de casa pra fora, mandou eu ir morar no candomblé.
Eu estava desempregada, quando Juraci, minha irmã de santo, foi convidada a vir para Brasília, ficou com pena e conseguiu uma nomeação pra mim. Cheguei a Brasília em 23 de maio de 1963. Fui morar num alojamento na 304 Sul e fui trabalhar no Hospital de Base como atendente de enfermagem.
Três anos depois, Juraci e eu fomos a uma festa no Rio de Janeiro e encontramos mãe Agripina muito doente. ‘Eu queria tanto ir com você para Brasília. Estou com catarata, não enxergo quase nada. Estou abandonada nesse sofá velho’. Minha irmã Juraci foi perguntar a Xangô se poderíamos trazê-la para Brasília. Ele jogou os búzios e falou: ‘Tia Agripina, Xangô disse que a senhora pode ir para Brasília. A senhora vai operar as vistas, mas quando a senhora estiver enxergando terá que voltar para o candomblé, porque a senhora não pode abandonar o axé.’
E eu vim de ônibus com mãe Agripina. Ela tirou o Xangô de dentro do axé e eu vim trazendo ele. O primeiro Xangô-Opô-Afonjá pisando nessa terra de Brasília veio trazido por mim e por ela. Quando chegamos aqui, botamos ele dentro do armário no alojamento da 304 Sul.
Nove meses depois, mãe Agripina recebeu um recado do Rio de Janeiro: era pra ela voltar. Mas ela não queria ir, se revoltou, abriu a porta do armário [onde estava o assentamento] e falou: ‘Olhe, Xangô, meu pai, eu conheço a sua ira. O senhor vai me matar, mas eu só volto para o Rio de Janeiro morta.’
Depois disso, ela se deitou e, mais ou menos à meia-noite, acordou com falta de ar. ‘Me leve no banheiro que eu vou morrer’. Voltou e, pouco depois, disse assim: ‘Que Xangô pague a vocês os nove meses de felicidade que vocês me deram’. Quando ela terminou de falar, Xangô pegou ela. Arrrhhhhhh. Ela se levantou da cadeira, botou a mão pra trás, se peneirou, abraçou Juraci, me abraçou e Xangô jogou ela morta em cima do meu peito.
Minha mãe Agripina morreu em 1966. Dois anos depois, ganhei essa roça [onde fica o terreiro]. Isso aqui era só cerradão. Quem me deu essa roça foi um filho de santo de mãe Agripina. Meu começo aqui foi de muito sacrifício. Quando senti o peso da responsabilidade de ter um terreiro de candomblé, larguei tudo e fui pra Salvador.
“Minha mãe Menininha”
Pedi minha transferência no serviço e fui. Cheguei na Bahia numa sexta-feira, 13 de agosto de 1971. Quando foi 11 de agosto de 1972, tive que voltar. Xangô botou o pé em cima do meu gogó e disse: ou volta ou morre. Comecei a ficar doente, comecei a brigar com a chefe de enfermagem. Meu Exu botou fogo na casa da minha tia. Minha vida virou um cão. Corri no Gantois. Cheguei lá chorando: ‘Minha mãe Menininha, eu queria que a senhora abrisse um jogo pra mim.’
Quando ela abriu o jogo, falou: ‘Seu tempo na Bahia acabou, Railda. Você tem uma missão a cumprir em Brasília, você foi escolhida por Xangô pra ir pra Brasília. É você quem vai socorrer o povo de lá. Não teime com Xangô. Outra coisa: você não vai se casar.’ Eu tinha um namorado, mas Xangô disse: ‘Ou ele ou eu.’
E mãe Menininha: ‘Eu vejo você, minha filha, com uma casa muito bonita que Oxum está me mostrando’. ‘Mas, minha Mãe Menininha, lá não tem casa, lá só tem cerrado e um barraco no fundo do quintal’. ‘Eu lhe dou duas figas, minha filha, porque você vai ficar tão famosa em Brasília quanto Menininha do Gantois, não dou dez anos. Porque nós somos de uma Oxum rainha. Volte pra Brasília, não fique na Bahia. Não teime com Xangô. Você não conhece a ira dele. ‘Eu conheço, mãe Menininha, ele matou minhã mãe de santo em cima de mim.’
Vim embora. Cheguei aqui, tinha uma casa de taipa que meu irmão tinha feito, mas não estava terminada. Voltei numa sexta-feira, 11 de agosto de 1972.
Tenho muito orgulho de ser negra, de ser baiana, de ser iniciada no Axé-Opô-Afonjá, que é um axé de tradição, de muita hierarquia, muita ordem. E Xangô é o patrono desse axé. Nós não nos governamos, nós só fazemos tudo o que Xangô determina. Xangô é o ar que respiro. E graças a Deus, sou bem recebida em todos os lugares, mesmo sendo negra. Mas já sofri discriminação. Quando trabalhei no INPS, tive um chefe que era racista. Ele me perseguiu muito. Um dia, ele perguntou ao homem que havia me dado o emprego: ‘Por que você nomeou aquela negra?’. Tive outro chefe que me chamava de negra macumbeira. O pessoal de Brasília é muito preconceituoso. Funcionários de alto escalão têm muito preconceito com gente preta.
Graças a Deus tenho grandes amigos que são negros e estão no poder. E que defendem a nossa cor, defendem a nossa raça. Tenho até um título de cidadã valparaisense. Estou aqui há 41 anos. Aqui em casa todo mundo é da cor.
JOAQUIM NABUCO - 1849/1910
O que mais me pesava era ter que me separar dos que tinham protegido minha infância, dos que me serviram com a dedicação que tinham por minha madrinha, e sobretudo entre eles os escravos que literalmente sonhavam pertencer-me depois dela.
(Minha Formação, Editora UnB, 1981, página 134)
Fonte: Correiobraziliense.
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