FOTO: BRUNO BERNARDI
Durante a reunião de pauta desta edição, alguém sugeriu convidar para a Entrevista “aquela colunista da CartaCapital”, cujo nome não lembrava. “Dá um Google e coloca: colunista, CartaCapital, filósofa.” Assim foi feito. Mas o Google em resposta logo perguntou: “Você quis dizer filósofo?” – substantivo masculino.
Não, Google. Trata-se de uma mulher, mestre em filosofia política, militante do movimento negro e colunista do site da CartaCapital – Djamila Ribeiro. Até mesmo uma simples busca na internet prova como é raro encontrar representantes de parcelas da população como negros e mulheres em posição de destaque na sociedade.
Por FERNANDA MACEDO E MAGALI CABRAL,
Esse desequilíbrio tem suas raízes na diferença de oportunidades entre grupos privilegiados e aqueles que são historicamente marginalizados. “Eu não acredito na meritocracia”, afirma a filósofa ao ressaltar a importância de ações afirmativas como uma forma de compensação nesse sistema desigual, que cria a ilusão do mérito.
No Brasil, o preconceito e a discriminação são comportamentos quase nunca confessados. “Aqui, o racismo é o crime perfeito, ou seja, é evidente, promove desigualdade e as pessoas ainda estão negando que ele exista”, constata ela, nesta entrevista sobre como o Brasil lida com a sua diversidade.
Por que, até hoje, não conseguimos promover uma maior igualdade para parcelas da população, como negros e mulheres, que são tão representativos numericamente e, no entanto, têm uma baixa representatividade como formadores de opinião e tomadores de decisão?
Acho que tem a ver com a maneira como o Brasil foi formado. O mito da democracia racial escamoteou durante muito tempo o racismo no Brasil. As pessoas acreditavam que não havia racismo aqui. Até hoje, isso se reflete na falta de maturidade ao debater esse assunto. As pessoas ainda não entenderam que o racismo é um sistema de opressão. Além de mais de 300 anos de escravidão, o Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravatura. No período de pós-abolição não foram criados mecanismos de inclusão. No processo de industrialização, incentivou-se a vinda de imigrantes europeus para cá. Foi essa trajetória que levou a população negra a uma situação muito grande de pobreza e vulnerabilidade social.
Ao mesmo tempo, desenvolveram-se mitos como o de que não existe racismo no Brasil, que isso só acontece na África do Sul ou nos Estados Unidos. Na verdade, o racismo é um elemento estruturante, ou seja, ele estrutura todas as relações sociais no Brasil. Mas a gente não encara esse assunto da maneira como deveria. Até hoje, se vemos algum caso de racismo, por exemplo, com um artista, as pessoas acham que é um caso isolado, acham que o racismo se resume somente às ofensas e não percebem que o racismo é um sistema opressor que nega direitos a um determinado grupo conferindo privilégios a outro.
O que falta para haver esse diálogo mais maduro?
Falta ouvir mais os movimentos sociais, pois a gente [os militantes] tem pautado isso [o racismo como elemento estruturante do país] há muito tempo. Isso vale até mesmo para a esquerda. Eu sou de esquerda, mas sou muito crítica ao debater a questão racial e de gênero nesse âmbito. Durante muito tempo, a esquerda dizia que tudo era uma questão de classe e só se guiava por isso. Só depois de resolver a questão de classe é que seriam sanadas outras questões. Dizia-se ao movimento feminista e de raça que eles dividiam a luta. Só que, no Brasil, não tem como falar de classe sem falar de raça e de gênero, porque raça indica classe, e o racismo impede a mobilidade social da população negra, criando uma grande massa de negros pobres. O racismo também cria uma hierarquia de gêneros, colocando a mulher negra em uma situação muito maior de vulnerabilidade social.
Se a gente parar para pensar nos grandes partidos, inclusive os de esquerda, quem são os seus dirigentes? Homens, brancos, de classe média. Onde estão as mulheres? Ou os homens negros e as mulheres negras? A gente não tem um protagonismo para pautar nossas questões, ficamos sempre com o intermediário do homem branco de posses.
Como a senhora vê a situação do Brasil daqui para a frente? Acredita que vamos melhorar, teremos uma sociedade mais equilibrada em termos de diversidade?
Tivemos alguns avanços importantes nos últimos governos. Acataram uma reivindicação histórica do Movimento Negro, as cotas nas universidades. A lei de 2012 [Lei nº 12.711/12] para todas as universidades federais foi uma vitória. Mas algumas, como a UERJ [Universidade do Estado do Rio de Janeiro], já haviam adotado as cotas desde 2001 e a UnB [Universidade de Brasília] desde 2004. Isso aumentou significativamente o número da população negra dentro dos espaços acadêmicos. Teve também o sistema de cotas para os serviços públicos federais, o Estatuto da Igualdade Racial… Mas, ao mesmo tempo que esses avanços acontecem, a juventude negra ainda é massacrada, e a mulher negra é a que mais morre… Não conseguimos resolver ou diminuir essa violência em outros lados.
