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terça-feira, 17 de junho de 2014

Um moleque, a biqueira e suas referências

Imagine voltar, da missa, do culto, de uma viagem, de uma visita à rua de baixo e, ao chegar em casa, encontrar o cadeado do portão estourado, a porta de sua cozinha arrombada e a casa “limpa”. Levaram televisão, celulares, câmera fotográfica, equipamento de som, computador, algumas roupas e até a batedeira. O que você faria?

Chamaria a polícia?

Imagine seu filho doente. Foi difícil encontrar um hospital que o atendesse e quando aconteceu, veio a receita do remédio: caríssimo. No posto de saúde do bairro não tem. Tua família até tinha um “crédito” com seu João da Farmácia, mas ele fechou o estabelecimento há anos, depois que as grandes redes de drogarias ocuparam a quebrada. Quem você procura?

O político do bairro? A assistência social da prefeitura?

As respostas para essas duas provocações podem ter a ver com a realidade social que se vive.

O Estado, a polícia e os políticos existem. Mas para quê? E para quem? E qual o resultado de seus papéis na vida real das pessoas?

O texto lindo e forte de Miguel Jerônimo, do blog “aquele barraco” me fez pensar nisso. Vale a pena ler.


“Uma vez no Grajaú, da janela da minha casa, crianças brincavam de polícia e ladrão, só que na divisão dos times, ninguém queria ser coxinha, pois ninguém queria ser vilão, herói é quem protege e não quem reprime!”

Fui uma criança com uma infância conturbada, crescer sem pai, morar com uma biqueira na sua porta, o tempo todo ver pessoas correndo para lá e para cá, horas porque a polícia estava chegando, outras por que tinham tretas na rua, mortes a cada semana, foi realmente triste tudo isso. Só que por ser novo demais eu não percebia, para mim tudo não passava de uma grande brincadeira.

Pela fresta do portão, eu via o que o mundo tinha para me oferecer: Drogas, dinheiro, mulher e respeito. Era isso que eu almejava, uma vida de “patrão” fácil e rápida, sem tirar nem por queria ser bandido! Mas não qualquer bandido, eram aqueles da minha vila que eu sonhava ser, exatamente eles. Achava incrível o modo de vida que levavam.

De repente, aqueles que para mim eram intocáveis começaram a morrer, desaparecer, suas mães ficavam cada dia mais tristes, choravam, os corpos dos que foram um dia onipotentes, eram envoltos a panos brancos manchados de sangue e ficavam amostra para todos verem. Talvez a polícia deixava o corpo lá para todos terem como exemplo que aquela vida não era o exemplo a ser seguido.


Era um panorama constante na minha vida, não me abalava mais, foi doloroso ver aquela cena pelo menos duas ou três vezes no mês, mas a vida tinha que seguir – se eu fechar os olhos, consigo visualizar certos momentos – Já não queria mais ser como eles, passei a ter respeito, por tudo que sempre fizeram pela comunidade e principalmente pela minha mãe.

Aos 3 meses ou 3 anos de idade, quando minha irmã e eu tivemos catapora, e o quadro se agravou (graças a uma vizinha que me deu coisas que eu não podia consumir), minha mãe correu para todos os hospitais possíveis pedindo por uma assistência médica, mas eles brevemente respondiam: -Sem dinheiro, sem remédios. Já sem ter para onde ir, desabafava a cada pessoa próxima, mas também ninguém podia ajudar, afinal ali eram todos iguais sem um tostão furado no bolso. Até que certo dia naquela semana um cara chamado Erismar (um traficante lá da vila), ficou sabendo que minha velha precisava de ajuda financeira para comprar os tais remédios, ele deu todo suporte que minha mãe carecia, salvou minha vida! Logo depois quando minha velha foi pagar, ele não aceitou e falou para ela cuidar e não permitir que a gente entrasse no crime.

Minha mãe pouco permitiu que eu brincasse na rua. Soltar pipa, jogar bola, bolinha de gude, era algo quase que raro, também nunca deixou que eu fechasse os olhos pro mundo. Ao mesmo tempo que era grata aos caras lá da área, sabia que não podia confiar 100% neles. Tinha plena consciência que temer a polícia era a melhor opção, porém talvez precisasse dos mesmos algum dia. Boa parte das crianças que nasceram na mesma época que eu entraram pro crime, uns foram mortos, outros presos, os que foram soltos voltaram pro veneno, a maioria viciados em drogas.

Agradeço todos os dias por não ser mais um, e lutar diariamente contra as estatísticas.

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