Páginas

terça-feira, 22 de julho de 2014

Exclusão no Espaço Doméstico


Viola Davis em “Histórias Cruzadas”: segregação racial nos EUA da década de 1960.

“Eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos.”

Carolina Maria de Jesus.

E “trastes velhos”, não são tratados como gente, e por isso tem seu espaço determinado pelos que são vistos como gente, e com essa linha de pensamento temos uma série de oposições: condomínios, favelas, periferia, centro, etc como características de cidades brasileiras, marcadas pela exclusão. Contudo esse não é mais um texto sobre a escala macro (cidades, regiões, país) e sim sobre como acabamos infelizmente esquecendo a materialização da exclusão cotidiana e cultural aos espaços de escala micro (casas, apartamento, edifícios). Afinal, quem nunca se deparou com uma casa que tinha o famigerado “quartinho da empegada” ou a edícula aos fundos pros empregados que são “quase da família”. Esses quartos de despejos nada mais são do que símbolos do racismo, e atingem em sua maioria, nós mulheres negras.

Para se ter ideia, no Brasil, de acordo com dados de 2013, divulgados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), mais de 93% das crianças e dos adolescentes envolvidos em trabalho doméstico no país são negras. O que não é nenhuma surpresa, já que infelizmente a situação do negro no país ainda é a de grande representatividade em trabalhos que servem a alguém. É notório o tanto de programas e ações do governo federal, estadual e municipal que fornecem para jovens de bairros periféricos cursos e qualificações onde não subvertem esse lugar. Temos cursos de garçom, auxiliar de tudo que é coisa, pedreiros, carpinteiros, camareira, vigilante, manicure e etc.

Essa realidade é histórica e está entrelaçada com a mão de obra barata e farta, e consequentemente com os espaços citados acima, que são símbolos da Exclusão Doméstica. Sabe-se que “Mesmo após a abolição, a abundância da oferta de trabalho manteve a tradição da empregada doméstica – da classe média para cima. Essa é a raiz de uma característica ímpar verificável nas moradias burguesas e pequeno burguesas no Brasil: a separação entre entrada social e de serviço, além do zoneamento verificado no interior da residência, dividindo a em área de serviço, social e íntima” (Erminia Maricato/Habitação e Cidade).

Destrinchando melhor esses fatos e ambientes e sua representatividade nas residências, temos no Brasil colonial a situação de Casa Grande e Senzala, essa ultima que ficava aos fundos, próxima à cozinha, onde dormiam os negros que trabalhavam dentro da casa dos Senhores. Nesse período as casas que ficavam nas cidades tinham na parte inferior um local destinado às atividades geralmente comerciais, este também era destinado aos depósitos e áreas de serviços, e consequentemente os negros dormiam nesses espaços.

Num momento posterior pós-abolição nas cidades, um dos fatos que mais compravam a existência do racismo é o surgimento do papel de governanta, modelo de empregada importado de outros países, porém mulheres brancas, às vezes de origem estrangeira. Na casa brasileira da época possuíam um quarto dentro do espaço da família, e as empregadas, geralmente negras, dormiam próximas à cozinha ou à lavanderia, o que veio dar origem ao “quartinho” de empregada, ou no que algumas de casas brasileiras começaram a surgir quartos, cozinha e banheiro externos a casa principal, a chamada edícula. São as manifestações que demostram como a elite burguesa brasileira difundia a ideia de Casa grande e Senzala nas suas acomodações até mesmo no século XIX e XX.

Como vemos, a situação para o negro sempre foi de exclusão. Mesmo no auge da nossa arquitetura, com os Arquitetos Modernos, houve inovações em relação ao modo de morar e métodos construtivos mas alguns continuaram reproduzindo áreas de serviços, nos piores locais e com as piores acomodações. Em São Paulo, em 1927, o arquiteto Júlio de Abreu, projetou um prédio onde acomodava as dependências das empregadas domésticas concentradas na cobertura do edifício, garantindo a privacidade das funcionárias. Ele coloca no que seria o local mais valorizado de um edifício o que geralmente é escondido nos fundos, ou parte inferior, e subverte a ordem, cuja justificativa dada pela maioria dos arquitetos que defende que, por privacidade e para se manter ”fluxos”, tais sistemas de opressão são necessários e reproduzidos por eles, não ousando em ser mais humano e pensar em novas soluções que não sejam minúsculos cômodos desconfortáveis.

Atualmente não são muitos os profissionais dessa área que mudaram esses conceitos, já que para elite/classe média passasse a morar em edifícios, se projetou um modelo de planta que recria esses espaços de exclusão, dando origem assim a apartamentos com duas entradas – a porta de serviços e a porta principal. O elevador de serviços no Brasil também é usado pelos empregados, tendo às vezes a porta do elevador voltada para a porta de serviços e essa já direcionada para os cômodos usados pelos empregados, tanto para o trabalho, quanto para dormir – “o quartinho” está desaparecendo, principalmente agora após a PEC das empregadas, onde as trabalhadoras domésticas passaram a ter seus direitos assegurados. Está se tornando raro as empregadas que não tinham vida social e estavam disponíveis 24 horas por dia, como podemos ver nas telenovelas que tem como base o modelo de sociedade da elite, onde as empregadas levantam as madrugas para recepcionar os patrões e saber se necessitam de algo sempre que chegam de uma atividade noturna.

Porém ressalto que a população brasileira se acostumou de tal forma com esses espaços racista, que os reproduzem sempre que possível. Recentemente vi notícias de brasileiros que quando procuram casas em Miami são facilmente atraídos pelas que possuem tais divisões, tudo pelo desejo da manutenção da hierarquia do Patrão sobre o Empregado, hierarquia essa que é amenizada com o discurso “quase da família”. O “quase” sendo usado metaforicamente para amenizar a relação já entrega o papel da empregada doméstica na cabeça dos seus patrões, um “quase”.

Essa visão é a mesma que gera uma periferia negra e um centro branco nas cidades, a de que os “quase” não merecem tantos direitos. Por isso para se pensar numa cidade mais democrática no campo social e racial, temos que também pensar nesses pequenos espaços que nada mais são que resquícios da Senzala, que até hoje são reproduzidos por profissionais da arquitetura, e demandados pela elite brasileira, que “quase”, tenta ser humana e “quase” fingi não ser racista.

Que se quebrem os sistemas opressores quer eles sejam eles macro, quer sejam eles micro. Claro que para fazer a arquitetura e engenharia se mexer nesse sentido, precisamos de uma revolução acadêmica. Cadê os negros saindo do quartinho da empregada e indo para salas de aulas representarem suas demandas e lutarem contra o racismo, projetando nessa que é uma das profissões mais elitizadas e com um dos vestibulares mais concorridos casas menos opressoras? Cadê?

Só nós podemos reverter isso, e para isso nós precisamos e vamos invadir algumas “praias”. E isso significa sair do espaço que nos foi incumbido.Acompanhe nossas atividades, participe de nossas discussões e escreva com a gente.

____________________________________

Estudante de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário