Páginas

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Sobre ser negra e aprovar as cotas raciais


A minha opinião sobre cotas raciais teve 3 momentos. O primeiro foi: “sou completamente contra, que insulto”. O segundo foi: “não sei, não quero falar sobre isso”. E o terceiro foi: “eu sou completamente a favor”. 

O que me fez mudar de opinião foi algo muito simples, mas algo muito difícil de se fazer hoje em dia: parar de pensar que todo mundo é como eu ou como o fulano lá que apesar de tudo, encontrou livros no lixo e passou na faculdade de Medicina. Sair da zona de conforto e do nosso mundo encantado é algo que realmente faz a gente mudar muitas opiniões. Mas vamos falar mais sobre isso.

Para você que não entende de jeito nenhum vou tentar explicar de uma maneira bem didática no decorrer desse longo texto. Vou usar um exemplo que um colega de trabalho deu e eu achei muito bacana e esclarecedor

Por muito tempo aqui no Brasil os brancos eram famílias ricas e influentes e os negros eram escravos. Todo mundo sabe disso. Um homem branco pai de família quase que obrigatoriamente passava para o filho a necessidade de estudar e garantir uma boa profissão para a família não perder status. Mas ao contrário disso, um negro escravo não tinha nada a dizer, seu filho já nasceria escravo e sem oportunidades. 

Passando para atualmente, hoje muitas famílias brancas conseguem manter a tradição do estudo e de certa profissão por muitas gerações (nada errado quanto a isso). Enquanto famílias negras continuam a margem da sociedade, catando os farelos sociais, se abrigando em favelas, em condições inferiores, sem sequer ter a ousadia ou esperança de pensar em estudar. Mas assim como o branco, geralmente os negros passam a profissão de geração em geração. A vó era diarista, a mãe é, a filha é e a neta será (nada errado quanto a isso também, mas nunca vamos ser mais do que os criados das famílias brancas e ricas?). 

Para começar finalmente a parte didática disso tudo, vou chamar a qualidade de vida, a oportunidade de estudar e mudar de vida de Paisagem agradável. Agora, imagine que exista um muro muito alto e por cima desse muro exista essa Paisagem agradável. Desde sempre todas as pessoas brancas, principalmente ricas, já nasceram altas o suficiente para enxergar a paisagem. Mas os outros, os negros, indígenas, etc, não. Eles são pequenos demais ou sempre encontram muitos obstáculos até chegar ao topo do muro. E quase sempre realmente não chegam. 

As cotas raciais são como banquinhos que permitem igualdade. Permite que uma pessoa negra possa alcançar e ver a mesma paisagem que o branco consegue ver há muito tempo. E o mais legal dessa história é que, o negro arrumar um banco e um espaço no muro, NÃO tira o espaço do branco que já estava lá anteriormente. Ele só vai ter o direito de ver a vista também. E qual o problema disso? Nenhum. Deveria ser nenhum.

Eu acredito que todos os negros que com seus esforços chegaram em algum lugar, também precisaram de um banquinho. Infelizmente nossa raça vem precisando de banquinhos há muito tempo.

Vou me dar como exemplo. Eu só tive oportunidade de estudar onde eu estudei porque ganhei bolsa 100%. Só consegui estudar em período integral porque ganhei ajuda de pessoas conhecidas e familiares que me ajudaram desde a compra de material escolar até o almoço. Assim que terminei o Ensino Médio também consegui bolsa 100% para estudar em uma faculdade particular, porque sem isso com toda certeza eu não conseguiria. Essas ajudas foram os meus banquinhos. Mas se eu não tivesse tido esse auxílio e essas bolsas, meu banquinho teria sido as cotas raciais.

É muito difícil hoje ouvir alguns argumentos e acusações de pessoas que sempre estiveram em cima do muro e de outras que já conseguiram inúmeros banquinhos. Se você está aí, não critique quem quer subir e melhorar de vida também, isso deveria ser um direito de qualquer ser humano. Todos nós temos o direito de ver a Paisagem agradável também. 

Agora vou discutir sobre alguns argumentos que as pessoas utilizam para criticar as cotas raciais, vamos lá:

– O negro poderia usar as cotas sociais
O que as pessoas precisam entender é que as cotas raciais são muito mais do que uma simples ajuda, são um pedido de desculpa (se é que resolve), e MAIS do que isso, é uma (tentativa de) reparação histórica e social. Uma maneira de arrumar ou compensar os muitos anos que os brancos tiveram acesso a Paisagem e os negros não. É uma forma de tentar reparar anos de exclusão e desesperança. E vamos ser sinceros, é uma atitude até pequena.

– As cotas são uma ofensa à capacidade intelectual dos negros
Esse era meu discurso favorito para dizer o porquê eu era contra as cotas raciais. Mas todo mundo que fez vestibular e conhece o sistema de avaliação brasileiro sabe que não tem nada a ver com capacidade intelectual. Um vestibular, principalmente de universidades públicas, precisa que o candidato tenha muito mais do que inteligência. Aquela inteligência natural sabe? Precisa que o candidato tenha um tempo disponível de estudo, acesso a livros e apostilas focados na forma de fazer a prova, talvez fazer um cursinho pré-vestibular, entre outras coisas. 

