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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

O que aprendemos neste carnaval? Carta aberta ao pai do menino Mateus


Carta aberta a meu amigo Fernando Bustamante

Passou o carnaval, passaram as cinzas, mas as marcas do fogo que nos queimou nos últimos dias ficarão por muito tempo. Tenho estado muito incomodada, como muitos, com a situação envolvendo meu amigo Fernando Bustamante e sua família. Sim, ele é meu amigo. O que me deixa em lugar muito desconfortável, pois tenho dedicado os últimos anos da minha vida a estudar a arte e as culturas negras no Brasil. Mas é isso, o racismo é desconfortável, e por isso não posso me abster de declarar o que penso; tenho sido solicitada tanto pelos nossos amigos em comum quanto pelos meus amigos que lutam pela causa nos movimentos sociais. Então, trago aqui algumas reflexões, que já enviei individualmente ao Fernando, para que possamos refletir juntos sobre tudo isso que nos transtorna. Escreverei diretamente à pessoa dele, pois me sinto, como amiga, à vontade para falar o que precisa ser dito, mesmo que doa, com respeito e carinho, acreditando que os erros nos fazem crescer. Vamos lá.

Caro amigo,
uma vez, quando trabalhamos juntos, você me corrigiu bruscamente por um erro que cometi, lembra? Para dois virginianos que somos, a correção é o melhor caminho para a perfeição. Nunca mais cometi aquele erro. E devolvo agora o mesmo ato, corrigindo um erro grave que você cometeu, no desejo de que não cometa mais o mesmo. No estilo “senta lá, Cláudia” que certa apresentadora falou pra uma participante de seu programa de TV, e escute o que vou dizer.

Durante todo nosso percurso na faculdade de Teatro, nunca, em nenhum segundo, ouvi falar de Abdias do Nascimento, do Teatro Experimental do Negro, de Mercedes Batista…nem você, não é?! Tivemos uma formação que julguei excelente, mas que logo que saí percebi uma lacuna enorme: não aprendemos nada sobre arte, teatro, cultura negra. Um ou outro professor que tivemos citou o nome de um ou outro escritor negro, mas isso passou batido…

Avancemos no tempo. Você trilhou um caminho bacana, casou e teve um filho negro. Decidiu sair fantasiado no carnaval e recorreu aos seus figurinos de personagens da Disney para cair na folia. E o que tinha no acervo que mais se aproximava da imagem do seu filho? (Pausa, música de surpresa) tcharaaaaammmm! Um macaco! Pois é, Fê, no mundo encantado da Disney, nós, negros e negras não existimos, não temos personagens que nos representem como queremos ser representados, no muito, uma princesa que vira sapo! No mundo encantado das histórias infantis, os príncipes e reis e princesas e rainhas são loiros de olhos azuis, iguaizinhos aos europeus. Os negros ficam nos papéis subalternos, pequenos, sem muito destaque, são as bruxas más, o vilões que morrem no final. Talvez porque no imaginário coletivo a morte ainda é o melhor que desejam para nós, ainda que inconscientemente. Se você não sabia disso, fique sabendo.

Quando seu filho sai vestido de macaco e uma multidão grita, acredite, estamos prezando pelo Matheus. Essas pessoas todas que parecem exageradas, dramáticas, canastronas, são, na verdade, uma massa que saiu do silêncio e, depois de anos de luta e de organização, de debates, estudos e experiências, se une para proteger esse menino que poderia (caso não estivesse com um casal bacana como vocês) estar fadado a ser agredido e oprimido pelos próprios pais. Foi-se o tempo em que um ato racista passava impune no Brasil. Foi-se o tempo em que suportávamos nossas dores sozinhos. As coisas mudaram muito! E por isso tanto barulho.

