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segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Superando um jogo que já começa desigual


por Basilia Rodrigues*,
Que o preconceito existe, isso é fácil de perceber. Que o preconceito pode estar dentro de quem sofre preconceito, parece uma característica do personagem principal que, como muito figurante, nem sempre é percebida. E talvez nunca seja notada por ele mesmo.

A historia aqui tem realmente um personagem. Ele tem 30 anos, mora em Ceilândia, é negro, tem orgulho de si. Nem por isso deixa de ser uma pessoa preconceituosa. Mas por quê? Com quem?

Os preconceituosos reúnem algumas características similares. Eles classificam, selecionam, rotulam e são seres humanos.

“Por que vou fazer isso, se isso é coisa de branco?” … “Por que vou fazer isso, se isso não é coisa de negro?”

Depreende-se então dessas afirmações que há coisa de branco e coisa de negro. Consequentemente, há coisas que não são de branco e coisas que não são de negros. Nesse jogo de separação, as tais coisas se misturam, se confundem, e podem fazer muito mal para quem é o alvo do preconceito.

Ele, o nosso personagem, ajuda a comunidade. Vale dizer, uma das palavras que ele mais gosta de falar: c-o-m-u-n-i-d-a-d-e. Vamos ressaltar um sentido comum dessa palavra: é para falar daquilo que é comum entre si. Carismático, inteligente, descolado, virou líder c-o-m-u-n-itário. Seu lado bom inspira, agrega. Organiza projetos destinados a jovens que levam música, cultura, assistência, afetividade. Seu outro lado afasta, aumenta o abismo entre os diferentes. Reduz o combate ao preconceito ao reforçar esteriótipos.

“Mais eu não dou valor a isso”, responde ironicamente ao ser alertado sobre o erro entre “mas” e “mais”. “Mais é advérbio de intensidade. Mas é advérbio de adversidade”, seu interlocutor insiste. “Mais eu moro em Ceilândia e é assim que o jovem pobre da favela fala”, resiste. “O povo de Ceilândia é bom, é humilde, trabalhador, e não precisa saber da diferença entre ‘mas’ e ‘mais’, entendeu?”

Não. Não entendi. Como uma coisa exclui a outra? Se a pessoa fala corretamente, ela é ruim, pouco humilde, desocupada? Da mesma forma, se a pessoa fala corretamente, ela faz menos parte dessa comunidade? Assim como sabemos que o preconceito existe, sabemos que a falta de qualidade na educação no país também existe. Exigir de um adolescente com problemas na escola ou em casa ou nas ruas que saiba a gramática do início ao fim é algo mesmo desproporcional. Ele está preocupado com os pais brigando, talvez já tenha noção das contas atrasadas, pode não ter tido incentivo para estudar. Desejar que esse mesmo adolescente tenha oportunidades é o mínimo.

Mas, atenção. O nosso personagem, esse mesmo que insiste no erro, sabe muito bem a diferença de “mas e “mais”.

Antes de completar 20 anos, ele havia passado no vestibular da UnB, era cotista e ajudava outros jovens de baixa renda – essa atuação foi parte de sua estréia nos movimentos sociais. Anos depois, decidiu abandonar a UnB. “Eu não queria ser como eles”, afirmava. “Como?”, era perguntado. “Imbecis”, respondia. “Mas formado você não poderia ajudar mais a sua comunidade?”, insistiam. “Lá vem essa besteira. Talvez um dia eu volte”, disfarçava o lamento. “Sei que consigo”, gabava-se. “E por que não volta?”, a pergunta o irritava. “Porque eu não preciso disso para viver com meu povo em Ceilândia”, classificava, rotulava, diminuía-se. E ao dizer isso, levava consigo toda a comunidade que se orgulhava em ajudar. Mas não via isso.

O jogo começa desigual. Tem o jovem do gueto e o jovem do centro, no caso de Brasília, o jovem do plano piloto. Se não valorizar chances, nenhuma vai te valorizar. Nesse jogo, quem está com vantagem, corre. Das boas escolas, o destino de quem teve mais acesso à educação, saúde e conforto, é chegar mais facilmente aos bons empregos. Quem parte com desvantagem, também corre … dobrado: para igualar a posição e para passar na frente. Esse cenário torna ainda mais preocupante a revolta de um jovem do gueto que se recusa a falar corretamente o “mais” e o “mas” para se parecer menos com os outros e mais com o jovem de Ceilândia.

Dessa forma, o jovem do gueto não é autorizado nunca \ evoluir porque acredita que existem as coisas dele, e as coisas dos outros.

Por que insistir no erro? O “mas” e “mais” é só um exemplo leve.

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*Basilia Rodrigues é jornalista, pesquisadora e observadora.

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