POR MARCOS CANETTA,
A resistência de Palmares nos remete a inúmeras reflexões. Há uma intensa profundidade emocional quando lidamos com este tema ancestral. Algumas perguntas são feitas todos os anos: como os aquilombados se comunicavam? Como eles conseguiram resistir às investidas da Coroa Portuguesa por um século? Quem foi Zumbi, Aqualtune, Acotirene, Dandara? A historiografia brasileira deve muito ao povo negro. Por ter lhe negado ao longo da história os feitos que lhe é de direito, os colocou no ostracismo da civilização moderna.
Lamentavelmente todos os heróis negros compõem um quadro de segunda categoria em livros didáticos, literatura e nos meios de comunicação. Não se dá aos mesmos o espaço necessário para a fruição de outro entendimento do período escravocrata que não seja o da história oficial. Quem foram os malês que consolidaram uma revolta histórica na cidade de Salvador, em janeiro de 1835? Quem foi Luisa Mahin e qual o seu papel neste episódio? Não há visibilidade aos feitos de nossa negritude histórica, em particular as de Palmares.
O Quilombo dos Palmares foi o único espaço livre de relação interétnica do período colonial brasileiro. Os negros aquilombados recebiam diversos grupos humanos que fugiam da escravidão e da perseguição da Igreja Católica à época. Entre eles, indígenas, judeus, negros e pobres. Todos sentavam a mesma mesa, nutriam-se com suas diferenças culturais e socializavam os contributos para a manutenção da causa palmarina. Palmares era um espaço de liberdade, trabalho e resistência à escravidão.
De 1595 a 1695 o Quilombo dos Palmares foi um modelo de organização socioeconômica que se contrapôs ao sistema escravista. Seus líderes reagiram bravamente não só contra os exércitos e bandeirantes, mas contra as tentativas de acordos e coaptação, onde libertariam os líderes e fariam voltar a escravidão os quase 20 mil homens e mulheres aquilombados. Se este feito fosse construído por qualquer outro grupo étnico que não os negros e índios, estaria estampado em todos os jornais e revistas por séculos. Fariam filmes, documentários e contariam esta história até mesmo em quadrinhos. O que impede o saber desta história é o racismo que impera na relação de poder de uma sociedade que não consegue se afastar, mesmo em tempos atuais, dos privilégios da Casa Grande. Obviamente que por uma questão lógica, só sobra aos negros as senzalas modernas. Tudo é muito complexo e cheio de nuances multifacetadas.
O racismo permeia todas as faces da sociedade e realimenta-se em si mesmo pela falta de enfrentamento público e pela mentalidade eurocêntrica dominante. As ideologias embranquecidas dialogam de forma imposta diariamente nas universidades, no cotidiano das cidades, nas igrejas e nos bares da vida. Neste caso específico, quem não se coaduna a este modelo étnico acaba por ser desconsiderado historicamente. Parece que não houve uma história anterior construída por seus ancestrais.
Há um vácuo que não permite a visibilidade dos grupos humanos que foram trazidos à força de além-mar ou escravizados em ambiente autóctone, ou seja, negros e índios passaram a ser vistos e tratados no Brasil como uma subespécie humana. O caso Juruna confirma minha afirmativa. Os índios tombaram e, infelizmente, não há um novo Chefe Raoni “Caiapó” ou outro Zumbi de “Palmares” para levar avante esta luta por espaço, visibilidade, identidade cultural e respeito às tradições religiosas. Fizeram da religião indígena e negra um emaranhado de fetiches e feitiçarias. Tornaram-nas demoníacas.
Como suportar esta negação? Como reconstruir a identidade de um povo que nega suas origens por imposições dogmáticas e fundamentalistas de outrem? Este é o nosso grande problema: resgatar um passado que uma parte da população brasileira quer esquecer. Sendo assim, falar de racismo, discriminação racial, cotas e políticas afirmativas, significa um tabu na modernidade. O mesmo povo que diz não ser racista conhece alguém que é. Quem sabe seja por essas questões contraditórias que o mês da Consciência Negra ainda seja necessário. Precisamos dar respostas a essas perguntas constantes. Como também, necessitamos ampliar os horizontes educacionais e culturais para que a ignorância cesse e o racismo se dissipe no ar da esperança e do respeito mútuo.
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(Marcos Canetta, professor da Faculdade Anhanguera de São José (SC), e membro do Instituto Liberdade)
Fonte: dm.
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