Na história da sociedade brasileira, houve um esforço dos colonizadores em fazer os negros se dividirem e para isso fomos “separados” entre pretos, mulatos, moreno claro, moreno escuro,moreninha, marronzinho, etc. Isso dificultou muito o processo de reconhecimento da identidade negra. Nos últimos anos, graças à facilidade de comunicação e ao acesso ao conhecimento que nos foi negado ( falei da ausência de informações sobre teatro negro na Faculdade, um exemplo) nós estamos cada vez mais conscientes de nossa memória e isso afeta diretamente o que somos. Tiramos a venda dos nossos olhos, descolonizamos nossa mentalidade e não deixamos mais que outros contem nossas histórias, não deixamos que falem sobre nós de forma equivocada, não deixamos que usem nossos símbolos de modo desrespeitoso, pegamos o microfone, escrevemos nossos roteiros, dirigimos e produzimos nossa Arte, escrevemos teses sobre aquilo que antes era “objeto” de curiosidade de brancos descobridores. Cresce entre nós o sentido da filosofia africana UBUNTU, que significa “eu sou porque nós somos”. Assim, a vida de Matheus e, consequentemente a de seus pais, nos interessa, porque se Matheus não estiver bem, também não estaremos. Se Matheus for mais um menino negro a ser ofendido e exposto, nós não vamos suportar. Se Matheus sofrer, na sua real inocência, sofreremos com ele. Ele é um dos nossos e nós fazemos parte dele, queiram ou não. Temos uma história em comum e ninguém pode tirar isso de nós.

Outro pensamento presente em sociedades africanas e indígenas diz que “é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. Hoje mais do que nunca compreendo essa verdade. O papel dado aos pais de cuidar e formar um cidadão se estende a todos e todas que estejam ao redor da família. Em tempos de Facebook, Instagram, falamos de uma comunidade de milhões. Pois é. É esse povo todo que lhe esbofeteia no seu erro. E vai ser esse povo todo que vai apoiar o Matheus quando ele for espancado injustamente pela polícia, quando o professor da escola de elite menosprezá-lo só por ser negro, quando ele for barrado na porta de um teatro por ter cara de “suspeito”, quando o colega de faculdade chamá-lo de macaco e mostrar, heroicamente, uma foto de quando ele era criança. Não sei se vocês estão preparados para isso. Nós estamos.

Outra coisa muito cruel: vendo as falas de defesa (compreendo tanto carinho dedicado a vocês, assim como o fiz) muito me afligem as falas rasas, sem conhecimento, que desvalorizam a experiência de quem vive a realidade do racismo todos os dias. Sinceramente, me incomoda ainda mais o discurso de que “vocês não são racistas, adotaram um menino negro abandonado por uma mãe…” Ai! Não sei se você percebe, mas a maioria dessas pessoas repetem uma coisa: “ Matheus é um menino que foi abandonado, foi adotado, coitado, que sorte a dele de ter o amor de vocês.” Essas pessoas fazem, e sempre farão questão de colocar o Matheus “no lugar dele”, pelo menos no lugar em que a elite branca belorizontina não vai deixá-lo sair: a de um menino negro adotado! Dói saber, mas é assim. Para esses negros e negras que rugiram como leão bravo em defesa do Matheus, ele é um ser humano que precisa ser respeitado em sua identidade, que precisa de apoio e conforto contra a as armadilhas racistas desse país de falsa democracia racial. Ele é um de nós que por alguma razão, que não conhecemos, será cuidado por outra família que não a de sangue. Se soubermos que as mulheres negras, como eu, são as que mais morrem nos hospitais, que mais sofrem violência do médicos quando vão parir, as que mais enlouquecem ou entram em depressão, as que mais sofrem violência doméstica, aumentam as chances de que seu filho tenha escapado de algumas dessas situações acima. Uma realidade nada agradável para se contar nos musicais. Mas é a vida por trás do véu da invisibilidade social do negro no Brasil. Caiu o pano, os bastidores se revelam: Sim, somos todos racistas na nossa estrutura e estamos desconstruindo as barreiras que nos impuseram. E vamos rugir como leões e leoas cada vez que um dos nossos for oprimido.