Sou confiante de que não temos mais como retroceder, mas ainda há muito caminho pela frente. Os avanços ainda contam muito pouco perto de tudo aquilo que o país deve à população negra. As pessoas não veem isso como uma dívida, não percebem, por exemplo, que as ações afirmativas não são um benefício para a população negra; na verdade, é uma reparação a todos esses anos de desigualdade.
Até nas escolas há uma grande dificuldade de debater o tema… Tem uma lei [Lei nº 10.639/2003] que determina o ensino de África e da história afro-brasileira nas escolas. A efetividade dessa lei é um problema, porque não há professores preparados. As prefeituras e os estados não dão cursos para esses professores, não há uma cobrança se o tema está sendo ensinado ou não. A educação é um excelente modo de a gente mudar a mentalidade e a escola deveria ser um espaço importante de mudança, mas acaba sendo um espaço de reprodução de violência.
Em São Paulo, a Secretaria [Municipal de Promoção] da Igualdade Racial está fazendo curso para os professores em relação a essa lei. Se a gente discutir racismo e sexismo dentro da sala de aula de maneira efetiva, vai produzir pessoas com outro tipo de pensamento.
Em relação a outros países que também possuem uma sociedade diversa, como a senhora vê a posição do Brasil? Como nos situa nesse cenário mais internacional?
O racismo é sempre ruim. Os próprios habitantes de um determinado lugar podem dizer, mas acho que, no Brasil, como diz Kabengele Munanga [antropólogo e professor congolês naturalizado brasileiro], o racismo é um “crime perfeito”, porque, ao mesmo tempo que temos uma sociedade extremamente racista, as pessoas dizem que não são racistas, ou seja, é uma sociedade de racistas sem racistas. As pessoas não falam sobre isso e, se você diz que alguém teve uma atitude racista, há respostas como “imagina, eu tenho um tataravô que era negro” e [o agressor] fica ofendido e não percebe que todos foram criados para serem racistas, da mesma forma que todo mundo foi criado para ser machista.
Isso mostra que a gente ainda tem uma imaturidade muito grande para debater o tema e saber a diferença, por exemplo, entre racismo e preconceito. Você não pode dizer que alguém sofreu preconceito ou racismo porque a sociedade é racista. Quando a sociedade é racista, os espaços não estão isentos.
Você acha que essa falta de entendimento sobre o que é racismo tem a ver com a forma pela qual algumas culturas interpretam a questão da liberdade?
Tem tudo a ver. Nos Estados Unidos e na África do Sul com o apartheid, que era lei – o racismo era constitucional, as pessoas sabiam que existia. Tinha escola para negro, escola para branco, e o negro sabia que não podia ir a determinados espaços. No Brasil, não houve uma lei, mas o racismo é institucional. Até mesmo uma parte da população negra brasileira acreditou que não havia racismo. Mas o apartheid existe aqui, basta ir ao Morumbi e ao Capão Redondo. Basta ir às escolas públicas e ao Colégio Objetivo. Por não estar previsto na Constituição, durante muito tempo as pessoas acreditaram que não existia racismo no Brasil. Outro elemento que contribui para essa falta de entendimento é a miscigenação. Mas as pessoas esquecem que houve uma política oficial de branqueamento da população do Brasil, trazendo imigrantes europeus para cá para miscigenar e acabar com a população negra, porque se acreditava que ela representava o atraso.
Como a senhora vê a questão da origem do preconceito? Principalmente nessas ações do cotidiano, de onde vem essa intolerância ao que é diferente? Pode-se dizer que é algo que nasce com a gente? Ou seria uma construção social?
É uma construção social. A gente já nasce numa sociedade que tem uma hierarquia de humanidade em que, se você é negro, vai ser tratado de um jeito, se é branco, vai ser tratado de outro. A sociedade já estabelece essas construções para nós e vamos assimilando isso, internalizando e aceitando como verdade. Ninguém nasce odiando ninguém, a gente aprende a odiar. A [filósofa americana] Judith Butler [uma das principais teóricas do feminismo contemporâneo] fala que há vidas que foram construídas para não importar. A vida negra foi construída para não importar, tanto que o assassinato de cinco jovens negros no Rio de Janeiro com 111 tiros, o que é um absurdo, uma atitude terrorista, não causa tanta comoção quanto uma pessoa branca esfaqueada num bairro nobre, porque a vida negra não importa tanto quanto a branca.
