Mariana foi aprovada para mestrado na Suíça (Foto: Arquivo pessoal)
Tataravó de Mariana, de Campinas, foi escravizada até os 29 anos, e dedicou o restante da vida para que as futuras gerações tivessem acesso ao ensino.
Por Murillo Gomes,
A história da família da jornalista Mariana Alves Tavares, de Campinas (SP), pode se resumir à palavra educação. Filha de um vendedor e uma recepcionista, neta de professor, bisneta de funcionária pública e tataraneta de escrava, a jovem, de 24 anos, foi aprovada para o mestrado em antropologia e sociologia do desenvolvimento em universidade de Genebra, na Suíça, e será a primeira geração a sair do Brasil para estudar e contar a história da família.
“Eu considero que os méritos do que eu estou tendo hoje são mais méritos dos meus antepassados do que meus. Eles lutaram para transpor as barreiras históricas raciais e sociais para que eu tivesse a oportunidade que eu tenho hoje”, diz Mariana.
A jovem trabalhou na Organização das Nações Unidas (ONU), em Brasília (DF), e já esteve em Genebra para dividir experiências com afrodescendentes de diferentes países. Com toda a bagagem e o que ainda está por vir, Mariana diz que a intenção é olhar para o Brasil de forma a entender por que questões raciais ainda interferem na evolução do país.
“Não dá para desenvolver um país desenvolvendo uma parcela pequena da sociedade, quando a maioria populacional é considerada minoria em acesso aos direitos”, afirma.
Sua tataravó, Sebastiana Sylvestre Correa, nasceu em 1859, em Minas Gerais. Ela foi escravizada até os 29 anos, quando a Lei Áurea a alforriou em 1888. Mãe de oito filhos, Sebastiana nunca aprendeu a ler ou escrever, mas lutou para que suas futuras gerações tivessem acesso à educação.
“A minha bisavó e as irmãs dela ganharam bolsas de estudos e conseguiram estudar. Ela [tataravó] tem um nome, um sobrenome. Ela foi muito mais do que isso, não apenas uma ex-escrava”, exalta Mariana.
Sebastiana Sylvestre Correa, tataravó de Mariana (Foto: Arquivo pessoal)
Com duração de dois anos, o mestrado no Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais (Graduate Institute of International and Development Studies, em inglês), previsto para começar em setembro, tem um valor aproximado de R$ 13,5 mil por semestre. Mariana recebeu bolsa de 75% para a mensalidade [leia mais abaixo], além de auxílio integral dos custos de vida na Suíça.
A família da jovem não consegue bancar as despesas restantes, que seriam em torno de R$ 10 mil para o primeiro ano de estudos. Ela criou, então, a campanha “Mestrado da Mariana no Graduate Institute” em uma plataforma de financiamento coletivo, onde já superou o valor pedido para bancar, além das taxas da universidade, uma passagem só de ida à Genebra.
“O valor que eu ganhar a mais vai cobrir essa diferença de câmbio, e também vai me ajudar a ter um dinheiro emergencial, porque o valor que eu coloquei não me dá nenhuma margem de erro”, explica.
Mariana Alves Tavares, de Campinas, é tataraneta de escravos (Foto: Arquivo pessoal)
Estágio na ONU
Antes de chegar ao mestrado na Suíça, no último ano do curso de jornalismo na Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Bauru (SP), a então estudante foi aprovada em um estágio no Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (Unaids) em uma agência da Organização das Nações Unidas (ONU), em Brasília, e se mudou para o Distrito Federal.
Neste período, faltando um semestre para a conclusão da faculdade, ela precisou conciliar o trabalho na capital do país com os últimos projetos universitários, além do tempo dedicado à venda de semijoias para complementar a renda.
“Eu sabia que a condição financeira da minha família de arcar com os custos de viver em Brasília, que é uma das cidades mais caras do país, seria algo complicado […] Foi um esforço [vender joias], mas que não atrapalhava a minha dedicação no estágio, que era algo que eu levava como uma oportunidade para a minha família”, relembra Mariana.
No fim de 2015, a jornalista recém-formada foi contratada por outra agência da ONU em Brasília, onde trabalhou por cerca de mais um ano.
“Trabalhar na ONU foi uma experiência incrível. Eu escolhi jornalismo porque me interessa muito o papel que a comunicação pode exercer na vida das pessoas […] Isso me fez ter certeza da carreira que eu quero seguir, de trabalhar com direitos humanos”, afirma Mariana.
Mariana em visita à sede da ONU, em Genebra (Foto: Arquivo pessoal)
Experiência na Suíça
No período que viveu em Brasília, Mariana se inscreveu para o Fellowship for People of African Descent, programa da ONU que oferece aos participantes a oportunidade de fazer uma apresentação sobre questões como direitos civis, políticos e sociais de pessoas afrodescendentes de seus respectivos países.
Aprovada, surgiu assim a primeira oportunidade de Mariana visitar a Suíça, em novembro do ano passado.
“Era uma apresentação aberta na sede da ONU para todos os funcionários das Nações Unidas. Essa pressão de falar sobre um tema envolvendo algo sobre o seu país, além de tudo em inglês, era uma coisa que me trazia muito medo, porque era um peso muito grande”, relembra.
Mariana, quarta da esquerda para a direita, durante encontro com participantes do Fellowship (Foto: OHCHR)
Orgulho
A maneira que ela encontrou para encarar a apresentação foi contando a trajetória de sua família.
“Uma família afro-brasileira com dedicação à educação e [contei] como, através dessa educação, a gente teve as oportunidades de acessos aos espaços que a gente tem hoje, mas que infelizmente essa realidade não representa o todo do país, porque o Brasil ainda é um dos países mais desiguais do mundo”, diz Mariana.
Da mesma maneira, em duas cartas, ela contou sua história para ingressar na Graduate e conseguir as bolsas para se manter na Suíça.
“Em uma delas eu falei sobre a minha experiência na ONU e por que eu queria fazer o mestrado no Graduate com foco em antropologia e sociologia do desenvolvimento. Na outra carta eu tinha que falar por que eu precisava de apoio financeiro da universidade, e foi nessa que eu contei a história da trajetória da minha família e do por que eu estava tendo essa oportunidade que eu sonho em ter”, conta.
Em 1959, Correio Popular, de Campinas, contou a história da tataravó de Mariana, Sebastiana
(Foto: Arquivo pessoal)
Aplicando a mudança
Ela conta que tentou desde cedo não se deixar abalar pelo racismo, mas relata que vivenciou momentos que a fazem acreditar que, mesmo com o fim da escravidão, o Brasil ainda não passou por uma “mudança efetiva quando se trata da questão afrodescendente”.
“Uma pessoa afrodescendente no Brasil é cerceada de inúmeros direitos […] Ainda há muita desigualdade, ainda há muita discriminação no dia a dia, no trabalho, nos estudos, na saúde, na política”, diz Mariana.
Aguardando a chegada do visto, ela planeja seguir carreira dentro das Nações Unidas, onde, no futuro, quer trabalhar com cooperação e desenvolvimento internacional.
“Eu considero que o desenvolvimento de um país está muito além da questão política e econômica. Existem ainda questões culturais, históricas e sociais que interferem tanto quanto no desenvolvimento daquele local […] Isso é um dos fatores do porquê eu escolhi esse curso”, finaliza.
Fonte: G1.
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