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segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Quando um herói nacional é negro: Abdias do Nascimento e a História que não aprendemos

O palco virou espaço para os negros marginalizados terem voz e exercitarem seu dom. Abdias trabalhou a autoestima daqueles ex-escravos que quase não tinham deixado de ser ex, mais de 50 anos depois da Lei Áurea



ACERVO ABDIAS NASCIMENTO/ IPEAFRO
Abdias Nascimento em Nova York, 1997.

Você sabe o que aconteceu com os escravos a partir de 13 de maio de 1888? Ou o seu livro de História pulou esse capítulo do pós-abolição?

A liberdade foi assinada. Mas era só um papel a lei da princesa Isabel. Centenas de milhares de negros foram direto da senzala no campo para as senzalas do esquecimento. Formaram a massa de pobres e miseráveis do Brasil no fim do século 19.

Fosse áurea mesmo aquela canetada, teria vindo com políticas públicas de integração e emancipação. Fosse áurea mesmo, eu não estaria agora prestando minha homenagem aos 100 anos de um dos maiores heróis negros do século 20, Abdias do Nascimento.
A lacuna no nosso livro de História

Não, o negro não era mais propriedade do senhor de engenho após a abolição. Porém, o Império nada fez para garantir as mínimas condições da pretensa liberdade. Não houve incentivos à alfabetização e à formação profissional dos ex-escravos. Nem reforma agrária para que tivessem um pedaço de terra e pudessem produzir para si próprios. Tampouco leis que protegessem sua força de trabalho, que havia pouco deixara de ser gratuita e eterna.

O Estado deveria ter endereçado a esse grupo uma série de ações sociais e educativas. Só assim, poderíamos falar em liberdade e igualdade de condições e oportunidades. Mas os ex-escravos não sabiam nem por onde (re)começar. A República Velha também os esqueceu. E, sem um marco zero, sem uma fonte de conhecimento, de orientações e de renda, o caminho natural dos negros recém-libertos foi a marginalização.

As mulheres negras deram um jeito. Sabiam cozinhar, lavar, cuidar dos filhos da madame. De mucamas, tornaram-se domésticas nos idos de 1900. Já os homens negros eram vistos com desconfiança. Sabe como é, foram escravos, costumavam fugir dos brancos, organizar quilombos… Quem daria um emprego a vossuncê?! A criminalidade foi consequência dessa exclusão.

A cor da pobreza no Brasil acabou reforçada no início do século 20: os negros eram desempregados, sub-empregados, os primeiros favelados e criminosos.

O negro que ousou na vida e no palco
 
Por Desconhecido – Arquivo Nacional, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=68738216

Abdias do Nascimento, nascido em 1914, não se contentava com esse destino, reservado a ele e aos que tinham sua cor de pele. Pequeno, aprendeu a se queixar dos xingamentos que ouvia na escola por ser preto. E entendeu que afirmar a sua diferença – essa que faziam questão de cuspir-lhe com adjetivos ofensivos – era motivo de orgulho e de força.

Por isso, participou da Frente Negra Brasileira, movimento que buscava a ascensão social das pessoas “de cor” na década de 30. As lições da época, sobre a necessidade de destacar a própria identidade racial, foram decisivas na trajetória de Abdias.

Naquele período, “nos teatros municipais do Rio e de São Paulo, negros entravam apenas para limpar o chão que os brancos sujavam”, como disse Abdias em entrevista ao Portal Afro. O ativista decidiu transformar o cenário e as personagens do momento. Recrutou domésticas, analfabetos, operários e desempregados, todos negros, para estudar teatro e montar peças.

Em 1944, ele concebeu o que pode ser considerado um dos maiores laboratórios de diversidade e autoafirmação nas artes cênicas do Brasil. Foi o Teatro Experimental do Negro, que revolucionou a vida de centenas de pretos, pardos, pobres.

Abdias alfabetizava o elenco, preparava os atores e incentivava a conscientização deles como cidadãos. O palco virou espaço para os negros marginalizados terem voz e exercitarem seu talento. Eles aprendiam sobre as próprias origens, aceitavam as raízes africanas, orgulhavam-se de ser quem eram. Abdias trabalhou a autoestima daqueles ex-escravos que quase não tinham deixado de ser ex, mais de 50 anos depois da Lei Áurea.

Algumas das encenações badaladas foram: O Filho Pródigo (1947), de Lúcio Cardoso; Aruanda (1950), de Joaquim Ribeiro; e Sortilégio (1957), do próprio Abdias. Foram formados pelo Teatro Experimental do Negro artistas do calibre de Ruth de Souza e Milton Gonçalves.
A semente germinada por Abdias

Além da experiência bem-sucedida no teatro, o ativista dedicou parte da vida às atividades políticas. No exílio, durante a ditadura militar, aproximou-se de Leonel Brizola. Na volta ao Brasil, participou da criação do PDT (Partido Democrático Trabalhista). A igualdade racial tornou-se sua principal defesa e foi incorporada como bandeira pelo trabalhismo da sigla de Brizola.

Foi deputado federal nos anos 80 e senador ao longo da década de 90. Sempre que discursava, reivindicava políticas de integração dos negros na sociedade brasileira. Políticas nacionais que nunca haviam sequer sido pensadas por qualquer governo.

Em 2006, quando tive a honra de entrevistá-lo, Abdias festejou a adoção em massa de ações afirmativas pelas universidades públicas brasileiras.

“Essa realidade de hoje, com cotas para negros, foi uma briga minha, nossa, do movimento, lá de trás, de anos”, recordou, já um pouco combalido, na cadeira de rodas.

Com mais de um século de atraso, a igualdade começava a ser construída. E Abdias foi um dos responsáveis por tentar virar a página dos reflexos e do legado da escravidão.

Um herói nacional que merece ser conhecido, estudado e celebrado pelos brasileiros interessados em preencher as lacunas da nossa História.

Fonte: geledes

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