Nesta
sociedade, não há um discurso poderoso sobre o amor emergindo nem dos
radicais progressistas nem da esquerda. A ausência de um foco continuado
sobre o amor em círculos progressistas surge de uma falha coletiva em
reconhecer as necessidades do espírito e de uma ênfase sobredeterminada
nas preocupações materiais. Sem amor, nossos esforços para libertar a
nós mesmas/os e nossa comunidade mundial da opressão e exploração estão
condenados. Enquanto nos recusarmos a abordar plenamente o lugar do amor
nas lutas por libertação, não seremos capazes de criar uma cultura de
conversão na qual haja um coletivo afastando-se de uma ética de
dominação.
Sem
uma ética do amor moldando a direção de nossa visão política e nossas
aspirações radicais, muitas vezes somos seduzidas/os, de uma maneira ou
de outra, para dentro de sistemas de dominação — imperialismo, sexismo,
racismo, classismo. Sempre me intrigou que mulheres e homens que
passam uma vida trabalhando para resistir e se opor a uma forma de
dominação possam apoiar sistematicamente outras. Fiquei intrigada com
poderosos líderes negros visionários que podem falar e agir
apaixonadamente em resistência à dominação racial e aceitar e abraçar a
dominação sexista das mulheres; com feministas brancas que trabalham
diariamente para erradicar o sexismo, mas que têm grandes pontos cegos
quando se trata de reconhecer e resistir ao racismo e à dominação por
parte da supremacia branca do planeta. Examinando criticamente esses
pontos cegos, concluo que muitas/os de nós estão motivadas/os a mover-se
contra a dominação unicamente quando sentimos nossos interesses
próprios diretamente ameaçados. Muitas vezes, então, o anseio não é para
uma transformação coletiva de sociedade, para um fim da política de
dominações; mas simplesmente para o fim do que sentimos que nos machuca.
É por isso que precisamos desesperadamente de uma ética do amor para
intervir em nosso desejo autocentrado por mudança. Fundamentalmente, se
estamos comprometidas/os apenas com a melhoria daquela política de
dominação que sentimos conduzir diretamente para nossa exploração ou
opressão individual, não apenas permanecemos ligados ao status quo,
mas agimos em cumplicidade com ele, nutrindo e conservando esses mesmos
sistemas de dominação. Até todas/os nós sermos capazes de aceitar a
natureza interconectada e interdependente dos sistemas de dominação e
reconhecermos as formas específicas de manutenção de cada sistema,
continuaremos a agir de forma a minar nossa busca individual por
liberdade e nossa luta por libertação coletiva.
A
capacidade de reconhecer pontos cegos só pode surgir à medida em que
expandimos nossa preocupação sobre a política de dominação e nossa
capacidade de nos preocuparmos com a opressão e exploração de outrem.
Uma ética de amor torna possível essa expansão. O movimento de direitos
civis transformaram a sociedade nos Estados Unidos porque era
fundamentalmente enraizada em uma ética do amor. Nenhum líder enfatizou
mais essa ética que Martin Luther King Jr. Ele tinha a percepção
profética de reconhecer que uma revolução construída sobre qualquer
outra fundação falharia. Repetidas vezes, Luther King afirmou que ele
“havia decidido amar”, porque acreditava profundamente que, se estamos
“buscando o bem supremo”, nós “o encontramos por meio do amor”, porque
esta é “a chave que abre a porta para o significado da realidade
última”. E o ponto de estar em contato com uma realidade transcendente é
que lutamos por justiça, ao mesmo tempo percebendo que somos sempre
mais do que nossa raça, classe ou sexo. Quando olho para trás, para o
movimento pelos direitos civis que era, em muitos aspectos, limitado
porque era um esforço reformista, vejo que tinha o poder de movimentar
coletivos de pessoas para atuarem no interesse da justiça racial — e
porque estava profundamente enraizado em uma ética do amor.
O movimento Black Power
dos anos sessenta se afastou dessa ética do amor. A ênfase agora estava
mais no poder. E não é de surpreender que o sexismo que sempre
intensificou a luta de libertação negra, que uma abordagem misógina em
relação às mulheres se tornassem centrais como a equação entre liberdade
e a masculinidade patriarcal entre dirigentes políticos negros/as,
quase todos homens. Na verdade, a nova militância do poder negro
masculinista equiparou amor com fraqueza, anunciando que a expressão
essencial da liberdade seria a vontade de coagir, fazer violência,
aterrorizar; de fato utilizar as armas de dominação. Esta era a mais
crua encarnação do credo corajoso de Malcolm X “por qualquer meio
necessário”.