Quais são os ganhos que uma sociedade mais diversa pode proporcionar para as empresas, para a política?
Eu vejo muitos ganhos. Primeiro, na questão do respeito. A gente se respeitaria muito mais, porque iria desnaturalizar coisas que aprendemos sobre o outro. Além disso, as opressões negam a possibilidade do surgimento de vários talentos. Imagina quantos talentos o machismo impediu de a gente ter no futebol, ou uma chefe de empresa, ou uma engenheira nuclear… Da mesma forma, o racismo. Por conta de um sistema de opressão, acaba-se negando oportunidades que poderiam contribuir de formas diversas e criativas para o progresso do País.
Ganharíamos também no combate à violência, porque, se a gente tivesse um país com oportunidades mais iguais, muitas pessoas não escolheriam certos caminhos. Muitas escolhem porque são excluídas e por falta de opção.
Como podemos combater a discriminação em suas várias esferas? Seja no sistema educacional, da escola à universidade, seja dentro das empresas, no momento da contratação e na escala de carreira, no cenário político e também nas ações do dia a dia?
Políticas públicas afirmativas são essenciais para diminuir essa desigualdade de forma emergencial. É para isso que servem – elas são temporárias e emergenciais para que não seja preciso esperar mais 100 anos para incluir determinados grupos. Um exemplo é a questão das cotas, que são importantes não apenas na educação, mas também no trabalho. Hoje, há apenas a Lei de Cotas no serviço público federal. Mas deveria ter também em outras instâncias, inclusive sobre as próprias empresas.
Nos Estados Unidos, onde as ações afirmativas vigoram há muitos anos, as empresas são obrigadas a contratar. Mas, se uma empresa americana abre uma filial no Brasil, ela não segue a lógica dos Estados Unidos. Então, se a gente não obrigar, infelizmente as pessoas não vão contratar apenas pela consciência. No entanto, ao mesmo tempo que tem de haver essas políticas públicas, precisamos lutar por algo mais a longo prazo, que é a educação. Isso vai levar mais tempo, é um trabalho de transformação, de mudança de mentalidade.
Quando críticos às cotas dizem que elas não funcionam, que tem de melhorar o ensino básico, é preciso lembrar que o movimento negro sempre reivindicou as cotas juntamente com a melhoria do ensino básico. As duas coisas têm de andar juntas.
De qualquer forma, eu acho que tem de haver também políticas públicas direcionadas [a grupos específicos]. Por exemplo, na questão da mulher, a última pesquisa de feminicídio mostra que aumentou em 54% o número de assassinatos de negras e diminuiu em 10% o de brancas (mais em quadro à pág. 47) . Isso mostra que as políticas públicas para mulheres não estão atingindo as negras. Políticas criadas de forma geral, se atingem apenas mulheres com um certo privilégio, outras acabam ficando de fora. É preciso pensar nesses grupos discriminados com base na realidade deles.
Uma das principais resistências das empresas em adotar ações afirmativas, como as cotas, é que esse modelo poderia entrar em conflito com um sistema de meritocracia. O que você acha desse conflito?
Eu não acredito na meritocracia. Que mérito tem uma pessoa que a vida inteira estudou numa escola particular, que come bem, tem lazer, faz curso de idioma, em passar na USP? Nenhum, ela teve oportunidade na vida! Eu acho que a questão é de oportunidades, não é de méritos. Como um menino que teve todas essas oportunidades na vida vai concorrer com um menino pobre, de periferia, que estudou numa escola pública, que não come bem? É desleal.
Eu sempre digo que as ações afirmativas não dizem respeito à capacidade, mas às oportunidades. São as oportunidades que não são as mesmas. E é justamente esse sistema desigual que cria a ilusão do mérito, de que alguém teve o mérito de estar lá, quando, na verdade, ela teve todas as condições necessárias para estar naquela posição. Claro que existem pessoas geniais, mas a maioria são pessoas que tiveram oportunidade.
Que legitimidade as pessoas que não pertencem a grupos que são discriminados têm ao falar contra ou a favor da diversidade? Por exemplo, um homem que critica o feminismo.
Falar contra não me surpreende, afinal nem todo mundo quer abrir mão dos seus privilégios ou quer ter consciência sobre eles. Mas, falar a favor, eu acho importante. Se você vê um homem falando sobre feminismo, muitas vezes ele é criticado, mas é importante que os homens toquem nessa questão, é importante descontruir a masculinidade hegemônica, o sistema. Quem pertence ao grupo privilegiado, tem de ter em mente que mulheres e mulheres negras são historicamente excluídas de posições de protagonismo e destaque. É importante que você abra espaço para esses grupos falarem, mas isso não quer dizer que você não tenha que falar e agir. Por exemplo, se você é professor e aborda esse tema numa sala de aula, ou entre amigos, pra explicar o que é machismo, assédio… Os homens também precisam se desconstruir, porque a masculinidade hegemônica está diretamente ligada à violência e à agressividade e nos diz respeito, porque nós [mulheres] é que estamos sendo agredidas.
