por Bruna Rocha,
Direito à vida e à liberdade. Igualdade racial. Direito ao trabalho, ao emprego e à proteção das trabalhadoras negras em todas as atividades. Direito à terra, território e moradia/direito à cidade. Justiça ambiental, defesa dos bens comuns e a não-mercantilização da vida. Direito à seguridade social (saúde, assistência e previdência social). Direito à educação, à justiça, à cultura, informação e à comunicação. Direito à paz e a uma segurança pública que não extermine o povo negro. Estes foram os pontos da carta apresentada aos brasileiros pela I Marcha Nacional de Mulheres Negras, realizada por mais de 50 mil mulheres em 18 de novembro de 2015, em Brasília.
Desde então, foram muitas caminhadas, encontros e marchas estaduais, municipais e ramificações da articulação que teve como diferencial a dimensão nacional e com repercussão pública. “Nossos passos vêm de longe” é o que afirmam pretas ao compreender a dimensão histórica, ancestral da resistência negra e feminina nas lutas pelos direitos humanos no Brasil e no mundo. Sacerdotisas como Makota Valdina, lideranças como Lélia Gonzalez, artistas como Carolina Maria de Jesus, estão em nossa memória para mostrar que independente da circunstância de dor, sempre houve mulheres negras tecendo a rede de tecnologias sociais responsáveis pela sobrevivência de todo o povo. A conexão entre ancestralidade e o modus operandi de mulheres negras na luta pela sobrevivência pode ser ilustrada pela publicação coletiva “Mulheres Negras: táticas e políticas do cotidiano”
O racismo e o machismo estrutural, entretanto, seguem se materializando nas mais diversas formas de violência para interditar o processo de liberdade, autonomia e protagonismo das mulheres negras. A Câmara Federal conta com 436 deputados homens e 77 deputadas mulheres, sendo apenas 13 delas negras e uma indígena – a primeira eleita na história do país: Joenia Wapichana, de Roraima. Dentre as negras, Aurea Carolina, de Minas Gerais e Talíria Petrone, do Rio de Janeiro, ambas companheiras partidárias de Marielle Franco, quinta vereadora mais bem votada na cidade do Rio de Janeiro, cujo mandato foi interrompido pelo brutal assassinato da liderança da Maré, das mulheres, das LGBTs e de toda a população negra do Rio. O assassinato de Marielle foi um recado, mas a respostas das mulheres negras pode ser ilustrada na música da cantora baiana Josyara: “não vamos voltar pras senzalas não, não vamos voltar pros porões, não vamos voltar pros armários, não vamos voltar pras prisões”.
Marcha das Mulheres Negras Contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver em Brasília em 2015.
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
PODER É BOM, E AS PRETAS QUEREM TAMBÉM: O movimento de mulheres negras e a disputa pela Prefeitura de Salvador
Salvador é a cidade mais negra fora da África, no entanto, os espaços de decisão e os circuitos por onde circula o dinheiro da cidade são esmagadoramente brancos. Um conjunto de opressões estruturais como o desemprego, o subemprego, os problemas de saneamento, Educação, Saúde e Segurança submetem a maioria esmagadora da população – negra, da cidade, a condições de muita dificuldade, mas também resistência. E esta resistência se materializou em quatro possíveis candidaturas negras pata as eleições municipais em 2020: Vilma Reis, Olívia Santana, Silvio Humberto e Vovô do Ilê.
Foi na caminhada do 2 de Julho deste ano que Vilma Reis se lançou à candidatura para a Prefeitura de Salvador, que atualmente é governada pelo herdeiro de uma família coronelista e autoritária da Bahia – Os Magalhães. “Este racismo institucional precisa ser interrompido, e ele não será interrompido senão por uma iniciativa política, coletiva, gigantesca, de mulheres negras. Como bem disse Marielle Franco: romper com a cidade-negócio e propor uma cidade de direitos”, foi como Vilma iniciou o bate-papo com a Afirmativa, no auditório do Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA, no bairro do Dois de Julho. Foi lá que a socióloga defendeu, em 2005, sua dissertação intitulada Atucaiados pelo Estado – As políticas de segurança pública implementadas nos bairros populares de Salvador e suas representações (1991- 2001)– e onde passou e passa boa parte de seus dias, na articulação entre a universidade e a luta nos territórios, ou como ela mesma disse, “entre o Terreiro do Cobre e o Ceafro”.