Dizem que quando nasce um filho, nasce também uma mãe. A Cynthia, digo que seu caminho, uma vez retirado o véu da ignorância que a separa da história de Matheus, será muito mais difícil. Bem-vinda ao clã das mães de meninos negros, onde os corações não dormem enquanto seu filho não entra em casa, onde os narizes tortos são diários e as ofensas se disfarçam de brincadeiras sem maldade. Minha filha, se prepara! Será impossível embranquecer o Matheus, então, enegreça, compreenda a poesia do ato de denegrir e reconheça bem quem são seus aliados. Aquela amiga de condomínio que enche a boca pra falar que tem uma empregada negra que é quase da família não será a melhor companhia. Acredite, para ela, seu filho é um eterno menor abandonado. E não é isso que ele é, não é mesmo?! Sabemos, você e eu, o quanto ele é especial e o quanto é digno do carinho e amor que recebe. E digo mais: ele lhes presenteia com a possibilidade de acessar um universo que talvez vocês nunca conhecessem.

Há muita coisa a dizer, são séculos de experiências que transbordam por uma fresta como essa e será impossível dar conta de tudo em um texto. Fico com a fala de uma artista que disse que é hora de dar a mão ao colega de profissão e dizer que se erra. Todo mundo erra e você errou feio! Mas essa é a grande a oportunidade de virar a chave, de descolonizar seu pensamento, compreender que seu ato foi, sim, racista, pois o racismo está entranhando na sua forma de pensar e ver a vida. Agora, o que farão daqui pra frente é de total responsabilidade de vocês, pais de uma indivíduo negro. Vai ter que ler, vai ter que mostrar pro Matheus “Kirikou e a Feiticeira”, os livros de contos afro-brasileiros, histórias africanas; vai ter que falar sobre Zumbi dos Palmares, Chico Rei, Chica da Silva, Dandara, Aqualtune, Martin Luther King, Mandela; vai ter que ler sobre Abdias do Nascimento, ver os filmes de Joel Zito Araújo, ler Kabengele Munanga, Julio Tavares, Liv Sovik; ver as peças do Denilson Tourinho, João das Neves, Aldri Anunciação; vai ter que ouvir o Alexandre De Sena, a Grace Passô, a Larissa Borges, ouvir o Evandro Nunes de Lima falar de Teatro Negro, o Juliano Gonçalves Pereira falar de juventude negra; vai ter que colocar um Rei Leão preto, produzir musicais sobre os bantos, os malês, os Yorubas, saber falar de umbanda e candomblé e congado, pegar a ginga da capoeira, cantar samba, dançar maracatu, jongo; vai ter que saber falar pro seu filho que ele não é descendente de escravo e sim, de reinos e civilizações destruídos pela fúria da colonização; vai ter que explicar que África não é um país e que Egito, uma das civilizações mais incríveis do mundo, é um país africano; vai ter que ver a tia Mari dançando, vai ter que procurar ajuda com quem vive isso há mais tempo, conversar com a Priscilla Celeste, mãe de uma menino negro que lhe mostrou o mundo que vocês descobrem agora; vai ter que ver filme sobre os Panteras Negras, sobre Besouro, sobre os orixás, sobre o racismo na infância, assistir “a negação do Brasil”… Tanta coisa…

E se quiser apoio pra isso, meu amigo, pra se enegrecer no pensamento e dar ao Matheus todo o suporte necessário para que ele cresça consciente e empoderado, eu estarei aqui! Eu e milhares de nós. Mas se for pra se fechar nessa redoma de um mundo encantado onde não se fala em racismo, sinto muito. Sinto muito mesmo! Quando Matheus crescer e puder buscar, por ele mesmo, suas referências, nós ainda estaremos aqui.

Por Matheus, por todas as crianças negras para quem queremos deixar um mundo melhor.

Ubuntu! Axe! Namastê!

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Mariana Emiliano

Fonte: penseegratis

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