Como um lado positivo, o movimento Black Power
deslocou o foco da luta pela libertação negra da reforma para a
revolução. Este foi um importante desenvolvimento político, trazendo
consigo uma perspectiva global anti-imperialista mais forte. No entanto,
viéses sexistas machistas na liderança levaram à supressão da ética do
amor. Assim, o progresso foi feito mesmo com algo valioso sendo perdido.
Enquanto Luther King tinha se concentrado em amar os inimigos, Malcolm
chamou-nos de volta a nós mesmos, reconhecendo que cuidar da negritude
era nossa responsabilidade central. Embora Luther King tenha frisado a
importância do amor próprio negro, ele falou mais sobre amar nossos
inimigos. Em última análise, nem ele nem Malcolm viveram o suficiente
para integrar plenamente a ética do amor numa visão de descolonização
que fornecesse um plano para a erradicação do auto-ódio negro.
Os
povos negros que entraram no domínio racialmente integrado da vida
americana por causa do sucesso dos direitos civis e do movimento Black Power,
de repente descobrimos que lutávamos com uma intensificação do racismo
internalizado. As mortes desses importantes líderes (bem como as de
líderes brancos liberais que eram aliados importantes na luta pela
igualdade racial) trouxeram intensos sentimentos de desesperança,
impotência e desespero. Feridas/os naquele espaço onde conheceríamos o
amor, as/os negras/os coletivamente experimentaram uma dor viva e
angústia sobre o nosso futuro. A ausência de espaços públicos onde essa
dor pudesse ser articulada, expressa, compartilhada, significou que ela
foi mantida infiltrada, suprimindo a possibilidade de que esse
sofrimento coletivo fosse reconciliado em comunidade, até mesmo como
maneira de ir além de tal sofrimento e continuar vislumbrando a luta de
resistência. Sentindo como se “o mundo tivesse realmente chegado ao
fim”, no sentido de que uma esperança de que a justiça racial se
tornasse a norma, havia morrido, um risco de morte desesperador se
apoderou da vida negra. Nunca saberemos até que ponto o foco do machismo
negro sobre a dureza e a tenacidade serviu como barreira, continuamente
impedindo o reconhecimento público do enorme sofrimento e dor na vida
negra. Em World as Lover, World as Self Joanna Macy, no capítulo “Despair Work”, enfatiza que
“a recusa em sentir tem um preço alto. Não só há um empobrecimento da nossa vida emocional e sensorial… Mas esse entorpecimento psíquico também impede nossa capacidade de processar e responder às informações. A energia gasta em empurrar para baixo o desespero é desviada de usos mais criativos, esgotando a resiliência e a imaginação necessárias para novas visões e estratégias”.
Se
as pessoas negras têm avançado em nossa luta por libertação, temos de
confrontar o legado desse sofrimento irreconciliado, pois este tem sido
um terreno fértil para o desespero niilista. Devemos voltar
coletivamente para uma visão política radical da mudança, enraizada em
uma ética do amor e buscar, mais uma vez, transformar coletivos de
pessoas, negras e não negras.
Uma
cultura de dominação é anti-amor. Exige violência para se sustentar.
Escolher o amor é ir contra os valores predominantes dessa cultura.
Muitas pessoas sentem-se incapazes de amar a si mesmas ou a outras
porque não sabem o que é o amor. Músicas contemporâneas como “What’s
Love Got To Do With It” de Tina Turner defendem um sistema de trocas em
torno do desejo, refletindo a economia do capitalismo: a ideia de que o
amor é importante é zombada. Em seu ensaio “Love and Need: Is Love a
Package or a Message?” Thomas Merton argumenta que somos ensinadas/os,
dentro da estrutura de consumo capitalista competitivo, a ver o amor
como um negócio: “Esse conceito de amor assume que a maquinaria de
compra e venda de necessidades é o que faz tudo acontecer. Considera a
vida como um mercado e o amor como uma variação na livre iniciativa”.
Embora muitas pessoas reconheçam e critiquem a comercialização do amor,
elas não veem alternativa. Não sabendo amar, ou mesmo o que é o amor,
muitas pessoas se sentem emocionalmente perdidas; outras buscam
definições, formas de sustentar uma ética do amor em uma cultura que
nega valores humanos e valorizam o material.
As
vendas de livros que se concentram na recuperação, livros que procuram
maneiras de melhorar a autoestima, amor-próprio e nossa capacidade de
ser íntima/o nos relacionamentos, demonstram que há consciência pública
de uma falta na vida da maioria das pessoas. O livro de autoajuda de M.
Scott Peck The Road Less Traveled é enormemente popular porque aborda essa falta.