Integrante do Coletivo Mahin – Organização das Mulheres Negras, Vilma começou sua trajetória no Movimento em Defesa da Escola Pública, na Cidade Baixa, na Escola Preciliano Silva e no Colégio Costa e Silva, com apenas 16 anos. Nos anos 90, participou da articulação do Coletivo de Mulheres Negras da Bahia, que culminou no II Encontro Nacional de Mulheres em Salvador, em 91, além da reconstrução do Fórum de Mulheres de Salvador, em 96, e da organização, junto a outras mulheres como Carmem Sacramento e Terezinha Barros, entre outras, do 12º Nacional Feminista, marco da luta das mulheres negras por protagonismo na pauta feminista.
“Eu digo que é um divisor de águas, pois havia um grande debate naquela época sobre se nós, mulheres negras éramos feministas e eu lembro que em 1995 Luiza Bairros escrevia o artigo, que hoje é um clássico, chamado Nossos Feminismos Revisitados e posiciona o feminismo negro como uma experiência vivenciada por mulheres negras. Então a gente vai se mover por essa fala de Luiza e vamos fazer um enfrentamento no campo Feminista e dizer: nós somos feministas sim!”.
Vilma Reis faz questão de afirmar que integra um projeto político coletivo. Se compreende como um quadro forjado na luta e no esforço das mulheres negras, a quem atribui sua trajetória desde experiência em estudar Governança na Universidade de Howard, nos anos 90, em Washington, através de um programa de Intercâmbio, viabilizado entre a ONG Criola e o Global Exchange até a pré-candidatura à Prefeitura de Salvador.
“Tudo que a gente está apresentando nesse momento, construímos politicamente nos últimos 25 anos em Salvador. O processo da candidatura vem com um compromisso coletivo de pautar a cidade, repensar a cidade, botar a cidade num ritmo de debate, de levantamento das suas questões e numa posição de que nós, mulheres negras, somos os sujeitos políticos mais importantes dessa cidade”.
Vilma Reis Foto: Reprodução
Também conversamos com Olívia Santana, primeira deputada autodeclarada negra eleita na Assembléia Legislativa da Bahia. Vice na chapa de Nelson Pellegrino em 2012, a deputada é um dos nomes negros cotados para o pleito à Prefeitura de Salvador.
“Historicamente são os homens brancos e ricos que ocupam os espaços de poder. Nós, mulheres, conseguimos no século passado conquistar o direito ao voto e só agora estamos materializando o direito de sermos votadas. Das mulheres negras, o que se espera é o pano de chão, a bacia da roupa, o fogão. Não se associa a imagem das mulheres negras ao exercício do poder. A sociedade ainda nos nega, sistematicamente, o acesso ao sistema de representação política”, denunciou.
A liderança, referência na luta racial e feminista, que já está há alguns anos disputando as trincheiras da política institucional, nos falou dos impasses de fazer luta política sendo mulher negra:
“O financiamento das campanhas também é o maior gargalo. É uma luta para entrar no partido, para se candidatar, ter acesso ao financiamento de campanhas, tanto dentro do partido como fora. Nossas candidaturas, de mulheres, negros, trabalhadores e outros segmentos socioeconômicos vulneráveis são as que mais precisam do financiamento público de campanha. Por isso é importante o financiamento público e, para as mulheres, a Lei dos 30% de candidaturas e de acesso ao Fundo Eleitoral”.
Olívia começou sua trajetória no Movimento Estudantil e enfrentou a violência policial para defender estudantes no regime autoritário de Antônio Carlos Magalhães, foi Secretária de Política para as Mulheres e chefiou a de Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte do da Bahia antes de assumir o mandato como deputada. Ela defende que a perspectiva do empoderamento político de mulheres negras precisa acontecer pela coletividade. “Somos 10 mulheres na ALBA. Eu me autodeclaro negra e assumo a pauta antirracista. Não quero ser exceção. Quero ser parte da regra. Precisamos de mais mulheres negras eleitas! A sociedade precisa ter uma visão do quão chocante é essa ausência negra no parlamento e postos de comando, especialmente em um estado como a Bahia”, prospectou.
