por Amanda Beatriz ,
É comum vermos manifestações de descontentamento nas redes sociais, em sentindo contrário ao de minorias, a partir do momento que alguém se posiciona a favor de pessoas socialmente oprimidas. Até aí, nada de especial. Cada um tem o direito de pensar o que quiser acerca das inúmeras demandas políticas recorrentes em nosso país.
As dificuldades se iniciam quando os temas em pauta afetam – direta ou indiretamente – a vida de negros, índios, mulheres, gays e transexuais. Justamente por conta deste motivo, é que se torna de vital importância a reflexão consciente antes de rejeitar, logo de cara, os problemas suscitados pelos respectivos grupos.
Com frequência, assisto a multiplicação das “ondas de protesto” nas redes sociais cujos argumentos se assentam em convicções politicamente frágeis e filosoficamente pobres. As falas mais comuns têm o condão de deslegitimar questionamentos colocados em evidência por minorias; muitas vezes por meio do deboche e da banalização de ocorrências gravíssimas.
Declarações corriqueiras tais como “as feministas planejam dominar o mundo”; “negros veem racismo em tudo que é canto”; “deveríamos parar de falar da consciência negra e começarmos a focar na raça humana”; ou, ainda, o discurso da moda, que é aquele que denuncia a “instauração da famigerada ditadura gay” (entre várias outras afirmações de natureza semelhante) possuem o único objetivo de esvaziar o conteúdo político da atuação de gente estigmatizada pela sociedade e historicamente alijada de direitos.
Não se identifica, com pronunciamentos deste perfil, nenhum esforço no sentido de implementar ações destinadas a superação de desigualdades sociais. Muito pelo contrário. O que se verifica é tão somente a nítida intenção de desmantelar o trabalho conjunto de pessoas que reivindicam avanços políticos traduzidos em melhores condições de vida. A propositura de críticas intelectualmente desonestas visa apenas à desqualificação de demandas socialmente legítimas.
Pois bem. Dito isto, gostaria de explicar que o texto se destina a desenvolver a ideia da importância de educar-se sobre do outro. Em outras palavras, a intenção é apontar o quão relevante é – a partir da dimensão política – esforçar-se mentalmente para compreender as problemáticas concernentes às minorias (antes de se posicionar imediatamente contra o que é apresentado sem o mínimo de conhecimento do assunto).
Embora a reflexão se restrinja a temática do negro, o raciocínio análogo pode ser aplicado a outros segmentos sociais.
Primeiramente, quando se fala da condição social da população negra e, em específico, a correlação desta com o “entendimento” do educar-se sobre o outro, isto significa falar necessariamente de racismo; uma vez que o mesmo é a mola-mestra propulsora de todas as demais situações resultantes desta mentalidade negativa.
Racismo – para o senso comum – é apenas identificado em situações chocantes e extremas. Na maioria das vezes, só existente em casos de grande repercussão midiática, ou, melhor dizendo, aqueles que são bastante emblemáticos e nitidamente discriminatórios. Apenas quando se tem notícias de fatos com repercussão nacional é que as pessoas percebem que acontece algo de muito errado na sociedade.
A “sensibilidade coletiva” aflora no momento em que torcedor atira banana em jogador de futebol; quando mulher negra é algemada em ambiente de trabalho e é escoltada pela PM à delegacia, por conta de suposto “desacato à autoridade”. Sem falar que toda a confusão foi gerada, pelo menos, aparentemente, devido a desentendimentos quanto ao preço do cafezinho!
As pessoas só voltam à atenção para o racismo quando ator negro passa 16 dias preso por engano ou, ainda, com a notícia de que mulher negra e trabalhadora foi arrastada por carro da polícia militar.
Ou seja: apenas em situações extremas e absurdas a sociedade como um todo tem momentos de lucidez, conseguindo enxergar a gravidade dos problemas a que diariamente a população negra é submetida.
De resto, nos outros dias, sempre que o fato não ganha espaço nos grandes veículos de comunicação, o que impera é a invisibilidade. É por isso que quando alguém denuncia o problema, acontece a tal “enxurrada de protestos” já comentada.
É justamente neste ponto que se inscreve a necessidade de educar-se sobre o outro.
Isto porque fica difícil entender o mundo de outra pessoa – com todas as peculiaridades que permeiam a realidade alheia – se não há mínima informação acerca das questões em pauta.
Esta busca por conhecimento é de extrema relevância social. A abertura psíquica para realização do esforço intelectual para o entendimento das mazelas que atingem a outrem é o que viabilizará o processo educativo.