Peck
oferece uma definição operacional para o amor que é útil para
aquelas/es de nós que gostariam de fazer de uma ética do amor o núcleo
de toda interação humana. Ele define o amor como “a vontade de
estender-se para o propósito de nutrir o crescimento espiritual de si
mesmo ou de outrem”. Comentando sobre as atitudes culturais
predominantes sobre o amor, Peck escreve:
“Todo mundo na nossa cultura deseja, até certo ponto, ser amoroso, mas muitas/os não são de fato amorosas/os. Concluo, portanto, que o desejo de amar não é, em si mesmo, amor. O amor é o que o amor faz. O amor é um ato de vontade — ou seja, uma intenção e uma ação. Também implica uma escolha. Nós não temos que amar. Escolhemos amar”.
Suas
palavras ecoam a declaração de Martin Luther King: “Eu decidi amar”,
que também enfatiza a escolha. Luther King acreditava que o amor é, “em
última análise, a única resposta” para os problemas enfrentados por esta
nação e por todo o planeta. Compartilho essa crença e a convicção de
que é na escolha do amor, e começando com o amor como fundamento ético
para a política, que estamos mais bem posicionadas/os para transformar a
sociedade de forma a melhorar o bem coletivo.
É
realmente surpreendente que Luther King tivesse a coragem de falar,
tanto quanto ele fez, sobre o poder transformador do amor, em uma
cultura na qual esse discurso é muitas vezes visto como meramente
sentimental. Nos círculos políticos progressistas, falar de amor é
garantir que alguém seja dispensado ou considerado ingênuo. Mas, fora
desses círculos, há muitas pessoas que reconhecem abertamente que são
consumidas por sentimentos de auto-ódio, que se sentem sem valor,
querendo uma saída. Muitas vezes, elas estão presas demais por um
desespero paralisante para serem capazes de se engajar efetivamente em
qualquer movimento de mudança social. No entanto, se líderes de tais
movimentos se recusam a enfrentar a angústia e a dor de suas vidas,
nunca estarão motivadas/os a considerar a recuperação pessoal e
política. Qualquer movimento político que possa atender eficazmente a
estas necessidades do espírito, no contexto da luta pela libertação,
terá sucesso.
No
passado, a maioria das pessoas aprendia e cuidava das necessidades do
espírito no contexto da experiência religiosa. A institucionalização e
comercialização da igreja têm minado o poder da comunidade religiosa em
transformar almas, intervir politicamente. Comentando o sentido coletivo
da perda espiritual na sociedade moderna, Cornel West afirma:
“Há um perverso empobrecimento do espírito na sociedade estadunidense e, especialmente, entre negros. Historicamente, houve forças e tradições culturais, como a igreja, que mantinha a frieza e a mesquinharia à distância. No entanto, o empobrecimento do espírito significa que esta frieza e mesquinhez se tornam cada vez mais e mais infiltradas. A igreja manteve estas forças à distância promovendo um sentido do respeito para com outrem, um sentimento de solidariedade, um senso de propósito e valor que encaminharia a batalha contra o mal”.
As
comunidades políticas que sustentam a vida podem proporcionar um espaço
semelhante para a renovação do espírito. Isso só pode acontecer se
abordarmos as necessidades do espírito na teoria e na prática política
progressistas.
Muitas
vezes, quando Cornel West e eu falamos com grandes grupos de pessoas
negras sobre o empobrecimento do espírito na vida negra, a falta de
amor, a partilha de que podemos coletivamente recuperar-nos no amor, a
resposta é esmagadora. As pessoas querem saber como começar a prática de
amar. Para mim, é onde a educação para a consciência crítica deve
entrar. Quando eu olho para a minha vida, procurando por um plano que me
ajudou no processo de descolonização, de auto recuperação pessoal e
política, sei que foi aprendendo a verdade sobre como os sistemas de
dominação operam que ajudou, aprendendo a olhar para dentro e para fora,
com um olhar crítico. A consciência é central para o processo de amor
como a prática da liberdade. Sempre que aquelas/es de nós que são
membros de grupos oprimidos se atrevem a interrogar criticamente nossas
posições, as identidades e lealdades que informam como vivemos nossas
vidas, iniciamos o processo de descolonização. Se descobrimos em nós
mesmas/os auto-ódio, baixa autoestima ou um pensamento branco
supremacista interiorizado e os enfrentamos, podemos começar a curar.
Reconhecer a verdade de nossa realidade, tanto individual como coletiva,
é uma etapa necessária para o crescimento pessoal e político. Este é
geralmente o estágio mais doloroso no processo de aprender a amar — o
que muitas/os de nós procuram evitar. Novamente, uma vez que escolhemos o
amor, instintivamente possuímos os recursos interiores para enfrentar
essa dor. Movendo inteiramente a dor para o outro lado, encontramos a
alegria, a liberdade de espírito trazidas por uma ética do amor.