Olívia Santana Foto: Reprodução
Virou Semente: Fórum Marielles debate inserção de mulheres negras na política
O Fórum Marielles é uma iniciativa de mulheres mulheres negras, integrantes de diversas frentes, coletivos, representantes de diferentes setores, para pensar, permanentemente, a ocupação de mulheres negras nos espaços de decisão.
“Não só as mulheres negras tem dificuldade de assumir o comando, porque na representação social a gente tá no mundo pra servir, quando ocupamos estes espaços, somos muito facilmente punidas se cometermos qualquer erro, porque o aparato simbólico e social nunca é favorável para nós”, afirmou a antropóloga Ângela Figueredo, coordenadora do coletivo Ângela Davis e uma das articuladoras do Fórum. “A gente tá no lugar pra servir o cafezinho, a gente tá nos lugares pra fazer a infraestrutura, mas nunca pra brilhar”, pontua Ângela, que há mais de 10 anos trabalha com formação acadêmica de mulheres negras, em diálogo com o movimento social. Sobre esse tema, encontramos outro trabalho de pesquisa, chamado De “tia-do-café” à parlamentar: a sub-representação das mulheres negras e a reforma política, de Rayane Cristina de Andrade Gomes, na Revista Sociais e Humanas, volume 31, publicada em 2018.
Outras lideranças, como Olívia Santana e Vilma Reis, Marta Rodrigues, que é vereadora de Salvador, as professoras Lindinalva Barbosa, Denise Ribeiro e Claudia Pacheco, a atriz Vera Lopes, Eva Bahia, e muitas mulheres ativistas e acadêmicas e organizações de mulheres negras como o Instituto Odara, estão na articulação do Fórum, que começou em uma reunião em Salvador, no dia 14 de março de 2019 – um ano do assassinato de Marielle Franco. No dia 23 de julho, dois dias antes da Marcha das Mulheres Negras, o fórum apresentou sua carta pública à sociedade brasileira.
“Somos herdeiras do legado de Marielle, legado esse marcado pela luta pelos Direitos Humanos, LGBTs, Mulheres e, sobretudo, do combate ao racismo”, pontuou Ângela.
O Fórum segue com atividades permanentes, em diálogo com mulheres negras que já ocupam espaços de decisões e também no processo de articulação, fortalecimento e formação de redes de mulheres negras para que elas ocupem os espaços de poder e permaneçam, sobrevivam à violência institucional e consigam romper com as trajetórias traçadas pelo racismo. “A gente não quer que essas vozes emerjam apenas após as tragédias. A gente quer estimular as mulheres a sair do lugar de quem faz o cotidiano, mas não assume as posições de comando. A gente quer estimular as mulheres à vereança, às reitorias das universidades, diretoras de escolas. Deslocar esse eixo em que ficamos sempre nos bastidores e desenhar um mundo em que as nossas prioridades façam parte do projeto da cena política”.
Marielle virou semente e inúmeras iniciativas nasceram no sentido de perpetuar seu legado de empoderamento de mulheres negras. Este ano será lançado, pelo fundo Baobá, em parceria com o Instituto Ibirapitanga, Ford Foundation e Open Society Foundation, o Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras Marielle Franco, com o objetivo de apoiar financeiramente organizações, grupos, coletivos e lideranças femininas negras. Os editais serão disponibilizados no próximo dia 3 de setembro, para execução até 2024. As informações podem ser conferidas no site do Fundo Baobá, bem como o cronograma do Programa.
Este texto faz parte da série de reportagens da Revista Afirmativa “Reforma Política, e nós com isso?”, que debate acerca das políticas que interferem diretamente na vida dos segmentos populacionais brasileiros socialmente negligenciados. Entenda mais clicando na imagem.
Fonte: revistaafirmativa
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