Eu nunca tive dinheiro para fazer um cursinho pré-vestibular. Nunca. Mas eu não tinha que trabalhar, nem cuidar dos meus irmãos – nem tinha irmãos. Eu chegava da escola e tinha todo o tempo e oportunidades possíveis para estudar. Mas adivinha só? Essa é a MINHA realidade, não a realidade dos negros de forma geral no Brasil. Observa a quantidade de crianças e adolescentes negros que se quer vão para a escola, que engravidam e morrem antes mesmo de terminar o ensino básico. E

Eu entrei na universidade por causa do Enem e até hoje eu tenho certeza que nunca passaria no vestibular competindo com outras pessoas que fizeram anos de cursinho e que estudam em colégios particulares, mesmo eu me considerando inteligente. Eu não teria forças e incentivo de gastar um bom dinheiro com vestibulares, sabendo das dificuldades financeiras que minha família tinha. Além disso, eu nunca tive como incentivo para estudar, ter a família toda seguindo uma profissão. Toda a geração antes da minha na minha família não teve ensino superior e boa parte da família não completou o ensino básico. Quer incentivo para NÃO estudar maior do que esse? E adivinha só, isso acontece – e vou ser ousada em afirmar – na grande maioria das famílias negras no Brasil. 

Realidade muito diferente de muitos estudantes que tem o incentivo de fazer tal vestibular porque toda a família desde sempre seguiu aquela profissão. E caso a pessoa reprove, o papai e mamãe incentivam uma futura aprovação com viagens e premiações pela tentativa e pagando mais e mais cursinhos. Eles não estão errados. Mas essa não é e nem nunca será a realidade de milhares de negros, mesmo que tenham uma grande capacidade intelectual. Repito: não é questão de inteligência.

– As cotas são uma forma de racismo e exclusão
Você está dizendo para mim que dar a chance de um negro prestar um vestibular e ter a oportunidade de entrar na universidade e se formar, mudar a vida dele, da família e das próximas gerações é uma forma de racismo e exclusão? Mas continuar deixando-o fora das universidades, não? É isso que você quer dizer? Deixá-lo fora é que é incluir? Por favor, tenham mais empatia pela situação em que os outros estão submetidos.

– Os negros utilizam a cor para obter vantagem e privilégios
Nossa, que privilégio eu ser quase a única da minha família a me formar em uma universidade. Nossa, que privilégio eu ser negra em um país que não posso ter X emprego porque meu cabelo e minha cor não passam uma imagem profissional. Nossa, que privilégio eu ser negra em uma sociedade que pessoas escondem a bolsa quando eu passo ou me acham com aspecto sujo. Eu sempre quis nascer negra para ter um antepassado cultural e social de escravidão e exclusão só para usar cotas e ter vários privilégios. Sempre quis tudo isso só para ter a chance de fazer vestibular com cotas. Que vida fácil e cheia de privilégios.

– Os negros nem precisam estudar para o vestibular né?
Não, claro que não. As escolas públicas são maravilhosas e de ótima qualidade, a maioria dos negros não precisa trabalhar para ajudar em casa, e claro, sempre tem acesso a vários conhecimentos e oportunidades. Com certeza nenhum negro vai precisar estudar. E com certeza vai passar só assinando o nome. 

Paro por aqui. Mas para finalizar eu aconselho você branco, e mesmo você negro a sair da zona de conforto e conhecer outras realidades. Realidades de meninas e meninos que não escolheram a realidade que vivem e lidam com traumas que surgiram há MUITO tempo atrás. Pessoas que são discriminadas nas escolas, que não conseguem bons empregos, mesmos quando estão qualificados, que são revistados e/ou agredidos por policiais constantemente, que tem sua autoestima diminuída pelos meios de comunicação, livros didáticos, professores e até por seus “amigos”.

Eu aconselho você a visitar uma comunidade carente e ver quantos negros encontra lá. Visitar uma comunidade mais rica e ir contando quantos negros vai encontrar (que não estejam lá trabalhando). Eu aconselho você a olhar na sua universidade e nos seus círculos de amizade e perguntar quantos amigos negros estão estudando e se formando na universidade. Aproveita e pergunta para todos os seus amigos negros, quantas pessoas na família deles tiveram acesso a educação e ensino superior. Te aconselho também a visitar escolas e conversar com crianças, conhecer o que elas pensam sobre a visão do futuro e educação. E espero que você perceba, que as cotas sociais e raciais ainda são pouco, muito pouco.

Quando você for parar para pensar e opinar sobre esse e outros assuntos, repita sempre consigo mesmo “a minha experiência de vida não elimina ou exclui a experiência de vida do colega ao lado”. Não é porque eu sou, eu posso e eu tenho que necessariamente pessoas parecidas comigo (principalmente visualmente) serão iguais. Não é porque eu Mônica, com 21 anos e negra concluí o ensino superior, que outras meninas da mesma idade podem OU não concluíram porque não quiseram. Se for parar para pensar sou, INFELIZMENTE, uma exceção.

Por fim eu adoraria de coração dizer que cotas raciais são uma ofensa porque nós negros temos oportunidades e forças sociais, psicológicas, financeiras e culturais para sermos capazes de concorrer com um branco para qualquer vaga que seja, de emprego ou estudo. Dizer que nós podemos igualmente graças as nossas boas condições de vida, mas infelizmente estou longe de dizer isso. E aprendi que continuar criticando quem precisa de banquinho não ajuda em nada a mudar essa realidade. Vamos seguir com um propósito: já consegui o meu banquinho, vou ajudar um coleguinha a conseguir o dele. E assim vivamos.

Hoje, eu digo SIM a todos que ainda precisam de banquinhos. Sejam esses banquinhos cotas raciais, sociais ou qualquer outra política pública. E vou continuar dizendo sim até que todos estejam juntos vendo a tal da Paisagem agradável por cima do muro.

___________________________________________________________
Jornalista e professora da Universidade Estadual de Maringá, minha cidade, e que também é representante do NEIAB - Núcleo dos Estudos Interdisciplinares Afro-brasileiros.


Nenhum comentário:

Postar um comentário