Cada um de nós possui dentro de si – de forma bem cristalina – a importância da manutenção de uma rotina de estudos associada às matérias ensinadas na escola; bem como dos assuntos relacionados às disciplinas ministradas na faculdade ou aos apontamentos destacados em cursos de capacitação profissional. O que raramente praticamos é a reprodução da mesma postura estudantil, agora, com foco nas questões sociais.
Educar-se sobre o outro é de fundamental importância. É no movimento da leitura, no esforço mental empregado ao considerar o mundo do ponto de vista “do mundo do seu interlocutor” que se consegue enxergar a realidade com os “óculos” do outro.
Não importa quem seja o interlocutor, o caminho cognitivo é o mesmo. Pode ser a mulher, o negro, o gay, o transexual, o índio ou qualquer outro grupo que milite pela conquista de direitos.
Somente quando nos dispomos intelectualmente a entender as demandas do próximo, a partir do seu lugar de fala, é que saímos da “zona rasa” da observação. Local este, por sua vez, perigoso e limitado dado a tendência à naturalização de problemas graves.
Este é o principal efeito resultante da ausência de educação política. Os obstáculos que “embaçam” a visão se derivam justamente da falta de instrução e de conscientização acerca da conjuntura social relativa às minorias, assim como das causas que levaram esses grupos a reivindicarem direitos e a criticarem determinados comportamentos.
Quando, de fato, aprendemos com o estudo do “universo” do outro, treinamos nossa mente para reconhecer atitudes e posicionamentos “estranhos” os quais passariam despercebidos ou seriam classificados como “naturais” se fôssemos desinformados.
Em relação ao negro, à medida que alguém decide educar-se a respeito da temática, esta pessoa passa a entender que o racismo vai além das atitudes chocantes, extremistas e truculentas. Estas, sim, são apenas a ponta do iceberg.
O educando entenderá, paulatinamente, que racismo é uma visão de mundo. Visão esta deletéria e com profundas raízes históricas; construída a partir de vivência social. Assim, percebendo que, por tratar-se de um tipo de mentalidade a qual orientará determinadas disposições comportamentais, quem se propõe a educar-se sobre o outro capacita seu intelecto para detectar quando esta maneira de pensar o mundo se manifesta em situações corriqueiramente consideradas naturais e insignificantes.
O fato de ser categorizada como banal não “apaga” as consequências reais na vida de quem sofre o resultado destas ações.
Neste ponto, a bagagem educacional a respeito do outro se torna imprescindível. O trabalho de reflexão ocasionado pela vontade de entender a demanda alheia é o que estimulará a identificação, ou melhor, a visualização da linha de raciocínio que conduziu seu interlocutor àquela conclusão ou ao questionamento “Y” ou “Z”.
O exercício de manter a abertura psíquica para o entendimento das questões alheias, informando-se a respeito da problematização de situações aparentemente normais é que terá o condão de propiciar a visão crítica. Até mesmo para discordância, caso seja esta a conclusão formulada. Afinal de contas, todos têm esse direito!
A diferença é que agora a crítica se calcará em argumentos conscientes e não mais em preconceitos do senso comum ou em divagações rasas e falaciosas.
Portanto, com base nos “episódios” citados, é possível ilustrar que os argumentos apresentados no início do texto de que “feministas planejam dominar o mundo”; “negros veem racismo em tudo que é canto”; além do “é preciso parar de falar da consciência negra e deve-se focar na raça humana” e, por fim, a famosa demonização da militância gay – com argumento proselitista de que vivemos sob a égide de uma “ditadura homossexual” – não mais dão conta de explicar toda a complexidade por trás das diversas ocorrências discriminatórias.
A ideia de que todos nós somos vistos, reconhecidos e tratados igualitariamente em uma sociedade hipotética, na qual o racismo inexiste, não consegue explicar com folga as situações enunciadas. Diariamente, por todo Brasil, anônimos vivenciam casos similares, sem que seu histórico de vida venha à tona por meio da divulgação midiática.
Educar-se sobre o outro é politizar-se. E politizar-se, nas palavras da historiadora Marjorie Chaves, “é uma escolha de vida, não tem volta”. Quando nos educamos sobre o ponto de vista do outro, estamos nos capacitando intelectualmente para nos posicionarmos de forma mais consciente e justa em face das demandas sociais que se apresentam. Tal maturidade crítica se faz urgente na atualidade, pois é a partir do real entendimento – tanto da dimensão subjetiva quanto da dimensão coletiva – da condição social do negro que se poderá combater o racismo com efetividade.
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É estudante de Direito; negra em construção; mulher em intenso processo de individuação; humanista por excelência e partidária inveterada de um mundo em que todas as pessoas, sem distinção, sejam respeitadas em sua plenitude de autonomia e escolha.
Fonte: Blogueirasnegras
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