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quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Empregadas Domésticas e o destino Histórico


Por LUCIO ANTONIO MACHADO ALMEIDA,
Lembro-me da minha querida mãe, que se chamava Maria, trabalhou toda vida em casa de família, quando completou em abril de 1997, 60 anos, estava radiante pelos seus filhos estarem se encaminhando, particularmente, pelos três primeiros filhos que já estavam trabalhando e estudando. Ocorreu, contudo, que ela veio a falecer em agosto do mesmo ano, inacreditavelmente por uma pneumonia. Foi difícil para todos acreditar que aquela mulher determinada, forte e negra, agora tinha sido traída por uma gripe. Enfim, faz parte da vida e a nossa querida mãe está bem em um plano superior.
 
Ano de 1978. Cidade de Rio Grande, Rio Grande do Sul (Arquivo Pessoal)

Entretanto, com o tempo eu fiquei me perguntando: O que aconteceu com Maria neste período no qual esteve como empregada doméstica? Não foram poucas, às vezes, em que ela nos relatou os abusos sofridos em “casas de família”, no Rio Grande do Sul, denominou-se, por muito tempo, como as casas onde se realizam as “faxinas”, as “limpezas”, ou seja, o famigerado trabalho doméstico e, paradoxalmente, a única renda que podiam ter as mulheres negras no século XX.

Ela sempre nos relatou da condição de empregadas pela metade, ou seja, metade empregada, metade gente da família, que ao fim e ao cabo trazia algumas vantagens e que, por outro lado, arrancava-lhes diversas possibilidades de autonomia e respeito. Um dos relatos que eu jamais esqueci foi a obrigação de lavar roupas no tanque/pia em pleno inverno gaúcho em detrimento do uso da máquina de lavar. Outro relato é o que dizia respeito as constantes e insistentes tentativas de abuso sexual por parte dos patrões. Em todos os relatos, ficava a impressão de que se tratava de uma prática comum em muitas casas de família. Além disso, não posso esquecer da constante tirania dos filhos acompanhada com a perplexidade da minha mãe com o uso exagerado de drogas no seio dessas famílias. Ela insistia com a gente para não usarmos drogas, pois segundo ela o tratamento dado para os filhos das empregadas domésticas pela polícia seria a pena de morte.

Segundo Beatriz Nascimento em seu artigo ‘A mulher negra e o amor’: “a mulher negra, na sua luta diária durante e após a escravidão no Brasil, foi contemplada como mão de obra na maioria das vezes não qualificada. Num país em que somente nas últimas décadas do século XX, o trabalho passou a ter o significado dignificante, o que não acontecia antes, devido ao estigma da escravatura, reproduz-se negra um destino histórico. É ela quem desempenha, majoritariamente, os serviços domésticos, os serviços em empresas públicas e privadas recompensadas por baixíssimas remunerações. ”
Nesse sentido, a nossa condição material era terrível, pois nossa mãe trabalhava muito e recebia muito pouco pelo seu trabalho. Mesmo com o pai bastante presente em casa, a nossa situação dependia em muito do trabalho de nossa mãe como empregada doméstica. O trabalho doméstico não era uma escolha, mas a única opção que se apresentava para a grande maioria das mulheres negras até a década de 90 no interior do Rio Grande do Sul.

O fator raça era essencial na implementação do trabalho doméstico, visto que essas relações de trabalho em muito lembravam as mesmas relações instituídas no período escravocrata e que corroboravam para a afirmação da subordinação da mulher negra. A minha mãe Maria, de certa forma estava dentro desse quadro de possibilidades limitantes e disfuncionais do mercado de trabalho no Brasil.

De acordo com Ângela Davis, em sua obra “Mulher, Raça e Classe”, “a própria escravidão havia sido chamada, com eufemismo, de instituição doméstica, e as escravas eram designadas pelo inócuo termo serviçais domésticas. Aos olhos dos ex-proprietários de escravos, serviço doméstico devia ser uma expressão polida para uma ocupação vil que não estava nem a meio passo de distância da escravidão. ”

Felizmente, muito em razão de acertos na política, tivemos uma melhora no acesso ao ensino, a saúde, ao emprego, mas que, infelizmente tem sofrido uma queda de investimento. A nossa mãe Maria, se estivesse viva, possivelmente estaria com receio da atual situação política, que mais parece uma tentativa de voltar ao passado que ela conheceu tão bem e, por outro lado, feliz por ver tantos negros e negras em papéis de destaque em nossa sociedade.

Para concluir, o trabalho doméstico é sinônimo do intrincado caminho das relações raciais no Brasil. Estudar e refletir sobre o trabalho doméstico é entender um pouco as relações raciais, de classe e de gênero no Brasil. Agradecemos a dona Maria por ter me ensinado a lutar com dignidade, perseverança e esperança.
 
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Lúcio Antônio Machado Almeida – Professor Universitário da Faculdade de Direito Dom Bosco de Porto Alegre e do Pós da La Salle. Advogado. Escritor. Diretor da Escola do Legislativo. Integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB. Pesquisador do Grupo Antirracismo da CMPA/RS. Doutor e Mestre em Direito pela UFRGS.

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.
 
Fonte: Geledés

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