Como foi a trajetória do racismo até ele ser entendido no Brasil como um crime?
A partir do momento em que se cria a Lei Afonso Arinos [nº 1.390, de 1951], que proíbe a discriminação racial, se reconhece que o país é racista. Isso é o mais importante.
Mas só a lei não resolve. Como fica a sua efetividade? Dificilmente se condena alguém por racismo, que é um crime inafiançável. Os casos são geralmente caracterizados como injúria racial. Se a lei fosse efetiva, a grande mídia e as empresas seriam processadas por racismo, pois a gente [negros] quase não se vê nos espaços, ou quando se vê é de uma forma estereotipada (conheça a diferença entre racismo e injúria racial).
É importante trabalhar a questão da punição, mas mais importante ainda é frisar a importância da educação, da transformação de mentalidade. Então, a lei é um ganho, mas um ganho que tem limites.
A senhora acha que o problema da efetividade das leis que buscam combater o racismo – como a Lei Afonso Arinos ou a Lei de Educação Afro – ocorre por falta de vontade política?
Sim, falta vontade política, mas também acho que esses mecanismos são realmente limitantes. A justiça, da forma como é feita, tem limites claros e demarcados. Acaba sendo utilizada a favor de determinados grupos. Mas dentro dessa estrutura que já existe a gente tem de cobrar para ser menos desigual.
Se você analisar as faculdades de pedagogia, são poucas as que têm aulas de relações raciais e de gênero e, quando essas disciplinas estão presentes na grade curricular, são eletivas. Tem um conceito que as feministas negras usam que é o “epistemicídio” – o assassinato de epistemes [conjuntos discursivos] que não é a episteme hegemônica, que é imposta. Muitas vezes somos obrigadas a segui-la, porque não conseguimos espaço para estudar os temas que a gente acha importante, já que existe essa falsa visão de neutralidade da ciência, mas nada é neutro ou isento de ideologia. Então, quem quiser estudar esses temas é visto como militante ou ideológico, como se a academia também não seguisse uma ideologia, inclusive a de nos manter afastadas desses espaços.
A explicitação do racismo e do ódio pode resultar em algo positivo? Evidenciar que existe o racismo pode ser bom, pois enfrentar o que não se vê é mais difícil?
O primeiro passo é parar de negar a existência [do racismo], pois para mim, como negra, o racismo nunca foi camuflado. Para mim, sempre foi declarado, desde o momento em que eu entrei para a escola. Ou pela forma como as pessoas te olham quando você chega em um local… É importante quando quem não é o objeto daquilo começa a tomar consciência, porque ele também se vê como parte do problema. E, se você não faz nada para mudar, é porque concorda com esse tipo de coisa. Assumir responsabilidade pela mudança também é importante.
Nos Estados Unidos e na África do Sul, onde o racismo era institucionalizado, as lutas eram mais objetivas…
Não tinha o que negar. Estava muito claro e evidente e é por isso que aqui o racismo é o crime perfeito. Ele é evidente, promove desigualdade e as pessoas ainda estão negando. Mas é só ligar a tevê: os negros estão sempre em papéis estereotipados, bem específicos, nunca é uma pessoa comum. É a gostosa do samba, é a empregada, ou seja, ou é o lugar da subalternidade ou o lugar da exotização.
Na História do Brasil, a gente aprende que os negros eram escravos e pronto. Não contam que antes disso eles viviam na África, que existiam diversas etnias, não contam as várias revoltas que ocorreram durante a escravidão, que os negros que resistiram à escravidão, os vários quilombos, as grandes figuras, como André Rebouças, Machado de Assis, Dandara…
O [filósofo alemão] Walter Benjamin diz que a História é contada pelo ponto de vista dos vencedores e, por isso, é importante que nós, que fomos vencidos, lutemos contra isso, se não eles continuam a vencer sempre. Então, quando me perguntam o que eu penso para o futuro, eu digo que antes de pensar o futuro eu acho que é importante recontar a História, porque é a partir dela que vamos olhar para o futuro de outra forma.
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**Djamila Ribeiro, 35 anos, nasceu em Santos, São Paulo. É mestre em filosofia política pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e ativista pelos direitos das mulheres e dos negros e colunista do site da revista Carta Capital.
Fonte: Página 22.
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