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segunda-feira, 30 de junho de 2014

Uma bunda na foto vale mais que uma arara!


Ao ler os comentários sobre o episódio dessa chamada de brasileiras para casamentos com gringos através do site do Huck, só consigo pensar em como nós brasileiras ainda somos vistas no nosso próprio país: mercadorias com bundas do tamanho P, M e G. Parece também como uma volta no tempo, quando senhores de escravos ofereciam sexualmente suas escravas nos jornais e nas ruas, quando europeus sonhavam com a “desibinição corporal” das negras e das índias, que deveriam parecer sempre prontas para agradá-los sexualmente enquanto as sinhazinhas puras permaneciam em casa, sem se mostrar.

É perceber que para certos homens é como se estivéssemos expostas em prateleiras, sendo essas bem distintas, dependendo de suas classe sociais: as brancas e ricas, cultas, educadas, que podem viajar quando quiserem e conhecer os gringos mais bem sucedidos. Nas prateleiras de cima, e as negras, indígenas e pobres, nas prateleiras mais baixas ao alcance de quem tiver um trocado para dar, ou na internet, a virtual terra de ninguém.

É jogar no lixo todo o trabalho que tenta se fazer nesse país em relação ao turismo sexual, ao tráfico de mulheres e aliciamento de jovens e crianças, e o que é mais grave, em relação à imagem da mulher brasileira, vendida como objeto sexual. É chamar a todas nós de meros pedaços de carne! É jogar no lixo o empenho cotidiano de todas as mulheres brasileiras rumo à dignidade, que ainda não conseguimos conquistar plenamente em nosso país. É reforçar a ideia de um Brasil extremamente machista!

E por quê? Porque dá mais dinheiro reforçar o machismo, porque sexo dá dinheiro, porque uma bunda chama mais atenção em um cartaz do que uma arara. Porque dá lucro desempoderar o oprimido, nesse caso, nitidamente, as mulheres pobres e as mulheres negras, porque mulher rica não vai enviar e-mail pra programa de tv para achar marido, vai viajar ou pagar uma agência de namorados internacional para isso.

Dá mais dinheiro perpetuar os abismos sociais, seja qual for a forma.

Expôr a mulher brasileira dessa forma é expôr a sua origem, desqualificá-la, logo, a sua comunidade, a sua família e todos aqueles que podem se fazer valer positivamente do seu crescimento. Mas tudo em um tom de brincadeira, porque brincando dá para ser machista, brincando dá para ser sexista, brincando dá para ser racista. Brincando, um gringo te agarra em uma festa, força um beijo e qualquer outra coisa mais. Por que não? Tem brasileiro fazendo isso também!

Mais trabalho pra gente, pois além disso temos que lidar com esse tipo de gringo, que nos vê somente como bundas; lidamos também com alguns gringos “normais”, que não vem fazer turismo sexual no Brasil, que moram aqui, trabalham com a gente, e talvez até se sentem na nossa mesa de bar… Mas que pensam, desconfiam e que julgam as brasileiras a partir desse olhar e nos consideram interesseiras, como se fossemos lhes tirar algo. Há também, e porque foram educadas assim, algumas brasileiras que pensam isso umas das outras ou que se veem desta maneira pois foram criadas para pensar assim, como se fossem ser salvas por verdadeiros príncipes de olhos azuis.

Nosso país foi vendido como o universo da bunda, o país do sexo fácil, das mulheres boas e complacentes, estereótipo vivo no imaginário brasileiro e estrangeiro desde a época da colônia e do império, tendo se sofisticado chegando aos cartões postais do século XX. Temos tentado mudar isso, mas a “concorrência” é grande e desonesta, pois brigamos contra o dinheiro, o machismo e o oportunismo.

E eu poderia dizer que somente as práticas mudaram de lá para cá, mas com isso vemos que não, continuamos sendo oferecidas livremente através dos meios de comunicação. Realidade essa, que encobre somente o real desejo do machista brasileiro: que a mulher continue a servi-lo: ora na mesa, ora na cama. E se fizermos o recorte econômico e racial: que ele ainda lucre com isso.

Dois passos para trás e um para frente.

Não há, no embate entre homens e mulheres, homens ricos e mulheres pobres, homens brancos e mulheres negras, concessões, há a luta, dor, grito e revolta. Tem sido sempre assim, mesmo tentando o homem branco pintar alguma cordialidade sobre os estupros sofridos por índias e negras no período colonial e imperial. Nunca houve concessão e nem cordialidade. Essas palavras não existem no embate entre opressores e oprimidos.Porém, continuaremos lutando, gritando sobre o nosso direito à dignidade.

Agora, o mesmo site que ousou nos expôr se cala, nada comenta, não se retrata, responde através de um silêncio, que não sabemos se é reflexivo ou se é porque já pensa em mais uma nova campanha extraordinária, afinal, há dois meses atrás o mesmo apresentador afirmou sermos todos macacos. Enfim! Mais blá, blá, blá que só colabora para o aumento dos preconceitos e problemas de nosso país.

Não sou macaca, minha bunda não é internacional, Brasil não é cartão postal de bundas e a mulher brasileira não esta à venda!

Imagem destacada- Mulher Negra e o FeminismoAcompanhe nossas atividades, participe de nossas discussões e escreva com a gente.

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Débora Almeida é atriz e professora de Teatro formada pela Uni-Rio. Pesquisadora e diretora teatral, cantora, escritora e produtora cultural. Desde 2009 apresenta pelo Brasil o espetáculo “Sete Ventos”, monólogo baseado em depoimentos de mulheres negras e na mitologia de Iansã. Integrou o elenco da Cia dos Comuns, cia de teatro formada por atores negros, que produzia espetáculos e eventos relacionados à arte e cultura negra, dirigida por Hilton Cobra. Tem texto publicado em Cadernos Negros. No cinema participou de filmes como “Jogo de Cena”, de Eduardo Coutinho. Seu principal foco de trabalho, tanto na Arte quanto na Literatura é a figura da mulher negra e suas representações. Blogs: deboraalmeidaportfolio.wordpress.com seteventosespetaculo.blogspot.com


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