Escolhendo
o amor, também escolhemos viver em comunidade, e isso significa que não
temos que mudar apenas por nós mesmas/os. Podemos contar com a
afirmação crítica e diálogo com companheiras/os andando por um caminho
semelhante. O teólogo afro-americano Howard Thurman acreditava que
aprendemos melhor o amor como a prática da liberdade no contexto da
comunidade. Comentando este aspecto de seu trabalho no ensaio
“Spirituality out on The Deep”, Luther Smith nos lembra que Thurman
sentiu que os Estados Unidos foram dados a diversos grupos de pessoas
pela força da vida universal, como um local para a construção da
comunidade. Parafraseando Thurman, ele escreve: “A verdade se torna
verdadeira na comunidade. A ordem social anseia por um centro (isto é,
espírito, alma) que lhe conferira identidade, poder e propósito. Os
Estados Unidos, e todas as entidades culturais, estão em busca de uma
alma”. Trabalhando dentro da comunidade, seja compartilhando um projeto
com outra pessoa, ou com um grupo maior, somos capazes experimentar
alegria na luta. Essa alegria precisa ser documentada. Porque se nos
concentrarmos apenas na dor, as dificuldades, que certamente são reais
em qualquer processo de transformação, somente mostraremos uma imagem
parcial.
A
ética do amor enfatiza a importância do serviço para outrem. Dentro do
sistema de valores dos Estados Unidos, qualquer tarefa ou trabalho
relacionado com o “serviço” é desvalorizada. O serviço fortalece nossa
capacidade de conhecer a compaixão e aprofunda nossa percepção. Ao
servir a outrem, não posso vê-las/os como um objeto: devo ver sua
subjetividade. Compartilhando o ensino dos guerreiros Shambala, a
budista Joanna Macy escreve que precisamos de armas de compaixão e
discernimento.
“Você precisa ter compaixão porque ela lhe dá o combustível, o poder, a paixão para mover. Quando você se abre para a dor do mundo, você se move, você age. Mas essa arma não é suficiente. Ela pode te queimar; então você precisa de outrem — você precisa entender a radical interdependência de todos os fenômenos. Com essa sabedoria, você percebe que não é uma batalha entre os bons e maus, mas que a linha entre o bem e o mal passa pela paisagem de cada coração humano. Com a percepção de nossa profunda inter-relação, você sabe que as ações empreendidas com intenção pura têm repercussões em toda a rede da vida, além do que você pode mensurar ou discernir”.
Macy
ensina que a compaixão e a percepção podem “sustentar-nos como agentes
de mudança saudável”, pois eles são “dons que nós requeremos agora na
cura de nosso mundo”. Em parte, aprendemos a amar doando serviço. Esta
é, novamente, uma dimensão do que Peck significa quando fala de
estender-se para outrem.
O
movimento dos direitos civis tinha o poder de transformar a sociedade
porque indivíduos que lutavam sozinhos e em comunidade por liberdade e
justiça procuravam essas dádivas para todos, não apenas para as/os que
sofrem e oprimidas/os. Líderes negras/os visionárias/os, como Septima
Clark, Fannie Lou Hamer, Martin Luther King Jr. e Howard Thurman
advertiram contra o isolacionismo. Incentivaram as pessoas negras a
olharem para além de nossas próprias circunstâncias e assumirmos
responsabilidade pelo planeta. Este apelo à comunhão com o mundo além do
eu, da tribo, da raça, da nação, era um constante convite para expansão
pessoal e crescimento. Quando massas de pessoas negras começam a pensar
apenas em termos de “nós e eles”, internalizando o sistema de valores
do patriarcado capitalista da supremacia branca, pontos cegos são
desenvolvidos, a capacidade de empatia necessária para a construção da
comunidade fora diminuída. Para curar nosso corpo político ferido,
devemos reafirmar nosso compromisso com uma visão do que Luther King
mencionou no ensaio “Facing the Challenge of a New Age” como um genuíno
compromisso com “liberdade e justiça para todas/os”. Meu coração se
eleva quando leio o ensaio de Luther King; lembro-me de onde nos leva a
verdadeira libertação. Isso leva além da resistência à transformação.
Luther King diz-nos que “o fim é a reconciliação, a fim é a redenção, o
fim é a criação da comunidade amada”. Ao escolher amar, começamos a nos
mover contra a dominação, contra a opressão. No momento em que
escolhemos amar, começamos a nos mover para a liberdade, a agir de
maneiras que libertem a nós mesmas/os e a outrem. Essa ação é o
testemunho do amor como a prática da liberdade.
hooks, bell. Love as the practice of freedom. In: Outlaw Culture. Resisting Representations. Nova Iorque: Routledge, 2006, p. 243–250. Tradução para uso didático por wanderson flor do nascimento.
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